terça-feira, 9 de outubro de 2012

Cor de rosa, uma ova!



                                                  Marianne Faithfull chega
                                                 quietinha, carregando um
                                                 forte sotaque de cabaré

Cuidado, meu amigo, vai doer. Se você é daqueles que acham que a vida é um mar de rosas cor-de-rosa, mantenha distância. Ou vá ouvir a Xuxa. Se você também não quer ver maculada aquela imagem da moça Marianne Faithfull, musa da swingin’ London nos anos 60, groupie dos Rolling Stones que passou na cara todos, estrelou filmes com Alain Delon e foi consagrada pela mídia da época como a garota símbolo da ousadia & liberação – não, melhor não ouvir este dilacerante Strange Weather (WEA).

Mas, se você não tem medo de descobrir um dos discos mais bonitos lançados no Brasil este ano (e por que desespero, amargura, tristeza, desamor, solidão, não podem ser belos? Em pleno 1987?), caia de boca no blues de Marianne. Depois de uma tentativa de suicídio, envolvimentos com a polícia por causa de drogas (nada soft: heroína no duro) e pântanos de álcool, ela salvou-se não pela conversão a alguma seita brega, mas pela música. Sim, arte salva. Ou consola. Ou torna pelo menos suportável.

A foto em preto e branco da capa mostra um rosto ainda jovem, mas meio devastado (lindamente devastado). Com esse rosto, Marianne Faithfull joga sua voz grave, metálica, de negra velha, em 11 canções de clima pesado de cabaré. Lembra às vezes Lotte Lenya, mais frequente a deusa Marlene Dietrich. Uma Dietrich que tivesse atravessado aqueles velhos bons tempos de rock, sexo e drogas para chegar para chegar, depois do punk, ao som de New Orleans, onde começou o blues. Fumaça de muitos cigarros, bebidas fortes – e a certeza de que “desde o meu nascimento eu tenho sido uma estranha neste mundo” (em Stranger on Earth, regravação de um clássico de Dinah Washington, que fecha o disco).


Cheia de fé, Marianne Faithfull relembra Billie Holliday em Yesterdays, passeia sem acompanhamento algum pela capela de Ain´Goin´ Down to the Well no Mo´, pelo hino religioso Sign of Judgment, revisa Bob Dylan (em I´ll Keep it With Mine), chega à sarjeta mais contemporânea de Tom Waits (um dos amigos que a ajudou a emergir da rebordosa, na faixa-título). E chega ao paroxismo do requinte (da crueldade e do talento, também) ao regravar As Tears Go By, aquele antigo sucesso de Mick Jagger, Keith Richards e dela mesma, nos longínquos 17 anos. Dói, e dói muito ver (ou ouvir) o tempo assim, tão nítida e implacavelmente perdido.

Com músicos impecáveis – segundo ela mesma, “os melhores de Nova York e alguns dos melhores do mundo” -, entre eles o baixista Fernando Saunders e bateirista J.T. Lewis, integrantes da banda de Lou Reed, a corajosa Faithfull conseguiu os cúmplices e o clima exato para encarar de frente a própria amargura. Claro, sonhos quebrados sempre doem. Mas talvez seja mais saudável contemplar os cacos e tentar compreender o quebra-cabeças do que comprar uma passagem para a Disneylândia.

               OESP, Caderno 2 - Quarta-feira, 21 de outubro de 1987






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