Paris – Era uma vez um sábado de abril. Sábado é sempre
sábado, igual em Paris, Porto Alegre ou Cingapura. Sempre no ar aquela
expectativa – pizza, cinema ou beijo, não importa – de uma gota de mel para o
domingo. Comprei o Le Monde e o Libération, sentei no café da esquina para
praticar meu mórbido e pátrio esporte diário: procurar notícias do Brasil, que
não desato esse laço. Nunca tem. Mas desta vez – explosão! Como diria Clarice
Lispector – ah, desta vez sim, bem grande no alto da última página: BRÉSIL.
Adiei a voracidade, pedi outro café, fui ao toalete fazer nada, acendi um
cigarro, sorri para uma alemã e depois de uns 10 minutos, absolutamente
natural, só o coração batendo secreto me denunciaria, peguei e li sem fôlego,
morto de sede e saudade.
Olinda, uma das cidades mais belas que conheço, patrimônio
histórico da humanidade. Periferia de Olinda, Recife, Pernambuco, Nordeste do
Brasil, América do Sul. Um seio amputado no lixo. Fome, miséria. Tamanho horror
que minha forma mais eficiente de reproduzi-lo é repetir sua síntese aqui assim
numa única linha para que fique bem claro e medonho e irrecusável na sua
hediondez que ofende a todos nós.
Canibalismo em Olinda.
Voltei ao toalete para fazer aquilo que os bebês e os
bêbados fazem muito, embora tenha passado dos 40 e, hoje, só bebi café e
vitamina C. Dobro o jornal com cuidado e vergonha, para que ninguém leia.
Capricho na pronúncia ao pedir a conta, para que não suspeitem de onde venho e
saio de fininho. Ando sem rumo por Alesia até me atrasar para a entrevista. Eva
Louzon, apaixonada pelo Brasil, faz milhares de perguntas, eu falo do sol, da
energia bruta da terra – axé! Axé – que-aqui-não-tem! -, de Machado e Rubem F.
e Lygia Fagundes e Hilda Hilst e muita música, Gal, Bethânia e Calcanhoto,
cascatas, araras, essas praias murmurantes aonde a lua vem brincar e futuro
resplandecente. Um dia, um dia. Tropeço por brasilidades histéricas, fumo
demais. No metrô um punk antigo demi-moicano ameaça com navalha quem não dá
dinheiro. Não dou, faço o invisível, sempre funciona. Desabo no Marrais de
tardezinha.
Um postal de Isabelle Adjani como Emily Brontë, uma
antologia de contos gay organizada por David Leavitt. Podia visitar sem aviso
Betty Milan, que mora na esquina, telefonar para qualquer um, em português,
assistir Jeanne La Poucelle, Sandrine Bonnaire como meu ídolo de infância,
Joana D’Arc na versão de Erico Veríssimo. Não faço nada: cinemas cheios demais,
ruas cheias demais. Quero voltar para casa, ver TV até a imbecilidade, dormir
sem sonhos. Alguma coisa me falta, desesperadamente.
Estou perdido. Atravesso pontes, viro esquinas medievais. O
dia é cinza e frio como as cinzas dos borralhos. Quero qualquer coisa que não
tenho agora, um país, uma língua, um amor, nesta cidade estrangeira quero me
jogar no Sena, me embriagar alucinadamente. Então eu paro e olho a rua, a casa em
frente.
![]() |
A placa (Gracias, Ricardo Costi) |
Canibalismo em Olinda.
E no entanto eu não desato esse laço. Tão apertado, parece
forca.
OESP – Caderno 2 – Domingo, 1 de maio de
1994
Caio..nos faz sonhar..meu escritor de eleição sempre..bj
ResponderExcluirPerfeito!
ResponderExcluirI love you Caio!
ResponderExcluirSempre com a capacidade e a sabedoria!
ResponderExcluir