A lua completa mais de uma volta
pelo zodíaco. E o anjo
pálido troca o mel pelo sal.
Começou a amanhecer. Não sei
ao certo como soubemos que tinha começado a amanhecer: era tão escuro ali
dentro que noite ou dia lá fora não faria a menor diferença. Por algumas
frestas, frinchas – não importa -, tivemos certeza de que começara, claramente,
a amanhecer. E por condicionamento, talvez, porque sempre com o amanhecer chega
a hora de ir embora, começamos a ir embora. Feito vampiros às avessas –
necessitados de luz, não de sombra.
Tinha roxo e rosa no céu.
Até as latas cheias de lixo na rua deserta pareciam vagamente douradas. Fez com
que caminhássemos a pé, para olharmos o céu. E enquanto eu olhava o céu limpo
da cidade suja, interpunha entre nós seu primeiro muro de palavras. Confusas,
atormentadas, sobre tudo e sobre nada: palavras amontoadas umas sobre as
outras, como se amontoam tijolos para separar alguma coisa de outra coisa. Eu,
mal sabendo que esse – que parecia seu jeito mais fácil de ser – seria nas
semanas seguintes seu jeito mais verdadeiro, às vezes único.
Quando o tempo passasse um
pouco mais, nos surpreendendo ainda juntos em outra madrugada, minha cabeça
repetiria tonta e lúcida “Éramos tão pálidos, e nos queríamos tanto”. Éramos
muito pálidos naquela primeira manhã entre as latas de lixo da rua deserta,
caminhando em direção ao dia de hoje – mas ainda não nos queríamos com este
enorme susto no fundo dos olhos despreparados de querer sem dor.
Lembro que olhando para
cima, descobri entre o roxo e o rosa das nuvens um anjo também pálido, magro e
de barba por fazer, vestido de negro, com um leve sorriso nos lábios, vertendo
uma gota de mel sobre nossas cabeças. Não prestei atenção nele. Me deixava
levar, guiado apenas pelo jardim que entrevia pelas frestas dos tijolos, nos
muros-palavras erguidos entre nós, com descuido e precisão. Viriam depois, mais
duros que os de palavras, muros de silêncio tão espesso que nem mesmo os
demorados exercícios de piano, as notas repetidas e os dedos distendidos,
conseguiram derrubar.
Errei pela primeira vez
quando me pediu a palavra amor, e eu neguei. Mentindo e blefando no jogo de não
conceder poderes excessivos, quando o único jogo acertado seria não jogar:
neguei e errei. Todo atento para não errar, errava cada vez mais. Mas durante
as ausências, olhando então para cima e abrindo a boca, recebia em cheio na
garganta as gotas de mel de jarro de lata que aquele anjo pálido trazia ao
ombro. Embora me recusasse a ver que o anjo parecia cada vez mais sombrio.
Incapaz de perceber que em seu leve sorriso, bem no canto da boca, começava a
surgir uma marca de sarcasmo, feito um tique cruel.
Passaram-se muitos dias. A
lua deu mais de uma volta completa no Zodíaco. Ultrapassou Sagitário e caminhou
até Áries, completando seu triângulo de fogo e de paixão. Bati as mãos contra o
muro, procurando brechas. Não havia mais. Espatifei as unhas, gritei por uma
resposta qualquer. Nem uma veio de volta. Olhei para fora de mim e não consegui
localizar ninguém no meio das vibrações da cidade suja. Olhei para dentro de
mim e só havia sangue. Derramado, como nas cirandas.
Queria acordar, mas não era
um sonho.
Então localizei outra vez
aquele mesmo anjo parado entre as nuvens. Estava de branco, agora, mas nem
nenhum sorriso nos lábios severos. Em suas mãos havia um jarro de ouro. De dentre
dele, chovia um mar de sal sobre minha cabeça. Por quê? – eu perguntei. O anjo
abriu a boca. E não sei se entendo o que me diz.
OESP, Caderno 2.
Terça-feira, 1 de julho de 1986
E no livro Pequenas Epifanias
E no livro Pequenas Epifanias
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