Marianne Faithfull chega
quietinha, carregando um
forte sotaque de cabaré
quietinha, carregando um
forte sotaque de cabaré
Cuidado,
meu amigo, vai doer. Se você é daqueles que acham que a vida é um mar de rosas
cor-de-rosa, mantenha distância. Ou vá ouvir a Xuxa. Se você também não quer
ver maculada aquela imagem da moça Marianne Faithfull, musa da swingin’ London
nos anos 60, groupie dos Rolling Stones que passou na cara todos, estrelou
filmes com Alain Delon e foi consagrada pela mídia da época como a garota
símbolo da ousadia & liberação – não, melhor não ouvir este dilacerante
Strange Weather (WEA).
Mas,
se você não tem medo de descobrir um dos discos mais bonitos lançados no Brasil
este ano (e por que desespero, amargura, tristeza, desamor, solidão, não podem
ser belos? Em pleno 1987?), caia de boca no blues de Marianne. Depois de uma
tentativa de suicídio, envolvimentos com a polícia por causa de drogas (nada
soft: heroína no duro) e pântanos de álcool, ela salvou-se não pela conversão a
alguma seita brega, mas pela música. Sim, arte salva. Ou consola. Ou torna pelo
menos suportável.
A
foto em preto e branco da capa mostra um rosto ainda jovem, mas meio devastado
(lindamente devastado). Com esse rosto, Marianne Faithfull joga sua voz grave,
metálica, de negra velha, em 11 canções de clima pesado de cabaré. Lembra às
vezes Lotte Lenya, mais frequente a deusa Marlene Dietrich. Uma Dietrich que
tivesse atravessado aqueles velhos bons tempos de rock, sexo e drogas para
chegar para chegar, depois do punk, ao som de New Orleans, onde começou o
blues. Fumaça de muitos cigarros, bebidas fortes – e a certeza de que “desde o
meu nascimento eu tenho sido uma estranha neste mundo” (em Stranger
on Earth, regravação de um clássico de Dinah Washington, que fecha o disco).
Cheia
de fé, Marianne Faithfull relembra Billie Holliday em Yesterdays, passeia sem
acompanhamento algum pela capela de Ain´Goin´ Down to the Well no Mo´, pelo
hino religioso Sign of Judgment, revisa Bob Dylan (em I´ll Keep it With Mine),
chega à sarjeta mais contemporânea de Tom Waits (um dos amigos que a ajudou a
emergir da rebordosa, na faixa-título). E chega ao paroxismo do requinte (da
crueldade e do talento, também) ao regravar As Tears Go By, aquele antigo
sucesso de Mick Jagger, Keith Richards e dela mesma, nos longínquos 17 anos.
Dói, e dói muito ver (ou ouvir) o tempo assim, tão nítida e implacavelmente
perdido.
Com
músicos impecáveis – segundo ela mesma, “os melhores de Nova York e alguns dos
melhores do mundo” -, entre eles o baixista Fernando Saunders e bateirista J.T.
Lewis, integrantes da banda de Lou Reed, a corajosa Faithfull conseguiu os
cúmplices e o clima exato para encarar de frente a própria amargura. Claro,
sonhos quebrados sempre doem. Mas talvez seja mais saudável contemplar os cacos
e tentar compreender o quebra-cabeças do que comprar uma passagem para a
Disneylândia.
OESP, Caderno 2 - Quarta-feira,
21 de outubro de 1987
Nenhum comentário:
Postar um comentário