Essa crônica foi escrita há 23 anos, no último agosto que Caio F. viveu e publicada no domingo, 6 de agosto de 1995, no Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo. Boa leitura.
Sugestões para atravessar agosto
Para atravessar agosto é
preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para atravessar os dias
sem se deixar esmagar por eles, mesmo
que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará
setembro - e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas
deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído,
inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo,
assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah! escrever
tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto
importante: ir, sobretudo em frente.
Para atravessar agosto
também é necessário reaprender a dormir, Dormir muito, com gosto, sem
comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de
agosto: se bons, deixam a vontade impossível de morar neles; se maus, fica a
suspeita de sinistros augúrios, premonições. Armazenar víveres, como às
vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais e sem
muito critério de qualidade. Muitos vídeos, de chanchadas da Atlântida a
Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzsche a
Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem:
qualquer problema, real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente
considere, vagamente onipotente, que isso também passará. Zaps mentais,
emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar
agosto.
Claro que falo em agostos
burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso,
angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós.
Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz
abril, dezembro ou, justamente, agosto. Angústia agostiana é coisa cultural,
sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos - ou precauções - úteis a
todos. O mais difícil: evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou
vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile a
fantasia categoria originalidade... Esquecê-lo tão completamente quanto
possível (santo zap!): FHC agrava agosto, e isso é tão grave que vou mudar de
assunto já.
Para atravessar agosto ter um
amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele
partiu - sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antonio
Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista.
Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto,
viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún ou Miami, ao gosto do freguês.
Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras,
projetos, abraços no convés à luz da lua cheia, brilhos na costa ao longe. E
beijos, muitos. Bem molhados.
Não lembrar dos que se
foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem
vingar-se ou lamuriar-se, e temperar tudo isso com chás, de preferência
ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos,
conhaques - tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de
informação para que as desgraças sociais ou pessoais não dêem a impressão de
serem maiores do que são. Esquecer o Zaire, a ex-Iugoslávia, passar por cima
das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das
bandejas de asas de borboletas - coisas assim são eficientíssimas, pouco me
importa ser acusado de alienação. É isso mesmo; evasão, escapismo. Assumidos,
explícitos.
Mas para atravessar agosto,
pensei agora, é preciso principalmente não se deter demais no tema. Mudar de
assunto, digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim,
veja, bruta e seco:.
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