segunda-feira, 10 de setembro de 2018

'Adeus, Brasil Cruel'





Essa entrevista foi há 28 anos. Caio F., 42 anos recém completos, acabara de lançar "Onde andará Dulce Veiga?", quando conversou com Geneton Moraes Neto (1956-2016). Saiu em O Globo, edição de 30 de setembro de 1990, quase seis anos antes da morte do escritor. É das melhores entrevistas dele, que vivia desencanto com o País e funciona como uma mini biografia.

                                                 'Adeus, Brasil Cruel'

Quando lançou "Morangos Mofados", em 1982, você dizia aos que lhe cobravam um romance: "Quando alguém se dispuser a me dar uma mesada que me livre da obrigação de trabalhar oito horas por dia, compareço com um romance". A esperada mesada chegou para que você pudesse escrever "Onde andará Dulce Veiga?"?
Meu editor, Luis Schwarcz, me pagou durante um ano enquanto eu escrevia "Onde andará Dulce Veiga?", U$ 350 por mês, no câmbio oficial. É pouquíssimo, dava cerca de Cr$ 20, 25 mil. Eu complementava com o que eu chamo de biscates culturais. Mas renunciei a tudo, porque o que me interessa é a literatura. Se eu não tinha dinheiro para jantar fora, fazia arroz integral com ovo frito. Andava a pé, pegava ônibus. Cortaram a luz. Cortaram o telefone. Mas eu precisava escrever. Isso aconteceu comigo, no plano pessoal. Quanto à literatura brasileira - de uma forma abrangente -, concordo com Hilda Hilst, a maior poetisa brasileira viva, quando diz que hoje, no Brasil, escritor vale menos que um gato morto. Não há respeito. Não há divulgação. Não há amor pelo autor brasileiro. Nós estamos todos profundamente solitários, desencantados, separados. Então eu me senti abençoado por ter conseguido escrever o romance.

Você lamentava, há poucos anos, que o escritor brasileiro fosse "um escritor de fim de semana". A situação piorou nos últimos tempos?
Piorou, e por isso estou indo embora do País. Vou lançar livros na Europa no fim do ano e ficar na Espanha, em Ibiza. Amo profundamente o Brasil. O meu livro é desesperadamente brasileiro. Preciso ficar longe dessa paixão, para que ela não me destrua. Eu serei um exilado literário.

Você espera encontrar na Europa, como escritor, o que não encontrou no Brasil?
Não, não e não. Vou ser, na Europa, um paquistanês. Não tenho ilusão. Já morei em Londres e Estocolmo. Eu era profundamente rejeitado e chamado de negro, índio, chicano. Mas vou: é como o Paulo Coelho aconselha: de sete em sete anos, jogue a vida para o alto e saia à procura de outra, porque teu destino pode estar à tua espera num boteco em Atenas. Se você não for, não vai encontrar. Sou um rolling stone. Isso pode ajudar a minha literatura e meu profundo amor pelo Brasil - cada vez mais enlouquecido, o meu amor por este País cruel.

Dentro da literatura, a que santos e demônios você recorre?
Santos ou demônios, minha relação é sempre com a luz. "Onde andará Dulce Veiga?" se encerra com uma oração de Clarice Lispector: "Ah, força do que existe/ Ajudai-me!/ Vós que chamam de o Deus". Fui preso em Londres, numa livraria, roubando a biografia de Virginia Woolf, escrita por Quentin Bell. Fiquei três dias na prisão. Só fui ler a biografia há poucos anos. Quando fui preso, fiquei sem o livro. Mas, desde então, ela me protege - Virginia.




Você descreveu há pouco a precaridade que enfrentou durante o período em que escreveu "Onde andará Dulce Veiga?". Mas esta precariedade palpável na vida real não transparece no texto. Críticos já notaram que você escreve com elegância. Você escreve com raiva, também?
Sou, no fundo, uma senhora inglesa. Muitas pérolas. Muito tailleur. Muita seda. Mas sou cafajeste, também. Num dos capítulos, antes de tomar um táxi, o personagem cruza na rua com dois anões, um corcunda, três cegos, quatro mancos, um homem-tronco, outro maneta, um enrolado em trapos como um leproso, uma negra sangrando, um velho de muletas, duas gêmeas mongolóides e tantos mendigos que não consegue contar. Aquela cena, no livro, é a raiva da realidade brasileira, é ódio do Terceiro Mundo. Tenho ódio, repulsa, desprezo, repugnância, pelo que fizeram com o Rio de Janeiro. Como é que nós, brasileiros, a nossa geração, os jornalistas, os intelectuais, permitimos que o País virasse essa bagunça?

Você também é jornalista. Fazer jornalismo é ruim para a saúde mental e física de um escritor?
É. Para o escritor - um ficcionista que se alimenta de sonho, ilusão e fantasia - é melhor ser jardineiro ou sapateiro do que se submeter ao vão comércio da palavra. Trabalhei na Editora Abril. Passei pela revista "Nova". Por mês, escrevia cinco matérias sobre sexo anal, sexo oral... Quando me dei conta, tinha ido parar na Divisão de Fascículos, onde estava escrevendo receita de cozinha. Juro! Tive uma indignação total. Pedi demissão. Disse: "Se eu continuar, amanhã de manhã vou me olhar no espelho e cuspir na minha cara!". Fiquei duro. Mas saí. Não admiti. Nélida Piñon é que diz: se você é escritor no Brasil, todo dia ouve alguém bater na porta para aconselhá-lo de maneira convincente a desistir. É preciso agarrar a literatura pelos cabelos, como Clarice Lispector fez, numa luta diária.

Você uma vez listou, entre os personagens que o fascinam, "as prostitutas, os negros, os homossexuais, os bêbados, os loucos, os suicidas, os exilados, os mendigos, os endemoniados". A arte que se alimenta da maldição é menor e mais viva?
É mais viva porque vive "perto do coração selvagem da vida", como diria James Joyce. Sou feliz. Sou a pessoa mais careta do mundo. Minha vida é toda ordenada. Tenho minha loucura sob controle. Mas os outsiders me interessam.

Você diz que José Saramago é "chatíssimo" porque não tem nada a ver com o que acontece na vida real...
De vez em quando, a gente fala coisas meio bobas que são distorcidas. Mas é verdade mesmo.

Você, então, prefere a literatura que possa fazer o leitor enxergar o que existe em torno de si?
Prefiro a literatura que ajude a alma do leitor a se questionar, a crescer e a evoluir. Prefiro a literatura que abale o leitor de alguma forma. Por exemplo, fiquei abalado quando li "O diário de Edith", de Patricia Highsmith. É a história de uma mulher que tem uma vida absolutamente banal, mas descreve, num diário, uma vida fictícia maravilhosa. Um livro assim perturba minhas reflexões sobre mim mesmo, sobre a sanidade, sobre a loucura, e sobre os limites da relação com o real. Prefiro este tipo de literatura - que é viva porque abala e não entra por um ouvido e sai pelo outro.

Cazuza, de quem você foi amigo, acaba de virar nome de praça em São Paulo e também no Rio, no Arpoador. A rebeldia deve virar monumento?
Quando quiseram transformá-lo num busto de bronze, Mario Quintana disse: "Cuidado! Um engano de bronze pode ser um engano eterno!". O que Cazuza deixou de melhor ficou nos discos e na bravura com que enfrentou a vida. Se virar nome de praça, tudo bem. Ser esquecido ou não ser esquecido, tanto faz. A posteridade é um tédio.


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