quinta-feira, 14 de julho de 2011

De volta ao avesso do avesso do avesso


Numa rasante de dois dias e uma noite sobre São Paulo – não, não ficou mágoa dessa relação. Como esses casais que vivem brigando durante anos e depois, ao separar, percebem que deviam ter feito isso antes, pois se afastarem era a única maneira de continuarem amigos, da mesma maneira, olhei o Largo do Arouche e a cidade em volta do 13º andar do Hotel San Raphael.  Sem saudade nem vontade de voltar, mas feliz ao perceber que na “cidade em escombros”, como diz Ignácio de Loyola, um de seus amantes mais críticos, a pequena praça redonda do largo está cheia de flores bem-cuidadas e as bancas continuam verdes.


A boa impressão continua durante a gravação para o programa de Marília Gabriela. A produção é gentil e, de repente, sem que elas mesmas saibam, vejo reunidas no mesmo trabalho pessoas que conheço de lugares diferentes e não via há muito tempo: a própria Gabi, minha ex-vizinha na Haddock Lobo, leitora entusiasmada de Onde Andará Dulce Veiga?, Ninho Morais, o diretor do programa, tempos de José Marcio Penido, Aninha Braga e Samuca Jagger na Girassol da Vila Madalena; Reinaldo Moraes, cronista do programa, de outros tempos na rua Alagoas, noitadas inesquecíveis com Mario Prata, Maria Emilia Bender, Ruy Fontana Lopes, Ana Cristina César. De repente, na platéia, Silvia Poppovic e sua beleza barroca para ajudar ainda mais o astral. Ah São Paulo, penso, e seu grande luxo que em cidade nenhuma existe igual: as pessoas. Pessoas sérias, fiéis, leais, solidárias, discretas, trabalhadoras.
Com Gil Veloso, que é tudo isso também e vivem em Sampa, saio da TV para ver Nanni Moretti e o humor tristíssimo de seu belo Meu Caro Diário. A Paulista é sempre comovente à noite em seu mar ilusório de neón, as garçonetes do quiosque Viena no Conjunto Nacional continuam lentas, e no Cinearte, um dos meus preferidos, mudou a sala de espera, levemente claustrofóbica agora. Saio fascinado por aquele passeio de vespa na praia onde foi assassinado Pasolini, ao som – reconheço espantado – do Köln Concert, de Keith Jarret.

Ileana Kwasinski
Na Manhã seguinte uma saudade súbita me fere ao sol, atravessando a rua em direção ao Almanara, da Oscar Freire, lembro com força e sem planejar de Ileana Kwasinski. Da esplêndida atriz que era, e pôde mostrar isso em Depois do Expediente, peça de um alemão contemporâneo, não lembro o nome, sem uma única palavra ou como o rei de A Vida é Sonho. Não sei se Ileana era paulistana, mas era também, como dizia, séria, fiel, solidária, discreta, trabalhadora. E de um talento que não creio tenha sido explorado até os últimos recursos, talvez inesgotáveis. Sim, estamos partindo, penso sem amargura, mastigando meu homus com suco de laranja. E ainda nem sei que Rofran Fernandes também morreu...

Ah São Paulo, tanta gente lutando numa paisagem urbana que não ajuda na luta, enumero no caminho para o aeroporto, os encontros carinhosos com Gisela Arantes, com George Freire. E aos poucos, pela janela do táxi, o susto antigo que volta. O manto de fuligem envolvendo o topo dos edifícios, transformando o obelisco do Ibirapuera lá embaixo da 23 de Maio numa espécie de escultura abstrata cuja parte superior se perde num céu de sujeira. Os olhos ardem, começo a tossir. Muito sereno o motorista comenta bem natural que, em breve, todos em São Paulo terão que usar máscaras de oxigênio para sair às ruas. Sim, concordo, em breve. Hoje, ontem, já.
E não sinto saudade, percebo da janela do avião. Nenhuma nostalgia de estar lá. Nenhum rancor. Bom ir, bom voltar, bom saber que aquelas pessoas boas continuam lá, outras também, outras não mais. Suspiro aliviado: sim, esse casamento meu com Sampa acabou na hora certa. Mas te desejo, de longe, felicidade. Me deseje também. E saúde, meu Deus.
                       OESP – Caderno 2 Domingo, 30 de Abril de 1995

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