Revista Paralelo, Outubro de 1976 |
É raro esse texto publicado
em outubro de 1976 no primeiro número da revista Paralelo - e tenho a impressão
de que não está em nenhum livro. Bem poderia ser um capítulo de uma
autobiografia. Em Porto Alegre, logo depois da publicação de O Ovo Apunhalado, às vésperas de
completar 28 anos ("vividos aos trancos e barrancos"), ele ouve de
Juarez Fonseca, editor da futura revista, "tu vai ter uma página só tua na
Paralelo, pra escrever o que tu
quiser"). Daí surgiu esse Que se há de fazer?, naquele estilo
completamente Caio F., com um sabor de primeira coluna escrita por ele.
Que se há de fazer?
Por favor, você que está aí me lendo agora, você tem alguma sugestão? O que é que a gente faz quando tudo parece ter se tornado incolor - inodoro - insípido - inclusive ou/e principalmente nós mesmos? Como é que a gente deve agir dentro de um terremoto interno (ou implosão subjetiva, para usar uma palavra da moda)? Gabriel de Britto Velho, você que apaga tão bem o cigarro no peito, me diga o que se pode fazer quando o peito está vazio e não há nada para ser dito. Tentei, eu estou tentando: já faz uns dois meses que o Juarez Fonseca chegou pra mim e disse olha, tu vai ter uma página só tua na Paralelo, pra escrever o que tu quiser. Eu fiquei aterrorizado e disse, mas eu não tenho nada pra dizer, Juarez, acho que não disse, só pensei, bem ainda tem DOIS meses pela frente, até lá é impossível que não pinte nada. Não pintou nada, em dois meses não saiu coisa alguma. Fiz uma pequena pesquisa de mercado, o Giba Rocha disse que tinham me convocado porque um certo depoimento que eu havia dado à revista Escrita - em tempos, digamos, mais veementes - tinha comovido muita gente e que portando eu parecia o cara-_mais-indicado-a-servir-de-porta-voz-de-uma-certa-faixa-etária-de-uma-determinada-geração (ele não usou essas palavras nojentas, disse dum jeito bem mais digno) - eu quis dizer que achava que não era nada disso, que eu só tinha publicado uns troços aí e contado umas coisas que tinham acontecido comigo e com outras gentes que conheço, mas de novo não disse nada, talvez por vaidade ou messianismo idiota fiquei pensando não, quem sabe eu poderia mesmo ser esse tal porta-voz (algumas tendências megalômonas às vezes mal controladas). Acontece que não sou e não quero assumir esse papel, porque - estou usando o máximo de, desculpem, sinceridade - não sirvo nem pra porta-voz de mim mesmo. Nos últimos tempos tenho me movimentado com dificuldade dentro dos meus escombros-de-dentro, por uma série de razões demasiado pessoais para serem trazidas ao baile (trata-se de um baile?), ando com uma autocrítica violentíssima e não consigo, simplesmente não consigo pensar organizadamente (?) ou ter ideias claras ou/e precisas sobre as coisas, quaisquer que sejam. Eu disse: quaisquer. Nas cartas que tenho escrito ou nos meus rabiscos solitários (e vis, talvez) no meio da noite, acabo caindo sempre na mais lamentável das auto-lamentações: dói, tudo dói, DÓI PRA CACETE, meu irmão, como uma nevralgia psico-espiritual (!), parece que uma peça importante para o meu funcionamento simplesmente quebrou, e eu não sei o que fazer, e tenho consciência de o quanto isso pode parecer ridículo e juvenil, só não estou mais a fim de fingir que tudo-bem, você me entende? e é isso mesmo que eu sou "esse ter nascido me estragou a saúde" ambulante e crônico. Mas o que estou tentando explicar: não me sinto em condições de escrever página nenhuma para Paralelo, desculpa, Emílio Chagas, você é o melhor companheiro pra beber e falar de Scott Fitzgerald e Lima Barreto que conheço, desculpa, Giba Rocha, desculpa, Juarez, eu amo vocês, mas. Entre algumas coisas que pensei em escrever, uma até chegou a ser esboçada: uma carta aberta para o Jaime Gargioni, jornalista e gente que uns conheceram, outros não, e que deve estar na Inglaterra ou sabe deus onde, visto que os Correios e Telégrafos não me entregam as cartas do exterior (qual é? não trafico drogas nem informações watergatianas...), mas a carta, a carta era também queixosa, autopunitiva, bodienta, a única coisa legal era um trecho sobre a Rita Lee, mas atualmente o que se pode dizer de carinhoso sobre ela é impublicável ou/e punível, pelo menos do meu ponto de vista paranóico convicto. Pensei também em dar uma geral no chamado boom-da-literatura-brasileira, mas todo mundo já falou laudas e laudas sobre isso, eu não teria nada de novo a acrescentar, a não ser o nome de alguns que acho muito bons e que estão sendo esquecidos injustamente (porque o boom, desconfio, é um boom de fundo de panela) - Lucienne Samôr, Antonio Carlos Vianna, Hilda Hilst, Júlio César Monteiro Martins, Luiz Fernando Emediato - e que também não são encontrados nas livrarias porque não são distribuídos decentemente ou nem sequer encontraram editor. Além disso, dizer o quê? Que é isso aí? Mas se tenho certeza que não é nada disso. Sei, sei que talvez esteja desperdiçando o que se chama uma-excelente-oportunidade para, sei lá, rasgar a bandeira, falar mal de todo mundo, dizer coisas altissonantes que estremecessem as nações e os povos, eia, sus, avante guerreiro - e agora me lembro do monólogo de Izabel Ibias em Sarau Das Nove às Onze (que, segundo o centro acadêmico da Filô era um espetáculo-alienado-elitista-e (como é que se diz mesmo?) - ah: pequeno-burguês: "Eu gostaria que as pessoas pegassem fogo com as minhas palavras. Mas essas palavras eu não tenho". Pois é. E no momento não me sinto sequer em condições de fingir para alguém/ninguém que tenho coisas pra dar ou dizer, exceto desorientação, amor contido, raiva e nojo. Às vésperas duns 28 vividos aos trancos e barrancos, nada tenho de grandioso a declarar, exceto mediocridades como me-sinto-profundamente-cansado-e-cada-manhã-é-uma-batalha-insana-inventar-um-motivo-pelo-menos-razoável-para-deixar-a-cama-e-enfrentar-as feras. Psiquiatra, já tenho um, não se preocupem, clínica não resolve - quem assistiu Family Life concorda comigo e, porra, suicídio, também não, quero pelo menos ver no que vai dar tudo isso. E é justamente a mim, escapista, subjetivo, mórbido e covarde, que vêm pedir essa tal página. Tem a Tania Faillace, uma das melhores escritoras desta terra, tem o charme contracultural do Eduardo San Martin, tem a secura-ponta-de-faca do Carlinhos Carvalho, tem a Ieda Inda linda e índia lá em Florianópolis, tem a música da linguagem do Sergio Caparelli - logo eu? E justamente agora? Ô, caras, eu tô perdido no meio do mato, ando juntando todos os meus cacos para ver se continuo existindo e entre todos eles não consegui encontrar absolutamente nenhum que me pareça digno de ser explorado literária ou jornalisticamente (argh!) e trazido na bandeja, sangrento e palpitante ao (des)conhecimento de vocês. Pilhas de frustrações, potes de amargura, jarras de desilusão, fadigas e dores tão mesquinhas e prosaicas e inultrapassadas (porque, acima de tudo, sou ainda um imaturo - ou, segundo Paulo Hecker Filho,um delicado: certo, que escreveu Internato tem o direito de chamar até Jean Genet de delicado) que eu não conseguiria fingir que sou capaz de superá-las para produzir uma brilhante e objetiva página para a Paralelo. Já não acredito em brilhos, minha fase de purpurina já passou, e a obetividade - bem, o que é mesmo objetividade? Que fazer, então? E os destinos da nação, e as dores do povo? Hoje é quarta-feira, prometi ao Emílio que entregaria a página amanhã - são onze horas da noite e tudo que me saiu até agora foi essa deplorável entregação: isso. A garganta ardida de cigarros, pobre rapaz, a língua gosmenta de café, coitado, costas doloridas, infeliz de mim. Tem lua cheia lá fora e sobre a escrivaninha, ao alcance de minha mão, Mário Quintana, Kafka e Adélia Prado. Quem sabe Kafka me salva. Abro ao acaso: "Depois de quatro visitas, M. se vai, parte amanhã pela manhã. Quatro dias mais tranquilos, em meio a dias de tortura. Há um longo caminho entre o fato de que sua partida não me entristeça (pelo menos não me entristeça realmente) e o fato de que sua partida me entristeça infinitamente. Francamente: a tristeza não é o pior". Bem, acho que não ajuda muito... M. será Milena? Ou Max? Reticências. Ah: para complicar tudo ainda mais, hoje estou naquele estado típico de quem esperou um telefonema a tarde inteira, sem receber (é ume estado elitista, concordo, afinal, só uns 10% da população dispõe de telefone - mas acontece). Vocês sabiam que vão destruir Triunfo? Eu gostaria de escrever intensamente sobre as muitas viagens à Triunfo e as pedras na beira do rio e a travessia de barca e os cogumelos e os jasmins-do-cabo e de como me assusta que justamente ali vá ser instalado o tal Monstro Petroquímico (dizem que tudo-bem, porque os ventos vão soprar tudo pras bandas de cá...). Mas jamais teria argumentação suficientemente, digamos, embasada (argh!) para modificar alguma coisa. O problema é esse, um escritor, um ficcionista, melhor dizendo, não modifica absolutamente nada. As grandes sacanagem sociais continuam acontecendo apesar das nossas ficções. Eu não estou querendo que você (ô, cara, você ainda está aí?) pense que. Ou não. Sei da minha absoluta ineficiência como escritor. Escreve talvez por uma espécie de incompatibilidade-de-gênios com a vida, escrevo para reinventar, para organizar o caos, para não enlouquecer de impotência, para re-fazer. Mas não pense que não sei do inútil disso. Mário Quintana, Mário Quintana talvez tenha algo a dizer sobre. Abro, encontro: "Nenhuma pergunta demanda resposta / Cada verso é uma pergunta do poeta / E as estrelas... / as flores... / o mundo... / são perguntas de Deus". Os homens também são perguntas de deus, Quintana? E não demandam resposta? Sinto muito, gostaria de ser capaz, hoje, aqui, agora, de dizer algo dramático ou poético ou revolucionário ou profundo ou doloroso ou etc. O mundo. Os homens. Deus. Pois é. Uma quarta-feira besta, com uma lua-cheia besta no céu, a Rua da Praia estava cheia de gente besta (passar na Rua da Praia ao anoitecer é concluir que a explosão demográfica é algo in-cons-ten-tá-vel), vim a pé num ônibus 77 (esotérico...), fui pisado, humilhado e ofendido, a única pessoa que poderia ter transformado este dia num negócio menos besta não estava em casa (você nunca tá em casa?) e foi besta demais eu precisar subir noutro ônibus e tomar banho e jantar e engolir uma xícara enorme de café preto e fumar incontáveis Hollywoods tentando ser absolutamente honesto, mas só conseguindo tornar tudo ainda mais besta, onde andará você nessa besteira toda? Chega, Adélia Prado, quem sabe: "Vamos dormir juntos, meu bem / sem sérias patologias:/ Meu amor é este ar tristonho / que eu faço pra te afligir,/ um par de fronhas/ onde eu bordei nossos nomes com ponto cheio de suspiros". O nome é Psicórdica, às vezes dá vontade de sair gritando Porto Alegre afora: "Vamos dormir juntos, meu bem/ sem sérias patologias". Às vezes parece que a tal revolução sexual não chegou por aqui - é preciso montar uma barraca na Feira do Livro só com obras de Wilhelm Reich e um cartaz bem grande com esta frase de Buñuel: "Semen retetum venenum est". Que se há de fazer, que se há de fazer? Não costuma ser assim o tempo todo, mas hoje é um dia especialmente besta. Como costumar ser os dias numa cidade (num mundo?) onde as pessoas cada vez se falam menos, se tocam menos e têm menos esperança ou alegria - ou será que estou projetando? Acho que não, Flavio Oliveira já falou disso melhor que eu no Osso. Quem assistiu O Osso me entende, e sabe que é assim que nós estamos, que nós temos nos equilibrado na corda bamba deste Paralelo 30 (como é que é? não era um lugar altamente esotérico? não aconteceriam coisas incríveis por aqui?). Ficamos à espera de acontecimentos incríveis, ficamos à espera. E já faz tempo, e a sopa já esfriou, e a mosca já pousou. Alguém me disse, já faz tempo, num bar: - "um dia alguém precisa virar a mesa ao invés de só pedir outra Brahma". Arrotou, chamou o garçon (seria o Isaac?) e pediu outra.
Revista
Paralelo, Porto Alegre, Outubro de 1976