Essa
entrevista foi há 28 anos. Caio F., 42 anos recém completos, acabara de lançar
"Onde andará Dulce Veiga?", quando conversou com Geneton Moraes Neto
(1956-2016). Saiu em O Globo, edição de 30 de setembro de 1990, quase seis anos
antes da morte do escritor. É das melhores entrevistas dele, que vivia
desencanto com o País e funciona como uma mini biografia.
'Adeus,
Brasil Cruel'
Quando
lançou "Morangos Mofados", em 1982, você dizia aos que lhe cobravam
um romance: "Quando alguém se dispuser a me dar uma mesada que me livre da
obrigação de trabalhar oito horas por dia, compareço com um romance". A
esperada mesada chegou para que você pudesse escrever "Onde andará Dulce
Veiga?"?
Meu editor, Luis Schwarcz,
me pagou durante um ano enquanto eu escrevia "Onde andará Dulce Veiga?",
U$ 350 por mês, no câmbio oficial. É pouquíssimo, dava cerca de Cr$ 20, 25 mil.
Eu complementava com o que eu chamo de biscates culturais. Mas renunciei a
tudo, porque o que me interessa é a literatura. Se eu não tinha dinheiro para
jantar fora, fazia arroz integral com ovo frito. Andava a pé, pegava ônibus.
Cortaram a luz. Cortaram o telefone. Mas eu precisava escrever. Isso aconteceu
comigo, no plano pessoal. Quanto à literatura brasileira - de uma forma
abrangente -, concordo com Hilda Hilst, a maior poetisa brasileira viva, quando
diz que hoje, no Brasil, escritor vale menos que um gato morto. Não há
respeito. Não há divulgação. Não há amor pelo autor brasileiro. Nós estamos
todos profundamente solitários, desencantados, separados. Então eu me senti abençoado
por ter conseguido escrever o romance.
Você
lamentava, há poucos anos, que o escritor brasileiro fosse "um escritor de
fim de semana". A situação piorou nos últimos tempos?
Piorou, e por isso estou indo
embora do País. Vou lançar livros na Europa no fim do ano e ficar na Espanha,
em Ibiza. Amo profundamente o Brasil. O meu livro é desesperadamente
brasileiro. Preciso ficar longe dessa paixão, para que ela não me destrua. Eu
serei um exilado literário.
Você
espera encontrar na Europa, como escritor, o que não encontrou no Brasil?
Não, não e não. Vou ser, na
Europa, um paquistanês. Não tenho ilusão. Já morei em Londres e Estocolmo. Eu
era profundamente rejeitado e chamado de negro, índio, chicano. Mas vou: é como
o Paulo Coelho aconselha: de sete em sete anos, jogue a vida para o alto e saia
à procura de outra, porque teu destino pode estar à tua espera num boteco em
Atenas. Se você não for, não vai encontrar. Sou um rolling stone. Isso pode
ajudar a minha literatura e meu profundo amor pelo Brasil - cada vez mais
enlouquecido, o meu amor por este País cruel.
Dentro
da literatura, a que santos e demônios você recorre?
Santos ou demônios, minha
relação é sempre com a luz. "Onde andará Dulce Veiga?" se encerra com
uma oração de Clarice Lispector: "Ah, força do que existe/ Ajudai-me!/ Vós
que chamam de o Deus". Fui preso em Londres, numa livraria, roubando a
biografia de Virginia Woolf, escrita por Quentin Bell. Fiquei três dias na
prisão. Só fui ler a biografia há poucos anos. Quando fui preso, fiquei sem o
livro. Mas, desde então, ela me protege - Virginia.
Você
descreveu há pouco a precaridade que enfrentou durante o período em que
escreveu "Onde andará Dulce Veiga?". Mas esta precariedade palpável
na vida real não transparece no texto. Críticos já notaram que você escreve com
elegância. Você escreve com raiva, também?
Sou, no fundo, uma senhora
inglesa. Muitas pérolas. Muito tailleur. Muita seda. Mas sou cafajeste, também.
Num dos capítulos, antes de tomar um táxi, o personagem cruza na rua com dois
anões, um corcunda, três cegos, quatro mancos, um homem-tronco, outro maneta,
um enrolado em trapos como um leproso, uma negra sangrando, um velho de muletas,
duas gêmeas mongolóides e tantos mendigos que não consegue contar. Aquela cena,
no livro, é a raiva da realidade brasileira, é ódio do Terceiro Mundo. Tenho
ódio, repulsa, desprezo, repugnância, pelo que fizeram com o Rio de Janeiro.
Como é que nós, brasileiros, a nossa geração, os jornalistas, os intelectuais,
permitimos que o País virasse essa bagunça?
Você
também é jornalista. Fazer jornalismo é ruim para a saúde mental e física de um
escritor?
É. Para o escritor - um ficcionista
que se alimenta de sonho, ilusão e fantasia - é melhor ser jardineiro ou
sapateiro do que se submeter ao vão comércio da palavra. Trabalhei na Editora
Abril. Passei pela revista "Nova". Por mês, escrevia cinco matérias
sobre sexo anal, sexo oral... Quando me dei conta, tinha ido parar na Divisão
de Fascículos, onde estava escrevendo receita de cozinha. Juro! Tive uma
indignação total. Pedi demissão. Disse: "Se eu continuar, amanhã de manhã vou
me olhar no espelho e cuspir na minha cara!". Fiquei duro. Mas saí. Não admiti.
Nélida Piñon é que diz: se você é escritor no Brasil, todo dia ouve alguém
bater na porta para aconselhá-lo de maneira convincente a desistir. É preciso
agarrar a literatura pelos cabelos, como Clarice Lispector fez, numa luta
diária.
Você
uma vez listou, entre os personagens que o fascinam, "as prostitutas, os
negros, os homossexuais, os bêbados, os loucos, os suicidas, os exilados, os
mendigos, os endemoniados". A arte que se alimenta da maldição é menor e
mais viva?
É mais viva porque vive
"perto do coração selvagem da vida", como diria James Joyce. Sou
feliz. Sou a pessoa mais careta do mundo. Minha vida é toda ordenada. Tenho
minha loucura sob controle. Mas os outsiders me interessam.
Você
diz que José Saramago é "chatíssimo" porque não tem nada a ver com o
que acontece na vida real...
De vez em quando, a gente
fala coisas meio bobas que são distorcidas. Mas é verdade mesmo.
Você,
então, prefere a literatura que possa fazer o leitor enxergar o que existe em
torno de si?
Prefiro a literatura que
ajude a alma do leitor a se questionar, a crescer e a evoluir. Prefiro a
literatura que abale o leitor de alguma forma. Por exemplo, fiquei abalado
quando li "O diário de Edith", de Patricia Highsmith. É a história de
uma mulher que tem uma vida absolutamente banal, mas descreve, num diário, uma
vida fictícia maravilhosa. Um livro assim perturba minhas reflexões sobre mim
mesmo, sobre a sanidade, sobre a loucura, e sobre os limites da relação com o
real. Prefiro este tipo de literatura - que é viva porque abala e não entra por
um ouvido e sai pelo outro.
Cazuza,
de quem você foi amigo, acaba de virar nome de praça em São Paulo e também no
Rio, no Arpoador. A rebeldia deve virar monumento?
Quando quiseram transformá-lo
num busto de bronze, Mario Quintana disse: "Cuidado! Um engano de bronze
pode ser um engano eterno!". O que Cazuza deixou de melhor ficou nos
discos e na bravura com que enfrentou a vida. Se virar nome de praça, tudo bem.
Ser esquecido ou não ser esquecido, tanto faz. A posteridade é um tédio.
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