sábado, 7 de janeiro de 2012

Onze Fitas



Fachada do Edif. Canopus, o último apartamento de Caio F. em SP

As cenas abaixo narradas foram testemunhadas pelo jornalista e escritor Caio Fernando Abreu, no dia 6 de abril de 1989, na rua Haddock Lobo, exatamente em frente ao edifício Canopus, nº 959

20h – Quinta-feira normal. Vou chegando em casa, começo a subir a Haddock Lobo, da Alameda Franca até a Itú. Na porta de meu prédio, um movimento estranho. Um fio de sangue desce a ladeira. Acompanho, chego mais perto e vejo: na sarjeta, o cadáver de um homem semi coberto por folhas de jornal. Um carro de polícia, gente parada. Pergunto ao porteiro o que foi. Com ar de desprezo, ele conta: “Um ladrão. A polícia deu uns tiros”. Que horror, eu digo. Ou só penso. O porteiro: “Um bandido a mais, um a menos, que diferença faz, seu Caio?”

20h10m – Subindo pelo elevador, vou pensando pois é, que diferença faz? Entro no apartamento. Meu amigo Luciano viu tudo de sua janela. Às seis da tarde dois homens desceram a rua correndo, provavelmente depois de um assalto. A polícia desceu atrás, atirando. Um dos homens entrou num táxi parado, encostou o revólver na cabeça do motorista e conseguiu fugir. O outro levou os tiros nas costas. Ficou lá, de bruços, estendido no chão. Foi às seis horas. Agora são mais de oito.

20h30m – Tento trabalhar, não consigo. Tento comer, não desce. Tento ver TV, não entendo o que vejo. Tento ouvir Mozart, soa falso. Ligo para alguém, não atende. Espio pela janela, moro no segundo andar. O morto continua lá. Colocaram uma dessas sinalizações de madeira no meio da rua, para desviar os carros. As senhoras chiques dos edifícios vizinhos entram em casa de saia mais justa do que de costume. Desviam os olhos, a morte é feia. E não tem griffe.

21h – Percebo que acabei de ler cinco vezes a mesma frase de Sol Negro, de Julia Kristeva, sem entender uma palavra. Espio pela janela. O cara continua lá. Mortíssimo, por fora do jornal dois pés de tênis. Carros param, buzinam, rádios ligados muito alto. Há uma espécie de festa em volta do morto. Lembro de João Bosco, lembra? “Tá lá o corpo estendido no chão/ em vez de vela uma foto de um gol". Nem isso, não há nada em volta dele. Curiosos, risinhos.

22h – Continuo pirando. Me bato pela casa falando alto porra, mas esse cara deve ter uma mãe, e uma mulher, um filho, uma tia, um vizinho que seja. Ninguém sabe da morte dele. E nem uma vela ilumina sua morte pobre. Lembro de Elis cantando Onze Fitas, de Fátima Guedes: “Por engano, desgosto ou cortesia/ tava lá morto e posto o desregrado”. Me sinto sujo.

23h – Tomo banho. Não relaxo, nem me sinto mais limpo. Pelo menos uma vela, uma só. Não consigo me controlar. Desço com um pacote de velas na mão. Uma maçada em volta do corpo, fazendo piadinhas. Tento acender a vela, o vento sopra, apaga. Torno a acender, torna a apagar. Um cara pergunta: “Era seu parente?” De certa forma, não digo. O policial me pede para sair, to criando confusão. Deixo o pacote aos pés do defunto. Vale a intenção. Vale? Tô pirando.

24h – Já pirei. Dou um salto da cama, abro a janela, começo a gritar: “Assassinos! Isso é crime” Urubus! Gentalha!” A polícia olha para cima. Bato a janela com força. A polícia chama pelo porteiro interno, querem me levar por desacato à autoridade. Luciano segura, desdobra, convence.

01h – O corpo continua lá. Param mais dois carros. Desce um fotógrafo, arrancam os jornais de cima do corpo, rasgam a roupa dele. Jovem, não deve (devia) ter 30 anos. Já está rígido. Fotografam em vários ângulos, completamente nu. Desamparado. Mais carros param. Festa nos Jardins. “Onze tiros fizeram a avaria/ e o morto já tava conformado”.

02h – Para um camburão, tiram uma caixa comprida de plástico. Enfiam o homem lá dentro. Da janela, espio. Dentro do camburão há pelo menos mais três caixas. Cheias. De caras mortos, como ele. Quem eram?


02h30m – Um policial recolhe os jornais, a mortalha. Outro, com uma mangueira, limpa com jatos d’àgua as marcas de sangue. Não fica nenhum sinal.

Nos dois ou três dias seguintes, compro todos os jornais da cidade. Não sai nenhuma notícia. Continuo a ouvir Elis: “Essa história contada assim por cima/ a verdade não rima, a verdade não rima”. Pois é, a verdade. O quê?


                                       Revista AZ – maio 1989