“Ando apaixonado por cachorros e b.../ (....)
porque eles sabem que amar/ é abanar o rabo, lamber e dar a pata” – com estes
versos sangrados, indecentes (de Quarta-Feira, com Zé Luíz), outra vez Cazuza
joga na nossa cara seu estilo. Onde convive com essa estranha fusão de Joplin
com Lupicínio, Jim Morrison com Nelson Rodrigues, passando por Cartola e Angela
Ro Ro. Só se For a Dois (Polygram, produção de Ezequiel Neves e Jorge
Guimarães) vem desacatar aquelas velhas carpideiras dos tempos de barba e
bolsa, incapazes de admitir que, depois de Chico e Caetano, aconteceu algo na
MPB. Aconteceu, sim: chama-se Cazuza. (ou Marina, ou Titãs).
Caio e Cazuza em 89. Foto: Vânia Toledo |
Mas principalmente Cazuza – voz anos 80, de
romantismo poluído pelo escrach, onde o lirismo pode brotar de uma flor jogada
no lixo em que o poeta fuxica e, entre o blues e o rock, transita por amores
que duram até a Constante Ramos, por nome de transas passadas agora gravadas em
neon. Cazuza às vezes lembra Roberto Carlos, mas um Roberto que, ao invés de
ter-se tornado uma espécie de “namoradinho do Brasil”, tivesse acompanhado o
enlouquecimento dos tempos. A influência parece assumida em letras como Solidão
Que Nada, na referência àquelas curvas da estrada. Não a de Santos, mas de
qualquer paisagem urbana.
Paisagem que inclui “a estranha
natureza-morta dos que não têm dor” (de Completamente Blue, parceria com o seu
guitarrista Rogério Meana, ó ótimo companheiro de Medieval II, do disco
anterior, e mais quatro neste), uma releitura inspirada de Oswald de Andrade,
em Balada do Esplanada, e, em cada uma das 11 faixas, esse povo urbano sobre e
para quem canta. Ouví-lo é sentir acompanhado, encontrar um irmão maldito.
Alguém – e ninguém como ele na MPB – capaz de exprimir tão densamente essas
esquizofrênicas (e tristíssimas) emoções cosmopolitas.
Não importa muito se Só Se For a Dois às
vezes parece fazer certa média com o som das FMs (afinal, é preciso vender e
viver), porque na maioria das faixas ele quase radicaliza naquela linha da
proibida Só as Mães São Felizes – o melhor de Cazuza. Amparado pelos bons músicos Meanda, João
Rebouças, Nilo Romero e Fernando Moraes, há a retomada da parceria com Frejat
(em Heavy Love, Ritual e a contagiante Culpa de Estimação, o aperfeiçoamento
daquele jeito “declamativo” de cantar, que o torna inconfundível, e sobretudo o
pique raivoso. “Minha sede de viver é uma ameaça atômica” – ele grita, em O
Lobo Mau da Ucrânia. Espera-se que Cazuza continue atento ao fato de que “os
fãs de hoje são os linchadores de amanhã”, e não apenas brinque de bancar “o
depressivo na areia da praia”, para não diluir seu trabalho. Quanto mais rouco
e louco, melhor. Para embalar nosso outono neste fim de século contaminado.
Sa(n)grado, indecente. E pouco importa se é doença ou paixão.
OESP – Caderno
2, 24 de março de 1987
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