O autor falou de outos escritores e da produção literária em entrevista que nunca foi publicada
Kil Abreu
Em seus últimos anos, o
escritor Caio Fernando de Abreu dizia estar em busca de um texto mais “solar”,
mais aproximado da linguagem poética. Foi o que ele revelou nesta entrevista
inédita, à época do lançamento do romance Onde Andará Dulce Veiga, em setembro
de 1990.
Caio Fernando Abreu falou
ainda dos autores que o influenciaram, sobre as condições da crítica e a atual
produção literária brasileira.
Seus
personagens estão sempre enrolados em uma temática urbana e atual. Como você
avalia a preocupação do escritor com a contemporaneidade?
Penso no escritor sempre
como fotógrafo do seu tempo, embora não tenha essa preocupação deliberada com a
contemporaneidade do texto. Acho que qualquer preocupação em dirigir a obra
para o contemporâneo é extra-literária. Por outro lado, sinto-me extremamente
comprometido com as coisas que minha geração conheceu. Vivi os anos 50, o
existencialismo, o movimento beatnik. Mas vivi também, graças a Deus, o
movimento hippie, profunda e sonhadoramente. Então, no momento em que minha
literatura tem uma marca forte de contracultura, é porque ela fatalmente está
definida por essas experiências.
Alguns
críticos identificaram em sua obra uma influência decisiva herdada de Clarice
Lispector. Você assume tal influência?
Concordo, mas acho que essa
análise é redutora. Sofri, sem dúvida, grande influência de Clarice Lispector,
mas também de Érico Verissimo, Graciliano Ramos, Virginia Woolf e, mais
recentemente, de John Fante. À maneira de Bob Dylan, minhas influências são
todo o meu ato de estar vivo. Tudo que eu vi e vivi pelas estradas, todas as
pessoas que cruzaram o meu caminho e, ainda, coisas como o jazz, a pintura de
Van Gogh, a dança de Pina Bausch.
Em
seus contos há sempre muitas citações que apontam para o misticismo. De onde
vêm essas referências?
Certa vez pedi ao Paulo
Coelho uma definição de magia, e ele respondeu dizendo que magia é o mistério.
Acredito em Deus e em muitas formas do mistério. Sou astrólogo, embora não
profissional, há 20 anos. Tenho uma curiosidade imensa de saber por que estou
vivo, o que significa o céu, o que significa morrer. Portanto, é natural que em
meu trabalho estejam presentes todas essas ânsias filosóficas exaltadas. Muitas
vezes o que torna digna a vida de um homem é o fato de ele olhar para o céu e
dizer: “Meu Deus, que coisa imensa...” E perguntar: Por que estou aqui?” Toda
forma de criação artística é uma maneira de procurar essas respostas. Nesse
sentido, minha literatura busca um caminho cada vez mais “solar”, o caminho da
clareza, da concisão, da beleza. É vaidoso dizer isso, porque acho que a poesia
é a linguagem mais nobre, mas eu gostaria que o meu trabalho se aproximasse da
linguagem poética.
Com
Morangos Mofados você assumiu um dos maiores sucessos editoriais da década de
80, a exemplo de outros escritores cujos livros permanecem entre os mais
vendidos. Isso define uma valorização da literatura criada no Brasil?
Em geral, existe um grande preconceito contra o escritor brasileiro, que começa com o editor, passa pelo livreiro e chega inevitavelmente ao leitor. Uma outra coisa muito característica do Brasil é que o povo tem vergonha de ser brasileiro. Então, tudo aquilo que reflete sua face ele rejeita. Os suecos detestam o cinema de Bergman, que é a alma sueca. Aqui, o autor tem de se multifacetar e, para ver seu livro editado, tem de trabalhar muito. Acho que qualidade existe. Falta respeito pelo escritor.
Em geral, existe um grande preconceito contra o escritor brasileiro, que começa com o editor, passa pelo livreiro e chega inevitavelmente ao leitor. Uma outra coisa muito característica do Brasil é que o povo tem vergonha de ser brasileiro. Então, tudo aquilo que reflete sua face ele rejeita. Os suecos detestam o cinema de Bergman, que é a alma sueca. Aqui, o autor tem de se multifacetar e, para ver seu livro editado, tem de trabalhar muito. Acho que qualidade existe. Falta respeito pelo escritor.
A
recorrência a determinado universo temático levou muitas pessoas a
identificarem em seu trabalho as características que definiriam uma “escrita gay”.
Você concorda com a existência dela?
Não existe literatura gay. A
literatura ou é boa ou má literatura. Naturalmente que os escritores
homossexuais têm algumas características, como as autoras mulheres. Mas
considero toda essa discussão muito perigosa, porque é uma tentativa de colocar
as coisas em prateleiras, para que elas não sejam perturbadoras. O meu trabalho
é sobre a condição humana e absolutamente tudo cabe dentro da condição humana.
Eu gostaria que uma pessoa, ao ler um livro meu, percebesse a dimensão disso, e
não ficasse procurando classificações.
E
a crítica, como se comporta em relação ao seu trabalho?
Como disse Oscar Wilde,
quando os críticos divergem, o criador está de acordo consigo mesmo. Tenho experiências
malucas em relação à crítica. Quando lancei Triângulo das Águas, por exemplo,
no mesmo sábado saiu na Veja uma crítica demolindo o livro e na revista Isto É
uma crítica dizendo que era o melhor livro brasileiro da década. O problema é
que a crítica, principalmente a jornalística, é feita às vezes por pessoas
incompletas. Isso a torna menor. A maioria dos bons críticos está no circuito
universitário, como Luiz Costa Lima, Flora Sussekind, Silviano Santiago,
Heloisa Buarque de Holanda.
Além
dos contos, você também escreveu algumas peças para teatro. Como pensa a
criação dramatúrgica?
Eu fui ator, em Porto
Alegre, durante algum tempo. Então, tenho uma paixão antiga por teatro, mas
atualmente não me sinto à vontade, acho chatíssimo. Não consigo ver nada, além
de Antunes Filho e Gerald Thomas, que adoro. Muitas vezes parece que a forma
teatral está um pouco gasta. Penso em um teatro simples, sem excessiva
dramaticidade.
Em
sua opinião, quem são os escritores brasileiros mais originais de nossa época?
Para mim, o mais importante,
o mais original, o mais maluco e incendiado de todos é a Hilda Hilst. Eu nunca
conheci uma escritora tão tomada pela paixão da palavra como a Hilda. Ela é
bárbara. Gosto imensamente de João Ubaldo Ribeiro, Sergio Sant’Anna e Lya Luft,
que escreve uns livros densos, misteriosos, uma espécie de gótico da realidade
brasileira. Acho também que a poesia que se faz no Brasil, neste momento, conta
com nomes da melhor qualidade, como Rubens Rodrigues Torres Filho, Armando
Freitas Filho, Antonio de Francheschi. Vendo essa gente toda, às vezes me
pergunto se escrever não é inútil, porque tenho a impressão de que não estou
colaborando socialmente. Aí lembro de uma coisa que meu terapeuta falou, certa
vez. Ele me disse que os escritores são biógrafos da emoção. E se daqui a 50
anos alguém quiser saber o que as pessoas sentiam nos anos 90 pode encontrar
algumas respostas, talvez na literatura. Então, eu quero biografar o humano do
meu tempo. Se conseguir fazer isso de uma forma que enobreça o homem, vou me
sentir feliz, sereno. Acho que serenidade é uma coisa importante.
OESP - Caderno 2, Terça-feira, 27 de agosto
de 1996
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