É bem curiosa essa "geral nos astros" que presidiram o nascimento de Nelson Rodrigues. O texto representa um lado nem tão conhecido de Caio F.: o astrólogo. E para quem quiser mais sobre Caio F. e os astros , Amanda Costa escreveu o livro 360 Graus - Inventário Astrológico Sobre Caio Fernando Abreu.
Tarado,
devasso, cínico, pornográfico. E sobretudo, genial. Eterno como um clássico
grego, Nelson Rodrigues e sua obra pairam como anjos malditos
sobre o teatro brasileiro. Para o leitor de A-Z, CAIO FERNANDO ABREU
dá uma geral nos astros que presidiram o nascimento do nosso maior dramaturgo.
sobre o teatro brasileiro. Para o leitor de A-Z, CAIO FERNANDO ABREU
dá uma geral nos astros que presidiram o nascimento do nosso maior dramaturgo.
Ele
dizia: “Meus dramas são como a luz cruel do sol caindo sobre um pântano”. E
são. Imagine as sombras úmidas de um terreno sombrio, uma terra encharcada onde
vermes se retorcem e répteis se enroscam nos troncos de raízes escuras, exposto
feito nervos, feridas. Imagine o ar vicioso, espesso, desse terreno onde
ninguém pisa. Sinta esse cheiro insuportável de matéria ainda viva, mas em
constante processo de decomposição. Relegada para sempre às sombras, esta
paisagem pode até ter certa beleza. A beleza maldita do lado oculto, do lado
contaminado de todas as coisas – aquele, onde autores como Jean Genet ou
Tennessee Williams foram buscar suas histórias. Mas iluminada pela luz do sol –
a luz da saúde, da vitalidade – ela se revela em todo o seu horror. O pântano é
a alma humana, seus desejos mais fundos. A luz do sol, a palavra de Nelson
Rodrigues, que foi capaz de dar forma a essas sombras que, sem ele,
permaneceriam para sempre no escuro.
Darlene Glória, a Geni de Toda Nudez Será Castigada |
Os
pântanos de Nelson já fascinaram muita gente, já passaram por muitas
interpretações e visões. Das mais inspiradas, como as de Antunes Filho,
principalmente em seu último espetáculo, Paraíso Zona Norte, com duas peças de
Nelson (A Falecida e Os Sete Gatinhos), às mais grossas – Como a versão
cinematográfica de Brás Chediak para Bonitinha, Mas Ordinária. Mas o cinema
também soube acertar a mão com ele: foi de sua obra que Arnaldo Jabor retirou
pelo menos duas obras-primas – O Casamento, de um de seus romances, e Toda
Nudez Será Castigada, talvez sua peça teatral mais conhecida. Quem esquecerá a
voz rouca de Darlene Glória como a prostituta Geni, ofegando numa fita cassete:
“Herculano, aqui quem te fala é uma morta!”? O falecido Leon Hirschman realizou
uma bela versão, no cinema, de A Falecida; Nelson Pereira dos Santos foi capaz
de encarar O Boca de Ouro, lá pelo começo dos anos 60, e até Bruno Barreto,
muito coerentemente seduzido pela “breguice” de Nelson (não esquecer que Bruno
fez o rodrigueano Romance da Empregada). Sábato Magaldi dedicou-lhe um belo
livro, e Luiz Arthur Nunes, prêmio Moliére de melhor autor em 1989, debruçou-se
sobre Nelson para escrever sua tese de mestrado para a universidade de Nova
York. E não é o Neville de Almeida que está refilmando O Boca de Ouro, depois
de ter feito uma versão escandalosa – o preferido de Gramado retirou-se furioso
do cinema durante a exibição no festival, há alguns anos – de Os Sete Gatinhos?
Como
nas pixações dos muros sobre Elis Regina ou John Lennon, Nelson Rodrigues vive.
Estranhamente. Porque, pela lógica, deveria estar superado um autor que teve
seu primeiro momento em 28 de dezembro de 1943, com a estreia de Vestido de
Noiva dirigida por Ziembinski, no Rio de Janeiro, e que escreveu a maior parte
de sua obra durante os anos 50 e 60. Muita água rolou do Oiapoque ao Chuí: o
Brasil se industrializou, veio 64, surgiram e sumiram os hippies; os punks
chegaram, com os dentes arreganhados, a devastação ecológica e o vírus da Aids.
O pântano da obra de Nelson Rodrigues sobreviveu a tudo. Talvez – ou certamente
– porque nele estão concentradas as forças mais incontroláveis, e permanentes,
do inconsciente humano. Atávicas, arquetípicas. Além de qualquer circunstância
histórica.
Nesse
sentido, Nelson Rodrigues deixou no teatro brasileiro aquele mesmo tipo de
marca que Guimarães Rosa e Clarice Lispector deixaram na literatura. Pode-se
falar em antes e depois deles. Pode-se, não: deve-se. E assim como é difícil
lembrar o nome de um escritor contemporâneo do porte de Rosa ou Clarice, mais
difícil é lembrar um dramaturgo como ele. Apesar da geração de 68, Antonio
Bivar, Isabel Câmara, Zé Vicente, Leilah Assunção, ou dos mais recentes (e
excelentíssimos) Naum Alves de Souza, Maria Adelaide Amaral, Mário Prata,
Nelson paira. Eterno como um clássico grego.
MUITO
VIRGEM
Como leitor apaixonado, principalmente por seus diálogos teatrais e sua pontuação psicológica, sincopada, sempre me perguntei porque essa força, essa magia. Sem instrumental teórico para analisá-lo, mas com uma boa dose de paixão, alguma intuição e – suponho – um bom conhecimento astrológico, me ocorreu esta ousadia: como seria o mapa astral de Nelson Rodrigues? Descobri algumas coisas bastante interessantes que, sem a pretensão de revelar algo de extraordinário, imagino que podem contribuir para alargar o conhecimento desse homem fascinante.
Como leitor apaixonado, principalmente por seus diálogos teatrais e sua pontuação psicológica, sincopada, sempre me perguntei porque essa força, essa magia. Sem instrumental teórico para analisá-lo, mas com uma boa dose de paixão, alguma intuição e – suponho – um bom conhecimento astrológico, me ocorreu esta ousadia: como seria o mapa astral de Nelson Rodrigues? Descobri algumas coisas bastante interessantes que, sem a pretensão de revelar algo de extraordinário, imagino que podem contribuir para alargar o conhecimento desse homem fascinante.
Nelson
Rodrigues, filho do jornalista Mário Rodrigues, nasceu em Recife, Pernambuco,
em 23 de agosto de 1912. Não se conhece, e dificilmente se conhecerá, sua hora
de nascimento. O que torna impossível um cálculo exato do mapa e impede a
localização do signo Ascendente. Pela paixão, e pela impiedade, seria
Escorpião? Ou Aquário, pela carga de transgressão e originalidade que jogou em
seu trabalho? Difícil saber. De qualquer forma, apenas com a data de nascimento
foi possível descobrir algumas curiosidades.
Silene e as irmãs: Os Sete Gatinhos |
Num
primeiro momento, o que mais chama a atenção nesse esboço do mapa de Nelson é a
concentração de planetas em Virgem – signo da literatura, do espírito crítico
às vezes tão exagerado que pode passar por crueldade ou frieza. Em Virgem, no
grau zero, Nelson tinha o Sol, a 12 graus Vênus e a 23, Marte. Sexto signo do
zodíaco, Virgem forma um eixo carmático com Peixes, o décimo-segundo. Esse eixo
Virgem-Peixes proporciona aos que o têm muito forte no mapa um talento especial
para contemplar – e para compreender – os grandes sofrimentos de toda a
humanidade. Crítico – como são os virginianos – e impiedosos, com três planetas
ali. Nelson tinha também (e isso é bastante típico de Virgem) uma preocupação
quase maníaca com a saúde (os virginianos são grandes hipocondríacos), a
limpeza, a pura. Não o conheci pessoalmente, e é difícil dizer como isso
aparecia em seu cotidiano. Mas essa preocupação é óbvia em sua obra. Por
exemplo, em Os Sete Gatinhos, todas as irmãs se prostituem para assegurar a
integridade e a pureza de Silene. Que acaba por revelar-se, também uma pecadora.
UM
TRISTE
Vênus em Virgem, no mapa de Nelson, e na conjunção de Marte, permitia-lhe uma
perfeita integração entre seus lados feminino e masculino, entre animas e
animus. Mas toda a afetividade e capacidade para o prazer, representada por
Vênus, e todo o impulso para a ação (inclusive o erótico), representado por
Marte, estão em Virgem, signo frio, contido, obcecado pela castidade. Vênus em
queda em Virgem, junto a Marte, assinalam os grandes moralistas e,
paradoxalemnte, tambén os grandes sensuais. Ao mesmo tempo, Vênus forma uma
quadratura – ângulo tenso de 90 graus – entre Vênus e Júpiter, que estava em
Sagitário no dia do nascimento de Nelson, portanto dignificado, pois é o
próprio regente de Sagitário. Júpiter em Sagitário dava-lhe uma fortíssima
intuição do que era ou não justo, e também – outra vez – talento literário. Mas
a quadratura com Vênus também o tornava um exagerado. Exagerado na crítica
(Vênus em Virgem), exagerado na impiedade (Júpiter em Sagitário) – sem esquecer
também que Sagitário é o signo do humor, e Júpiter nessa posição geralmente dá
um requintadíssimos senso de humor. Nelson, sem dúvida, o possuia. Humor negro
(a quadratura de Vênus), sarcástico (a quadratura com o ferino Virgem). Além
disso, Júpiter em Sagitário formava uma oposição – ângulo tenso de cerca de 180
graus – entre Jùpiter, o expansivo, e Saturno (a 3 graus de Gêmeos), a
consolidação, as raízes. Em suas peças, é muito claro o conflito entre o mundo
reduzido, fechado, sufocado de (Saturno) e os grandes sonhos (Júpiter). A
Zulmira de A Falecida, para redimir uma vida mesquinha (Saturno) trama um
enterro glorioso, de matar de inveja os vizinhos (Júpiter).
Fernanda Montenegro, a Zulmira de A Falecida |
“Eu
sou um triste”, afirmava Nelson Rodrigues. E era verdade. Em seu mapa, o
Saturno em Gêmeos forma uma quadratura muito próxima de seu sol em Virgem. Essa
posição traz sempre uma sensação íntima de fracasso, inibição (Saturno) para
expressar os sentimentos mais vitais (o Sol) e uma visão geralmente sombria da
vida. Talvez nesse aspecto – que é também um aspecto literário: Saturno está em
Gêmeos, o Sol em Virgem, ambos signos regidos por Mercúrio, planeta da palavra,
da comunicação, do dom de expressão verbal – encontre-se, nitidamente, o
conflito entre o Sol e o pântano a que o próprio Nelson se referia para definir
a sua própria obra. Seu Sol em Virgem, criticamente, iluminava os pantanais de
Saturno em Gêmeos.
Mas
há também, além dos desafios e conflitos, aspectos fluentes e reveladores nesse
mapa. Uma conjunção muito próxima entre o Sol e Mercúrio (a 28 graus de Leão)
dava a Nelson uma extraordinária inteligência. Seu sol em Virgem, a capacidade
crítica e analítica; seu Mercúrio em Leão, signo do Sol, a capacidade de
iluminar com a palavra tudo aquilo sobre o que falava ou escrevia. E não foi
outra coisa que ele fez em toda a sua obra, jogando luz sobre os porões. Não
devemos esquecer também que Leão é o signo da realeza: com Mercúrio em Leão, a
palavra de Nelson Rodrigues era soberana.
PERDÃO
ENCABULADO
Há pelo menos mais três aspectos muito reveladores nesse mapa: dois sêxtis – ângulos fluentes de cerca de 60 graus – entre Plutão, o planeta das lamas profundas do inconsciente, do magma vulcânico da mente – e Mercúrio, e Plutão e Sol. Com a palavra de Mercúrio, e com a luz do Sol, Nelson era capaz de formular e iluminar todos os porões do inconsciente humano. Um outro aspecto no mínimo curioso é o sêxtil quase exato entre Netuno, planeta da iluminação, da inspiração e da espiritualidade, em Leão, com Marte em Virgem. A astróloga Isabel Hickey chamou os possuidores desse aspecto de “idealistas práticos”, e a Astrologia tradicionalmente reconhece nele os grandes imaginativos, capazes de filtrar toda a violência que sejam capazes de imaginar através da criação. Claro, não? Nelson nunca praticou todas as taras, incestos e loucuras que povoam sua obra: ele as escreveu.
Há pelo menos mais três aspectos muito reveladores nesse mapa: dois sêxtis – ângulos fluentes de cerca de 60 graus – entre Plutão, o planeta das lamas profundas do inconsciente, do magma vulcânico da mente – e Mercúrio, e Plutão e Sol. Com a palavra de Mercúrio, e com a luz do Sol, Nelson era capaz de formular e iluminar todos os porões do inconsciente humano. Um outro aspecto no mínimo curioso é o sêxtil quase exato entre Netuno, planeta da iluminação, da inspiração e da espiritualidade, em Leão, com Marte em Virgem. A astróloga Isabel Hickey chamou os possuidores desse aspecto de “idealistas práticos”, e a Astrologia tradicionalmente reconhece nele os grandes imaginativos, capazes de filtrar toda a violência que sejam capazes de imaginar através da criação. Claro, não? Nelson nunca praticou todas as taras, incestos e loucuras que povoam sua obra: ele as escreveu.
Cleyde Yaconis em Toda Nudez: A primeira Geni |
Finalizando:
no momento em que nasceu Nelson Rodrigues, a Lua passava por Capricórnio. Isto
é, a Lua, planeta (ou luminar) da emoção, regente de Câncer, estava em
Capricórnio, seu signo oposto. Portanto, enfraquecida. O sentimentalismo não se
mostrava em Nelson – ou em sua obra. Ao invés de doce e mansa, como seria em
Câncer, sua Lua era dura e prudente, em Capricórnio. Mas o que poderia passar
como frieza, na verdade era um profundo encabulamento de mostrar os próprios
sentimentos. Ou alguém duvidaria que, mesmo com seus finais trágicos, Nelson no
fundo ama e perdoa a Zulmira de A Falecida, a Silene anjo-caído de Os Sete
Gatinhos ou a infeliz suicida Geni, em Toda Nudez?
Uma
profunda piedade pelo ser humano. Nisso, quem sabe, pode ser resumida a obra de
Nelson Rodrigues. Uma piedade crítica (tantos planetas em Virgem), que pune ao
invés de acariciar (a Lua em Capricórnio), mas verdadeira. Cruel? Não. Ele
dizia também: “Sou uma alma da belle époque. Não gosto da minha época, não
tenho afinidade com ela. A meu ver, estamos assistindo ao fracasso do ser
humano. Isso não quer dizer que mais adiante ele não se levante, mas no momento
o ser humano está de quatro.”
Imaginem
se, em 1989, ele ainda estivesse vivo...
Revista A-Z, novembro de 1989
Muito bom o blog, parabéns!
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