Quem assistiu não esquece Caio Fernando Abreu chamando Rachel de Queiroz de latifundiária e
reacionária no programa Roda Viva (o vídeo tá no youtube). Pois esta carta aqui tem o mesmo teor, com a ira santa de Caio voltada ao Pasquim.
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O entrevistão de O Pasquim, em 1977 |
Era 1977. A Codecri, editora
do Pasquim, publicou Histórias de Um Novo Tempo, coletânea de contos com seis autores "novíssimos" - Caio Fernando Abreu, um deles. E quatro foram reunidas para uma das célebres
entrevistas, com direito a chamada de capa: "A ala jovem da
literatura dá seu recado". O Pasquim, então, andava
distante dos tempos mais libertários como o da entrevista com Leila
Diniz, por exemplo, e havia uma nova geração chegando - Caio, tinha 29 anos e já havia publicado três livros: Inventário Do Irremediável (Contos, 70), Limite Branco (romance, 71) e O Ovo Apunhalado (contos,75), o
primeiro a despertar mais atenção.
Com quatro páginas, o
entrevistão rendeu uma carta em que Rogério Monteiro dizia que conhecia Caio F.
e que ele renderia sozinho muito mais do que os que foram reunidos. A resposta
do Pasquim foi debochada (no final). Resultado: Caio Fernando Abreu, furioso,
escreveu uma carta para o Pasquim sobre o que achava da entrevista, do reacionarismo
do jornal e muito muito mais, praticamente um documento sobre aquele quase
final de década quando Rita Lee era presa com maconha, Odara do Caetano Veloso era
alvo de "patrulhas ideológicas".... Não lembro de ter lido essa carta
em nenhum dos livros publicados sobre ele.
Abaixo a carta de Caio. E no
final, a que a originou.
A CARTA DE CAIO F. PRO PASQUIM
Porto Alegre, 18 de agosto de 1977
Seu Edélsio (?):
Como não costumo mais ler O Pasquim, somente hoje, através de outra pessoa, tomei conhecimento da carta enviada a vocês por Rogério Monteiro, a respeito da entrevista sobre Histórias de Um Novo Tempo. E também da resposta. Grossa e imbecil como, suponho - já que não perco tempo com imprensa pseudoliberal, chauvinista e reacionária -, costumam ser as respostas de vocês.
Certamente, ou quase, vocês
não publicarão esta carta. A não ser com os costumeiros e arbitrários cortes.
Ou/e com uma resposta idiota. Antes de mais nada, quero deixar algumas coisas
bem claras: não tenho o hábito de escrever para jornais ou revistas (a não ser
quando pegam no meu pé) e nem estou querendo aparecer no Pasquim. Caretice por caretice, meu irmão, no final das contas, a Manchete é o mesmo caldo.
"Seu Edélsio" - eu
não admitiria nem que Otto Maria Carpeaux (você já ouviu falar?) viesse a dizer
que os autores - ou eu, especificamente - de Histórias de Um Novo Tempo - "na base do pau" poderiam
"aprender alguma coisa que não fosse ler livrinho ou revistinha estrangeira".
Seu moço, eu estou fazendo 29 anos, tenho muita estrada nas costas e não sou
nenhum imbecil. Simplesmente dispenso orientações - de quem quer que seja - no
meu trabalho de criação literária. Censura basta uma, cara. E vocês confundem
descolonização cultural com fechamento cultural: proibir ou criticar a leitura
de literatura estrangeira (e você acha que os autores que leio - estrangeiros
ou não - alguma vez escreveram livrinhos?) é exatamente a mesma
atitude de baixar censura prévia sobre a imprensa estrangeira. Isso é
FECHAMENTO CULTURAL, moço. Isso é FAS-CIS-MO, chê.
E tem mais: eu ia ficar
quieto no meu canto porque tenho nojo de intrigas e bastidores literários, mas
chega de levar paulada e ficar quieto. É assim que o nosso povo está vivendo há
13 anos.

Olha, moço, eu não tenho
moral pública nenhuma a defender. Eu sou exatamente o que sou, ou o que a
geração estúpida de vocês fez com que a minha se tornasse. Acontece que neste
país, e nesta imprensa moralista, verdade é sinônimo de escândalo. E é, no
mínimo lamentável, perceber que justamente vocês, que se supõem tão liberais,
venham com esse tipo de atitude MEDIEVAL. Tapar o sol com a peneira, cara? Mas
se o mundo tá podre, meu irmão. Se tá tudo caindo aos pedaços e a única coisa a
preservar (difícil quando se está em contato com certo tipo de máfia) é uma
certa dignidade humana.
São caras como vocês que
estão tentando destruir Caetano e Gil. São caras como vocês que provocaram,
indiretamente, a loucura, a prisão e a cegueira de Maura Lopes Cançado. São
caras como vocês que prenderam Rita Lee. São caras como vocês que expulsaram
José Celso Martinez do país. Ou Rogério Sganzerla. Ou Helena Ignez. Ou Julio
Bressane. Por não terem se habituado ainda à idéia de que OS TEMPOS SÃO OUTROS,
de que a década do 70 tá no fim e todos os conceitos marxistóides de vocês
criaram mofo, de que entre a minha geração e a de vocês existe um abismo onde
cabem o tropicalismo, os Beatles, os tóxicos, as viagens de carona, as
comunidades, a macrobiótica, a ioga, Timothy Leary, a ecologia, o aumento no
índice de loucura y otras cositas más. Não há diálogo entre nós porque a mente
de vocês é estreita demais.
Quanto ao HISTÓRIAS DE UM NOVO TEMPO, suponho que
a Codecri já tenha faturado bastante em cima dos"novíssimos". É bom
dizer: a Codecri não nos deu sequer passagem para ir até o Rio (eu moro no Sul,
e sou jornalista, e ganho pouco). A Codecri não divulgou o nosso nome nos
lançamentos: ficamos sempre à sombra de Otávio Ribeiro e seu Barra Pesada, tratados como "pobres
jovens a quem estamos dando uma chance". Eu quero que as chances de vocês
vão para o inferno. E se quiserem colocar meu nome no índex do Pasquim (deve
ter um, não? pois até o Vaticano tem) eu vou achar até bom.
Talvez eu devesse ser mais
contido ou mais brittish (para seu
governo, moço: leio inglês, espanhol, italiano, francês, entendo alguma coisa
de sueco e estou estudando alemão) - já que para Félix de Athayde não passo de
um "inglês de fronteira". Inglês de fronteira que aprendeu na porrada
a lidar com gente medíocre e baixo-astral, e que cada dia prefere conhecer mais
as plantas e os animais do que seres humanos de um certo tipo.
Eu acho tudo isso péssimo, e
gostaria de não ter sido praticamente forçado (por mim mesmo) a escrever esta
carta. Mas isso é exatamente o que penso a respeito de vocês, e de toda uma
imprensa dita liberal. A gente fica pensando na mysérya do lyberalysmo, de Glauber Rocha. A propósito, vocês já
ouviram Nara Leão cantando este Erasmo Carlos: "mas não polua minha
cultura / não venha dividir comigo sua autocensura/ me desencontre/ não me
prostitua/ Se não seremos mais uma carcaça em desgraça por aí"
Mas a minha (e a de minha
geração) grande vingança, bichos, vocês jamais entenderão: é que vocês nunca
conseguirão ficar ODARA, entendeu? O mais são lembranças agradáveis do tempo
que Luiz Carlos Maciel perdeu fazendo páginas e páginas para vocês.
Meus pêsames.
Sem açúcar nem afeto (P.S.) Rogério
Monteiro existe, palhaço, é um
jornalista gaúcho que vive em Salvador. Flagrou? Po*** nenhuma.
Caio Fernando Abreu
(Rua Chile, 661, Jardim
Botânico/Porto Alegre, RS)
Brittish
é com um t só (PS: ESSA FOI A "RESPOSTA" DO PASQUIM)
A CARTA DE ROGÉRIO MONTEIRO
"Escuta, Edélsio, eu
não me ligo nesse negócio de ficar escrevendo cartinhas, mas resolvi uma
exceção para levar até vocês - editores de uma das poucas fontes de informação
"legíveis" do país - meu protesto pela bundamolice que foi a
entrevista "Quatro Histórias do Nosso Tempo" (Pasquim 422). Digo isso
porque conheço bem a obra do gaúcho Caio Fernando Abreu e garanto que ele
sozinho teria condições de dar um recado melhor nas quatro páginas gastas com a
matéria. Dos demais participantes, conheço apenas os trabalhos apresentados no
livro editado pela Codecri. Mas acredito que teriam muito mais a dizer e só não
o fizeram por serem cortados, agredidos e, principalmente, condicionados pelos
entrevistadores (destaque para aquela besta do Cícero Sandroni) a colocar todo
papo no plano político direto. Acho que vocês estão velhos e... "ROGÉRIO
MONTEIRO" (Salvador (?) BA (?))
Concurso
de Contos, "Rogério Monteiro", não é aqui, não. E qualquer tentativa
de colocar qualquer papo em qualquer tipo de plano político direto é sempre
saudável. "Rogério Monteiro", "você" acha que eles foram
agredidos, é? Antes sesse. Ao menos assim poderiam, na base do pau, aprender
algumas coisa que não fosse ler livrinho ou revistinha estrangeira. Vá
emborgear um cortázar, "Rogério Monteiro". E teu sotaque, além do
mais, é de Minas, nunca da Bahia. Te Flagrei, boneco!!!
Neste dia do roda viva, Raquel foi fenomenal, como boa e inteligentíssima intelectual livre e amante da liberdade de pensamento, que não dava corda para os patrulheiros(canceladores de fatos). A obra dela acrescentou muito para nós mulheres, mesmo não sendo feminista, ela liberta com vida e obra, a mulher. Ela é o exemplo vivo e literário da potência e da mulher que não se coloca como objeto sexual e nutre o intelecto. Quem é Caio, diante uma Raquel? Raquel não tem a misoginia dos personagens masculinos do Caio. Raquel liberta e potencializa a nação e a natureza humana, porque ela enxerga e testemunha a vida.
ResponderExcluirRachel de Queiroz foi, sem dúvida, uma grande escritora, mas também teve um lado político difícil de engolir. Ela apoiou o golpe de 1964 e defendeu o regime militar no início, mesmo quando ficou claro que ele perseguia, censurava e torturava opositores. Só quando a repressão se intensificou é que ela se afastou um pouco, mas nunca fez uma autocrítica real. Dizer que ela libertava mulheres sem ser feminista é complicado. Ela mesma desdenhava do feminismo, mesmo vivendo num tempo em que as mulheres ainda lutavam por direitos básicos. Sua literatura é importante, mas não tem o mesmo impacto transformador de escritoras como Clarice Lispector ou Carolina Maria de Jesus. E diminuir Caio Fernando Abreu nessa comparação não faz sentido. Ele trouxe para a literatura uma sensibilidade rara, falando sobre amor, dor e marginalização de forma intensa e humana. Seus personagens não são "misóginos", são profundos, cheios de conflitos, como a vida real.
ExcluirRachel de Queiroz merece ser lida e discutida, mas sem apagarmos suas contradições. Apoiar um regime que calou tanta gente não é detalhe.