Caio F. escrevendo sobre escritores que ele adorava. Agora é Adélia Prado. Em posts anteriores, você vai encontrar resenhas dele sobre livros de Gabriel Garcia Marquez, Patricia Highsmith, Virginia Woolf, Julio Cortázar, Zelda e Scott Fitzgerald, Simone Beauvoir, Carlos Castaneda.e Lya Luft. Boa Leitura!
Quando lançou seu primeiro livro, Bagagem, em 1975 (para muitos ano-marco daquele misterioso e fugaz boom da literatura brasileira), a mineira Adélia Prado já avisava: “Não sou Cornélia, mãe dos Gracos: sou Adélia, mulher do povo”. No livro seguinte, O Coração Disparado (1977) – e neste também –, ela continuava inteiramente fiel à sua primeira imagem. Os louros depositados sobre seu trabalho, incensado pelas coberturas do sul-maravilhas, não modificaram sua visão de mundo, onde continua não havendo lugar para veludos nem brocados.
A linguagem de Adélia é feita de chitas,
couro cru e barro – esse barro dos sertões mineiros, já manipulado
literariamente por Guimarães Rosa (de quem toma uma citação para abrir seu livro)
e Carlos Drummond de Andrade (a quem se refere na última frase). Mas que seja
tosca ou vulgar, isso nunca. Adélia se explica assim: “Gosto de ir até no fundo
da cisterna e revirar o lodo, tirar ele com a mão, me emporcalhar bastante, só
pra depois ver a água minando clarinha de novo”. E é dessa água limpa que
existe atrás do barro que são feitos os textos desse livro.
FLUIR POÉTICO – Ao contrário dos dois
primeiros, em Solte os Cachorros ela
organizou os textos em forma de prosa. Uma prosa ritmada que se às vezes é
quase ficção – como na segunda parte, Sem Enfeite Nenhum –, mais frequentemente
é puro fluir poético. Que pode lembrar o Mário Quintana do Caderno H ou certas anotações de Clarice Lispector, aquele Fundo de
Gaveta, de A Legião Estrangeira. Não
é à toa que Affonso Romano de Sant’Anna considera Adélia “a Clarice Lispector
de nossa poesia”. Em ambas, com efeito, a linguagem já veio pronta, individual,
inconfundível, comprometida muito mais com a veracidade do que está sendo do
que está sendo dito do que com obscuras e vazias (ou vadias?) ordenações
estéticas. O que pode parecer discutível para quem acha que poesia é coisa de
sala de estar, e não de cozinha, tanque ou pátio.
A impressão que a gente tem é que, ao invés
de instalar-se numa aristocrática escrivaninha para “caçar” a poesia (como ela
diz), Adélia ronda pela casa de caderno em punho, observando “o ciscadinho do
pardal em cima do muro”, “a horta de couve e outros pequenos luxos”, remexendo
nos porquês de “cada cicatriz de minha alma circuncidada”, lembrando “a bela
mancha horrorosa de quando eu tinha dez anos e saí apavorada: mãe, mãe, será o
tomatinho azedo que eu comi demais?”
SUTIÃ GRENÁ – Invadem o livro as velhas obsessões
de Adélia: os cachorros com fome no quintal, a paixão por Castro Alves (“Onde
está Castro Alves que ia fundar comigo uma dinastia e morreu antes, de gula e
pressa?”), as beatas de Divinópolis, cidade mineira onde ela vive, a presença
(incômoda, para uns) constante de São Francisco de Assis e Deus. Mas de
dona-de-casa católica Adélia se transforma, e é “de novo uma mulher com sutiã
grená, polindo os dentes sem pressa e desenhando a boca em coração”. É então
que o erotismo explode. Isso acontece na terceira parte do livro, Afresco. Vêm as
declarações de amor para Américo (“...por você faço doce de leite, corto em
pequenos losangos..”), Expedito, Antônio, Francisco ou José (“Teu paletó de
veludo cobre teu braço peludo”).
Em todos os delírios, místicos ou carnais,
sempre o mesmo gosto de feijão ou couve-flor. E vida crua, sem disfarces. Doce
e violenta, sagrada e cotidiana, Adélia Prado vai construindo uma obra
importante por si mesma e pela maneira como retrata um Brasil quase extinto. Se
fala bobagens? Ela sabe: “A poesia existe ou é falácia, pruridos,
psicologismos? Se assim for e eu descobrir, me epitafiem: desgraçada, fora da
graça, bandida”. Lendo-a, a sensação é de que a poesia existe,
Veja, 23 de Maio de 1979
Nenhum comentário:
Postar um comentário