Tenho
uma tia chamada Vilma. A Vilminha, como a chamam até hoje as freguesas de
costura, ou Pavima para nós, seus 500 sobrinhos. Solteirona, romântica,
alucinada, tia Vilma amava no ar. Nunca se soube de um namorado seu. Tia Vilma
lia pilhas de fotonovelas, e cantava. Ah, como cantava, derramando vezenquando
uma lágrima furtiva. Me ninava nas noites frias, com seu repertório heavy:
Dalva de Oliveira, Nora Ney, Linda Batista. Ao invés de Bicho Papão, dê-lhe
Risque; e tome Vingaça, ao invés de Boi da Cara Preta. Com dois, três anos, eu
dormia no colo virginal Pavima, ouvindo Ninguém me Ama. Com cinco ou seis,
cantava com ela obras completas de Lupicínio Rodrigues. Essas coisas marcam
fundo, vocês sabem. Podem marcar para sempre, gravemente até: fazem a fortuna
dos psicanalistas quando a gente fica taludinho...
E Angela
e Cauby, Pavima cantava. De Angela, muito Cinderela. Cauby, puro descorno, ela
adorava. Lembro de uma porta interna de guarda-roupa – lembro mais, do
mosquiteiro suspenso, de filó branco, sobre a colcha de renda também branca
(quarto de moça), da janela aberta sobre o pátio cheio de begônias – e daquela
porta interna do guarda-roupa com fotos de Cauby e Sandro Moretti. Cauby de
bigodinho, orelhas meio de abano. Fino, sóbrio. Usasse faca, tia Vilma puxaria
a dela, bem afiada, se alguém ousasse chamar Cauby de “maricão”. E como
chamavam!
Tivesse
eu Pavima por perto – e não lá nos ermos de Itaqui – hoje à noite a levaria
para assistir Cauby e Angela em As Vozes. Talvez, suprema perversão,
conseguisse fazê-la beber pelo menos uma vodka. Não, não me atrevo a imaginar
tanto. Um singelo copo de vinho, branco naturalmente – quem sabe? Eu ficaria de
porre total, lógico, e falaríamos de todo esse tempo que se foi, e dos que
morreram, e dos que descaminharam, dos que a vida feriu fundo, talvez a velha –
muito velha – e boa – boa no sentido vasto da generosidade – Pavima revelasse
então seu grande segredo indizível. Que deve haver um, fatal. Sobre uma
história que não houve. Homem casado, talvez? Um cunhado, um oficial do
exército, um estudante pobre? Que vil sedutor, meu Deus?
Ao
som das vozes de Angela e Cauby, eu e Pavima. Eu ficaria pensando qualquer
coisa meio longa e complicada, como esta, assim: amar de paixão tresloucada ou
detestar com as mais recônditas fibras do self, achar breguíssimo ou tão brega,
mas tão brega que (como o princípio zen do yin e do yang) chega a ficar
requintadamente chique, qualquer destas atitudes, intelectuais ou emocionais,
em relação a Cauby e Angela não tem nada a ver. Se eu pudesse ver, do outro
lado da mesa, os olhos muito cansados e quase azuis de tia Vilma por trás dos
óculos de lentes grossas, teria ainda mais certeza que Cauby e Angela pairam
infinitamente acima dos nossos pobres e preconceituosos padrões críticos.
Mas claro
que, se eu quiser, posso colocar imediatamente o disco dos Inocentes e acabar
com esse clima. Mas é este clima que não acaba como não acabam Angela e Cauby,
as vozes que só por soarem, independente do que dizem, trazem de volta o
passado de um país inteiro. Fico remexendo à toa em fotos e recortes antigos.
Anoto os nomes dos oito irmãos da ex-operária Abelim Maria da Cunha (Angela):
Abdmar, Abiezer, Ablair, Abiail, Abdiel, Abmael e Abedil. Parece uma oração.
Encontro um elogio de Louis Armstrong, outro de Elis, à voz de Sapoti (e aquele
agudo?). Vou mais fundo, até encontrar – juro – o registro de uma dança
inteiramente dark de Cauby, em 1962. Detalhes não posso dar. Mas é forte.
Aliás, com suas antenas mutantes, o Supla pegou esse lado do Cauby. E Elis,
quando gravou com ele o infernal Bolero de Satã: “Agora me assalta a aflição de
chorar louco e só de manhã”.
Tia
Vilma/Pavima/Vilminha teria hoje talvez uma das mais belas noites de sua vida
em sépia. Ficaríamos numa mesa ao fundo, cúmplices. Tenho certeza que ela
cantaria junto Vida de Bailarina, bem baixinho. E fingindo limpar os óculos,
enxugaria muito dissimuladamente – mas não tanto que eu não percebesse – outra daquelas
furtivas lágrimas.
OESP
– Caderno 2, Sexta-feira, 6 de junho de 1986
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