terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Nelson Rodrigues: O sol sobre o pântano

É bem curiosa essa "geral nos astros" que presidiram o nascimento de Nelson Rodrigues. O texto representa um lado nem tão conhecido de Caio F.: o astrólogo. E para quem quiser mais sobre Caio F. e os astros , Amanda Costa escreveu o livro 360 Graus - Inventário Astrológico Sobre Caio Fernando Abreu.


                 Tarado, devasso, cínico, pornográfico. E sobretudo, genial. Eterno como um                             clássico grego, Nelson Rodrigues e sua obra pairam como anjos malditos 
                     sobre o teatro brasileiro. Para o leitor de A-Z, CAIO FERNANDO ABREU 
              dá uma geral nos astros que presidiram o nascimento do nosso maior dramaturgo.

Ele dizia: “Meus dramas são como a luz cruel do sol caindo sobre um pântano”. E são. Imagine as sombras úmidas de um terreno sombrio, uma terra encharcada onde vermes se retorcem e répteis se enroscam nos troncos de raízes escuras, exposto feito nervos, feridas. Imagine o ar vicioso, espesso, desse terreno onde ninguém pisa. Sinta esse cheiro insuportável de matéria ainda viva, mas em constante processo de decomposição. Relegada para sempre às sombras, esta paisagem pode até ter certa beleza. A beleza maldita do lado oculto, do lado contaminado de todas as coisas – aquele, onde autores como Jean Genet ou Tennessee Williams foram buscar suas histórias. Mas iluminada pela luz do sol – a luz da saúde, da vitalidade – ela se revela em todo o seu horror. O pântano é a alma humana, seus desejos mais fundos. A luz do sol, a palavra de Nelson Rodrigues, que foi capaz de dar forma a essas sombras que, sem ele, permaneceriam para sempre no escuro.

Darlene Glória, a Geni de Toda Nudez Será Castigada
Os pântanos de Nelson já fascinaram muita gente, já passaram por muitas interpretações e visões. Das mais inspiradas, como as de Antunes Filho, principalmente em seu último espetáculo, Paraíso Zona Norte, com duas peças de Nelson (A Falecida e Os Sete Gatinhos), às mais grossas – Como a versão cinematográfica de Brás Chediak para Bonitinha, Mas Ordinária. Mas o cinema também soube acertar a mão com ele: foi de sua obra que Arnaldo Jabor retirou pelo menos duas obras-primas – O Casamento, de um de seus romances, e Toda Nudez Será Castigada, talvez sua peça teatral mais conhecida. Quem esquecerá a voz rouca de Darlene Glória como a prostituta Geni, ofegando numa fita cassete: “Herculano, aqui quem te fala é uma morta!”? O falecido Leon Hirschman realizou uma bela versão, no cinema, de A Falecida; Nelson Pereira dos Santos foi capaz de encarar O Boca de Ouro, lá pelo começo dos anos 60, e até Bruno Barreto, muito coerentemente seduzido pela “breguice” de Nelson (não esquecer que Bruno fez o rodrigueano Romance da Empregada). Sábato Magaldi dedicou-lhe um belo livro, e Luiz Arthur Nunes, prêmio Moliére de melhor autor em 1989, debruçou-se sobre Nelson para escrever sua tese de mestrado para a universidade de Nova York. E não é o Neville de Almeida que está refilmando O Boca de Ouro, depois de ter feito uma versão escandalosa – o preferido de Gramado retirou-se furioso do cinema durante a exibição no festival, há alguns anos – de Os Sete Gatinhos?

Como nas pixações dos muros sobre Elis Regina ou John Lennon, Nelson Rodrigues vive. Estranhamente. Porque, pela lógica, deveria estar superado um autor que teve seu primeiro momento em 28 de dezembro de 1943, com a estreia de Vestido de Noiva dirigida por Ziembinski, no Rio de Janeiro, e que escreveu a maior parte de sua obra durante os anos 50 e 60. Muita água rolou do Oiapoque ao Chuí: o Brasil se industrializou, veio 64, surgiram e sumiram os hippies; os punks chegaram, com os dentes arreganhados, a devastação ecológica e o vírus da Aids. O pântano da obra de Nelson Rodrigues sobreviveu a tudo. Talvez – ou certamente – porque nele estão concentradas as forças mais incontroláveis, e permanentes, do inconsciente humano. Atávicas, arquetípicas. Além de qualquer circunstância histórica.

Nesse sentido, Nelson Rodrigues deixou no teatro brasileiro aquele mesmo tipo de marca que Guimarães Rosa e Clarice Lispector deixaram na literatura. Pode-se falar em antes e depois deles. Pode-se, não: deve-se. E assim como é difícil lembrar o nome de um escritor contemporâneo do porte de Rosa ou Clarice, mais difícil é lembrar um dramaturgo como ele. Apesar da geração de 68, Antonio Bivar, Isabel Câmara, Zé Vicente, Leilah Assunção, ou dos mais recentes (e excelentíssimos) Naum Alves de Souza, Maria Adelaide Amaral, Mário Prata, Nelson paira. Eterno como um clássico grego.

MUITO VIRGEM
Como leitor apaixonado, principalmente por seus diálogos teatrais e sua pontuação psicológica, sincopada, sempre me perguntei porque essa força, essa magia. Sem instrumental teórico para analisá-lo, mas com uma boa dose de paixão, alguma intuição e – suponho – um bom conhecimento astrológico, me ocorreu esta ousadia: como seria o mapa astral de Nelson Rodrigues? Descobri algumas coisas bastante interessantes que, sem a pretensão de revelar algo de extraordinário, imagino que podem contribuir para alargar o conhecimento desse homem fascinante.

Nelson Rodrigues, filho do jornalista Mário Rodrigues, nasceu em Recife, Pernambuco, em 23 de agosto de 1912. Não se conhece, e dificilmente se conhecerá, sua hora de nascimento. O que torna impossível um cálculo exato do mapa e impede a localização do signo Ascendente. Pela paixão, e pela impiedade, seria Escorpião? Ou Aquário, pela carga de transgressão e originalidade que jogou em seu trabalho? Difícil saber. De qualquer forma, apenas com a data de nascimento foi possível descobrir algumas curiosidades.

Silene e as irmãs: Os Sete Gatinhos
Num primeiro momento, o que mais chama a atenção nesse esboço do mapa de Nelson é a concentração de planetas em Virgem – signo da literatura, do espírito crítico às vezes tão exagerado que pode passar por crueldade ou frieza. Em Virgem, no grau zero, Nelson tinha o Sol, a 12 graus Vênus e a 23, Marte. Sexto signo do zodíaco, Virgem forma um eixo carmático com Peixes, o décimo-segundo. Esse eixo Virgem-Peixes proporciona aos que o têm muito forte no mapa um talento especial para contemplar – e para compreender – os grandes sofrimentos de toda a humanidade. Crítico – como são os virginianos – e impiedosos, com três planetas ali. Nelson tinha também (e isso é bastante típico de Virgem) uma preocupação quase maníaca com a saúde (os virginianos são grandes hipocondríacos), a limpeza, a pura. Não o conheci pessoalmente, e é difícil dizer como isso aparecia em seu cotidiano. Mas essa preocupação é óbvia em sua obra. Por exemplo, em Os Sete Gatinhos, todas as irmãs se prostituem para assegurar a integridade e a pureza de Silene. Que acaba por revelar-se, também uma pecadora.

UM TRISTE
Fernanda Montenegro, a Zulmira de A Falecida
Vênus em Virgem, no mapa de Nelson, e na conjunção de Marte, permitia-lhe uma perfeita integração entre seus lados feminino e masculino, entre animas e animus. Mas toda a afetividade e capacidade para o prazer, representada por Vênus, e todo o impulso para a ação (inclusive o erótico), representado por Marte, estão em Virgem, signo frio, contido, obcecado pela castidade. Vênus em queda em Virgem, junto a Marte, assinalam os grandes moralistas e, paradoxalemnte, tambén os grandes sensuais. Ao mesmo tempo, Vênus forma uma quadratura – ângulo tenso de 90 graus – entre Vênus e Júpiter, que estava em Sagitário no dia do nascimento de Nelson, portanto dignificado, pois é o próprio regente de Sagitário. Júpiter em Sagitário dava-lhe uma fortíssima intuição do que era ou não justo, e também – outra vez – talento literário. Mas a quadratura com Vênus também o tornava um exagerado. Exagerado na crítica (Vênus em Virgem), exagerado na impiedade (Júpiter em Sagitário) – sem esquecer também que Sagitário é o signo do humor, e Júpiter nessa posição geralmente dá um requintadíssimos senso de humor. Nelson, sem dúvida, o possuia. Humor negro (a quadratura de Vênus), sarcástico (a quadratura com o ferino Virgem). Além disso, Júpiter em Sagitário formava uma oposição – ângulo tenso de cerca de 180 graus – entre Jùpiter, o expansivo, e Saturno (a 3 graus de Gêmeos), a consolidação, as raízes. Em suas peças, é muito claro o conflito entre o mundo reduzido, fechado, sufocado de (Saturno) e os grandes sonhos (Júpiter). A Zulmira de A Falecida, para redimir uma vida mesquinha (Saturno) trama um enterro glorioso, de matar de inveja os vizinhos (Júpiter).

“Eu sou um triste”, afirmava Nelson Rodrigues. E era verdade. Em seu mapa, o Saturno em Gêmeos forma uma quadratura muito próxima de seu sol em Virgem. Essa posição traz sempre uma sensação íntima de fracasso, inibição (Saturno) para expressar os sentimentos mais vitais (o Sol) e uma visão geralmente sombria da vida. Talvez nesse aspecto – que é também um aspecto literário: Saturno está em Gêmeos, o Sol em Virgem, ambos signos regidos por Mercúrio, planeta da palavra, da comunicação, do dom de expressão verbal – encontre-se, nitidamente, o conflito entre o Sol e o pântano a que o próprio Nelson se referia para definir a sua própria obra. Seu Sol em Virgem, criticamente, iluminava os pantanais de Saturno em Gêmeos.

Mas há também, além dos desafios e conflitos, aspectos fluentes e reveladores nesse mapa. Uma conjunção muito próxima entre o Sol e Mercúrio (a 28 graus de Leão) dava a Nelson uma extraordinária inteligência. Seu sol em Virgem, a capacidade crítica e analítica; seu Mercúrio em Leão, signo do Sol, a capacidade de iluminar com a palavra tudo aquilo sobre o que falava ou escrevia. E não foi outra coisa que ele fez em toda a sua obra, jogando luz sobre os porões. Não devemos esquecer também que Leão é o signo da realeza: com Mercúrio em Leão, a palavra de Nelson Rodrigues era soberana.

PERDÃO ENCABULADO
Há pelo menos mais três aspectos muito reveladores nesse mapa: dois sêxtis – ângulos fluentes de cerca de 60 graus – entre Plutão, o planeta das lamas profundas do inconsciente, do magma vulcânico da mente – e Mercúrio, e Plutão e Sol. Com a palavra de Mercúrio, e com a luz do Sol, Nelson era capaz de formular e iluminar todos os porões do inconsciente humano. Um outro aspecto no mínimo curioso é o sêxtil quase exato entre Netuno, planeta da iluminação, da inspiração e da espiritualidade, em Leão, com Marte em Virgem. A astróloga Isabel Hickey chamou os possuidores desse aspecto de “idealistas práticos”, e a Astrologia tradicionalmente reconhece nele os grandes imaginativos, capazes de filtrar toda a violência que sejam capazes de imaginar através da criação. Claro, não? Nelson nunca praticou todas as taras, incestos e loucuras que povoam sua obra: ele as escreveu.

Cleyde Yaconis em Toda Nudez: A primeira Geni
Finalizando: no momento em que nasceu Nelson Rodrigues, a Lua passava por Capricórnio. Isto é, a Lua, planeta (ou luminar) da emoção, regente de Câncer, estava em Capricórnio, seu signo oposto. Portanto, enfraquecida. O sentimentalismo não se mostrava em Nelson – ou em sua obra. Ao invés de doce e mansa, como seria em Câncer, sua Lua era dura e prudente, em Capricórnio. Mas o que poderia passar como frieza, na verdade era um profundo encabulamento de mostrar os próprios sentimentos. Ou alguém duvidaria que, mesmo com seus finais trágicos, Nelson no fundo ama e perdoa a Zulmira de A Falecida, a Silene anjo-caído de Os Sete Gatinhos ou a infeliz suicida Geni, em Toda Nudez?

Uma profunda piedade pelo ser humano. Nisso, quem sabe, pode ser resumida a obra de Nelson Rodrigues. Uma piedade crítica (tantos planetas em Virgem), que pune ao invés de acariciar (a Lua em Capricórnio), mas verdadeira. Cruel? Não. Ele dizia também: “Sou uma alma da belle époque. Não gosto da minha época, não tenho afinidade com ela. A meu ver, estamos assistindo ao fracasso do ser humano. Isso não quer dizer que mais adiante ele não se levante, mas no momento o ser humano está de quatro.”


Imaginem se, em 1989, ele ainda estivesse vivo... 

                                                   Revista A-Z, novembro de 1989