Conheci Santa Teresa em 1968. E era tão bonita que nem
parecia real, mas locação de filme brasileiro de época, com o casario colonial
de portas e janelas coloridas feito pintura primitivista, o sobe-desce das
ladeiras e o Rio de Janeiro esparramado lá embaixo. Jurei encantado: um dia, ah
um dia ainda venho morar aqui.
Cumpri a promessa. Lá por 1971, fui morar numa espécie de
minicomunidade hippie com Lima, Lili e Tereza, perto do Morro Silvestre. Nos
fundos do apartamento, um abismo de bananeiras, flores tropicais selvagens que
ninguém sabe o nome. Vezenquando alguma cobra atravessava a rua, bem natural. E
nós tão hippies, mas tão hippies que volta e meia, geralmente nos sábados à
tarde, o pintor Luiz Jasmim (onde andará?), que morava ao lado, colocava as caixas
de som na janela e a trilha sonora de Hair bem alto, só pra nós. Os acordes de
Aquarius ou Let the Sunshine in eram uma declaração de simpatia ao mesmo tempo
explícita e delicada. Se éramos felizes? Não sei, éramos jovens. Além disso
havia Santa Teresa em volta e aquele exagero de beleza da Baía da Guanabara,
que podia ser vista até da janela do banheiro. Nem teve importância que tudo
terminasse numa dançada federal. Saímos de lá corridos, feridos, assustados.
Normal para a época. Afinal, quem não dançou nos anos 70 nem sequer sonhou.
Mas não me dei por vencido. Em 1982 voltei para morar
outra vez em Santa Teresa. Desde vez no lendário hotel do mesmo nome, onde reza
a lenda, morou Raul Seixas. Durante quase um ano, enquanto escrevia Triângulo
das Águas, me dedicava a longas caminhadas pelas ladeiras de calçadas
estreitas, pegando amizade com a população do bairro. Naquele tempo, e nem
tanto tempo assim faz, por incrível que pareça as pessoas não tinham medo umas
das outras. Violência? Vez por outra um pivete roubando relógio ou corrente de
ouro de turista tonto no bondinho, e a história era comentada durante uma
semana. Mas tiro, bala perdida, mortes e feridos, isso nunca. Essas coisas não
cabiam lá.
Santa Teresa ficava no interior da cidade do Rio de
Janeiro. Santa Teresa, qualquer coisa entre Paraty e as cidades coloniais
mineiras, era pacífica, preguiçosa, suavemente monótona. Feito uma foto em
sépia, aquarela primitiva, vila fora do tempo. À noite dava para sentar no muro
caiado de branco, ouvindo as mangas maduras demais se esborracharem no chão,
sentindo o perfume de dama-da-noite solto no ar. E quando se descia até o Rio e
ficava muito tarde, e os motoristas de táxi recusavam-se a subir, dizendo que
os trilhos dos bondes cortavam os pneus, ia-se a pé mesmo, por quebradas
estreitas da Glória, por intermináveis escadarias do Cosme Velho. Havia grilos,
vaga-lumes, perfumes soltos no ar um pouco mais frio no morro. E as luzes da Guanabara,
maravilhosas e perigosas, lá longe. O melhor de Santa Teresa, talvez, era que o
Rio de Janeiro era uma coisa que você podia ou não usar, mas estava sempre lá.
Agora acabou. O que leio nos jornais e vejo na TV nas
últimas semanas me deixa doente. Ainda mais doente. Santa Teresa sangra,
transformada em Sarajevo tropical, em Chechênia, invadida, estuprada. As
pessoas abandonam as casas e fogem para qualquer lugar, escondendo o rosto.
Balas perdidas cruzam o ar. Não, não sei se é suficiente chorar o que se perdeu
e rezar pelo que ficou. Sei que, por conta disso, acabei achando um pouco
ridículo FHC todo sorridente ao lado da rainha da Inglaterra e todas essas
comemorações do fim da 2ª Guerra, enquanto Santa Teresa agoniza, desamparada e
bela, no alto daquele morro. Quem pode fazer alguma coisa que faça. E quem
pode?
OESP
– Caderno 2 – Domingo, 14 de maio de 1995
Tão atual... quanto belo. :)
ResponderExcluirEle, sempre incrível.
ResponderExcluirObrigada pela oportunidade de ler tais textos. ;***
Ele, sempre incrível.
ResponderExcluirObrigada pela oportunidade de ler tais textos. ;*** (2)