Paris – Acaso – você conhece
– é só um dos nomes de Deus. Por essa espécie de acaso, conheci João. Eu
jantava com amigos quando o garçom me chamou a atenção. Um negro pequeno,
forte, cabeça pequena, olhos redondos pretos e vivos, sorriso enorme. E qualquer
coisa luminosa em volta. Apesar do seu francês impecável, imaginei Cabo Verde,
Cuba, Martinica. Puxei papo. João é brasileiro. De Minas. O mais simpático,
rápido e sorridente garçom daquele restaurante de garçons meio emburrados. Por
outro acaso desses, outra noite nos cruzamos num bar. Mortos de sede do Brasil,
cantamos juntos Nana Caymmi, depois caímos nesse poço inevitável: histórias
pessoais. Eu quase não tinha nada a contar ou, por deformação profissional,
preferia ouvir. Entre cervejas, então, João contou.
Veio do Brasil há mais de
dez anos, apaixonado por Christian, um francês também apaixonado por ele.
Trabalharam, viajaram, se amaram, sempre juntos. Então Christian começou a
ficar doente, cada vez mais doente. Fez o teste fatídico: sim, Aids – ou Sida,
como dizem os franceses e nós brasileiros também deveríamos dizer, não fôssemos
tão colonizados. Mas isso não importa agora.
O que importa é a história
de João. Dura, real, presente. A morte, no pequeno apartamento alugado,
Christian recusa-se a ser hospitalizado. O AZT, DDI e todas essas coisas
afetaram sua mente, às vezes foge pelas ruas, seminu e muito magro. João avisou
a mãe de Christian, que não o conhecia e vive em Toulouse. A mãe, judia de 74
anos que muito sofreu durante a guerra, veio a Paris sem saber do que se
tratava. Sem saber de absolutamente nada. E esbarrou nas três pontas farpadas
desta situação: 1º) O filho de 40 anos é homossexual; 2º) o filho está à morte
com Aids; 3°) O filho vive com um negro brasileiro. Na cara certamente exausta
dessa velha senhora, três preconceitos de uma só vez: a homossexualidade do filho
único, a Aids e a raça de João – além de negro, brasileiro. E como se não
bastasse, um assintoso teste negativo. Os três juntos num quarto e sala de
Montparnasse. Christian delira no quarto. João trabalha em dois, três
restaurantes, sem folga. A mãe quer levar o filho para morrer em Toulousse. Sem
João, claro: o que não vão dizer os vizinhos? Christian não quer. João também
não: “Quero que ele morra comigo. Quero ficar com ele até o fim, compreende?”.
Compreendo. E vejo a mãe
sentada na sala olhando João com olhos acusadores quando ele chega de
madrugada. João traz flores, frutas, leite, pães. Que a mãe não toca. Como se
estivessem contaminados e João fosse o anjo negro portador da peste desse País
assustador, a que os franceses se referem como lá-bas... João evita voltar para
casa, fica pelos bares, vezenquando dorme no apartamentoo de Fifi, que vive no
mesmo prédio e é o melhor amigo de Christian. O que fazer com uma história
destas?
Parece peça de teatro, digo,
parece filme. E quando digo “filme”, ao mesmo tempo em que João me pergunta o
que fazer, eu tenho a ideia. João, convide a mãe de Christian para ir ao
cinema, leve-a para ver Filadélfia, de Jonathan Demme. Só isso. Não precisa
dizer nada. Compre pipocas ou coisa alguma. Fique quieto, duas horas no escuro,
ao lado dela. João sorri. Sorri sempre mesmo quando os detalhes de sua história
são pesados demais. Et porquoi pas? considera. Eu me pergunto se voltarei a
vê-lo assim, por acaso. Por isso que as pessoas – tão pudicas de magia –
costumam chamar de “acaso”. E não sei o que vem depois.
Mas esse luminoso à sua
volta João, quero perguntar, será o que chamam de “amor”? Ele não me escutaria.
Braços abertos e sorriso enorme, dança no meio da pista como um Deus negro,
solitário e selvagem.
A luta continua.
OESP,
Caderno 2, 15 de maio de 1994
P.S:
Essa crônica foi escrita em Paris. Caio F. ainda não se sabia portador do vírus
da Aids, o que ocorreria logo depois da volta dessa viagem. Primeira Carta Para
Além do Muro, crônica onde ele conta ser portador do vírus, foi publicada em 21
de agosto desse ano.
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