Foto de Juca Martins |
Não sei de onde veio essa mania de dividir o tempo em
décadas. Como ele se tornasse mais compreensível e suportável assim
organizadinho, disposto em prateleiras. Penso então que a gente quase sempre dá
nome às coisas para perder o medo delas. Não sei se conseguimos. Mas sei que se
eu falar anos 40 ou 50 ou 60 ou 70, imediatamente você monta uma colagem-painel
na cabeça, onde cabem de Humphrey Bogart a Martha Rocha, de Crush a Aída Curi,
Patricia Hearst e Sid Vicious, Chevrolet Impala e flower-power. Arbitrária ou
não, a divisão funciona. Pelo menos para dar uma certa ilusão de disciplina ao
caos.
Mas se eu falar anos-80, você pensa o quê? Tenho pensado
duas ou três coisas sobre isso. Com a autoridade talvez apenas de estar dentro
deles, em pleno centro vertiginoso e assustador da exata metade deles (junho,
85), perdido entre os 10 milhões de habitantes desta cada vez mais dura Sampa.
E se adjetivo “vertiginoso & assustador” já estou dizendo senão três, pelo
menos duas coisas sobre este tempo. Sinto muito: conto só com o que sinto e os
meus sentidos captam.
Anda tudo muito triste. Engolimos a negação das diretas,
aceitamos a meia-sola Tancredo Neves, devoramos a orgia fúnebre via Rede Globo.
Órfãos, caímos nos braços de José Sarney. Que não escolhemos, mas tudo bem,
cara: trata-se da “Nova República” anunciada pelas centenas de pombos que Fafá
de Belém soltou por aí. Uma mágica: Fafá solta a pomba e, plim-plim!, a Nova
República cai do céu como um maná, solucionando as secas, enchentes, inflação,
fome, desemprego e solidão. Só que não aconteceu nada. Não só em relação a
isso, mas a muito mais, tenho me perguntado assim: a face dos anos-80 não
estará sendo esse indisfarçável furo na cartola de onde deveria ter saído um
coelho?
Não quero falar de Podres Poderes. Há coisas mais graves
no ar. São Paulo atualmente é uma cidade tomada pela paranoia do Aids. Pelo
menos na faixa de gente-como-a-gente: essa parcela mínima e privilegiada da
população que não só come e mora (coisa rara), como ainda por cima ainda lê,
vai ao cinema, essas coisas. Conheço pessoas que não se tocam mais. O que é que
se faz quando aquilo que era possibilidade de prazer – o toque, o beijo, o
mergulho no corpo alheio capaz de nos livrar da sensação de finitude e
incomunicabilidade – começa a se tornar possibilidade de horror? Quando o amor
vira risco de contaminação. Pouco importa se entre homens e mulheres, entre
homens e homens ou mulheres e mulheres. Os médicos acham importante desvincular
a ideia da Aids da homossexualidade, sabia? E pouco importa também não saber ao
certo de onde veio o vírus maldito. As hipóteses não atenuam o fato: a coisa
existe. E mata. Pior ainda: estimula a níveis dementes o preconceito contra a
mais castigada das minorias. Há qualquer coisa de nazismo no ar. Qualquer coisa
de fogueiras medievais para queimar os feiticeiros. Lenha é que não falta.
Então, para nos distrairmos, há o pós. Pós-punk, pós-new
wave, pós-moderno, pós-tudo, pós-pós. E há o new: new catolicismo,
new-jovem-guarda, new puritanismo. Ninguém falou ainda no pré.
Pré-qualquer-coisa. Anos-80 como pré cara a cara com a nossa perdição de
micróbios doentes na costa frágil de um planetinha insignificante? Anda, sim,
tudo muito triste. Tudo foi questionado, experimentado, negado, superado: a
moda caiu de moda. O vazio e a involução tornam-se dolorosamente nítidos se a
gente colocar lado a lado, por exemplo e ao acaso, Beatles e Menudos. Embora eu
até possa concordar que a abobrinha seja uma saudável saída para the horror...
the horror... Os fins de semana paulistanos têm sido pródigos em abobrinhas
para os mais variados gostos, de amantes profissionais a rapazes com problemas
por usarem óculos. Mas a gente não é hiena, certo?
Mas a lesão mais feia, mais feia que a ferida na perna do
mendigo da esquina aqui de casa, corroendo por trás dos modelinhos Company ou
Fiorucci é essa medonha suspeita de que de tanto pestear a natureza, o homem finalmente
conseguiu tornar-se, ele mesmo, a própria peste. Daí, eu também ando muito
triste. E sem entender quase nada.
Revista Domingo, Jornal do Brasil, 2 de junho de 1985
Atenção: A coluna de Caio F. no Caderno 2 do Estadão começou em 1986. Essa crônica pro JB é de antes disso
Atenção: A coluna de Caio F. no Caderno 2 do Estadão começou em 1986. Essa crônica pro JB é de antes disso
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