O autor de O Inventário do Irremediável, Limite Branco e O Ovo Apunhalado, é gaúcho de Santiago e tem 28 anos.
Iniciou mas não concluiu cursos de letras e de arte dramática. Tinha 18 anos
quando escreveu Limite Branco.
Andei por muita estrada. Morei em muita
comunidade. Sou meio nômade, não consigo ficar mais de um ano numa cidade. O
que procuro é o que todo mundo procura. Amor, felicidade, liberdade, sentir-se
digno. Assumi essa procura e portanto a minha instabilidade. Tentativas de
suicídio, pirações, dançações, viagens, divãs de psicanálise, porradas as mais
variadas, tangos & rock, ordens de despejo, abandono de dois cursos
universitários, iluminações ilusórias, excesso de cigarros, insônias,
macrobiótica, solidões, teatro, amores malditos – esse o meu background. O mais
engraçado é que parece proibido falar ou escrever sobre ele, mesmo tendo
vivido. Mês passado, numa barraca em Santa Catarina, descobri que tudo que eu
precisava cabe na minha mochila (aliás, emprestada, ainda não tive grana para
comprar uma).
Literatura é vida. Sou um escritor, mas meu
compromisso principal é com a vida. Em todas as suas manifestações. Não
acredito naquele tipo de cara que fica sentado entre livros enquanto a vida
passa além da janela, sem que ele a toque. Os livros são importantes. Mas a vida é sempre muito mais. Literatura é
também magia. Magia é aquilo que não compreendemos com a razão, e que no
entanto existe.
Nasci num tempo (1948) em que a barra
começava a ficar pesada demais para que as pessoas conseguissem continuar
acreditando no mundo que elas próprias inventaram. Passei a maior parte da
infância conversando com uma bergamoteira. Agora descobriu-se que elas sentem e
pensam. O menino que eu fui sempre soube disso. A repressão posterior, a
deseducação na escola, na família, no trabalho, na sociedade em geral,
encarregou-se de atrofiar a sensibilidade natural. Minha luta é no sentido de
recuperar o mais possível aquela visão de mundo (que não era uma visão, mas um
estar-dentro e um estar-com). “Eu nasci descalço/ pra que tanta pergunta?”
Portanto não sou exatamente um intelectual.
Não suporto normas rígidas, seja de comportamento ou de criação literária. Uma
letra de Rita Lee, para a minha cuca, pode ser tão importante quanto um poema
de Fernando Pessoa. Por que não? E não me venham com essas estórias de que
pertenço a uma geração alienada & colonizada. Pertenço a uma geração que
sacou a grande fraude de TUDO, a partir do próprio comportamento humano. Viajei
um pouco e pude perceber que esse não é um fenômeno exclusivamente brasileiro.
Já nos anos 50 Norman Miller previa bandos de psicopatas-filosóficos (hipsters,
como ele chamou) desligados da cultura e da civilização estabelecida. Eles
existem e estão por aí segurando a barra, não dando muita bandeira porque senão
acabam em clínicas ou presídios, como muita gente que conhecemos (e não venham
me dizer que não).
Nossa mente é uma grande colagem. Somos a
confluência de toda a esquizofrenia dessas influências disparatadas. Bob Dylan
disse certa vez: “minhas únicas influências são meus olhos, tudo que eles
viram, e os meus ouvidos, tudo que eles ouviram”. Eu também. Monteiro Lobato,
mas também As Mil e Uma Noites e A Salamanca do Jarau, mas também Batman e
Nyoka, a Rainha das Selvas. A sanfona de Adelaide Chiozzo, mas também o blusão
de nylon de James Dean. Platão e Noel Rosa. Libertad Lamarque e Timothy Leary.
Foi o prato que me serviram quando superei o mingau de aveia. Ser seletivo por
quê? Como Jorge Mautner, acho que o negócio agora é comer desse banquete. E não
ficar tentando uma pureza perdida. SCHIZ = quebrado. PHRENOS = alma ou coração;
trata-se de assumir a esquizofrenia do mundo e a nossa própria.
Escrita - Revista mensal de literatura, 1976
Breve, a parte final do depoimento de Caio Fernando de Abreu aos 28 anos, com muito sobre literatura
Amo esse blog.
ResponderExcluirObrigada, sempre, pelas raridadades!!
Caio, sublime (:
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