Para marcar o dia em que seria o dia dos 70 anos de Caio F, uma postagem especial. Esta belezura de texto não está em Pequenas Epifanias e nem em A Vida Gritando nos Cantos, os livros que reúnem as crônicas que ele escreveu no Caderno 2 do Estadão. Esta saiu no formato matéria sobre um show de Angela Maria e Cauby Peixoto. Pra falar dos dois cantores, Caio convoca uma protagonista: tia Vilma, que embalou sua infância com canções. O resultado é uma maravilha e o "lágrima furtiva" não está no título por acaso. Uma pequena epifania essa crônica/matéria.
Angela e Cauby: para roubar uma lágrima furtiva
Tenho uma tia chamada Vilma.
A Vilminha, como a chamam até hoje as freguesas de costura, ou Pavima para nós,
seus 500 sobrinhos. Solteirona, romântica, alucinada, tia Vilma amava no ar.
Nunca se soube de um namorado seu. Tia Vilma lia fotonovelas, e cantava. Ah,
como cantava, derramando vezenquando uma lágrima furtiva. Me ninava nas noites
frias com seu repertório heavy: Dalva de Oliveira, Nora Ney, Linda Batista. Ao
invés de Bicho Papão, dê-lhe Risque; e tome Vingança, ao invés de Boi da
Cara Preta. Com dois, três anos, eu dormia no colo virginal Pavima, ouvindo
Ninguém me Ama. Com cinco ou seis,
cantava com ela obras completas de Lupicínio Rodrigues. Essas coisas marcam
fundo, vocês sabem. Podem marcar pra sempre, gravemente até: fazem a fortuna
dos psicanalistas quando a gente fica taludinho...
E Angela e Cauby, Pavima
cantava. De Angela, muito Cinderela. Cauby,
puro descorno, ela adorava. Lembro de uma porta interna de guarda-roupa -
lembro mais do mosqueteiro suspenso, de filó branco, sobre a colcha de renda
(quarto de moça), da janela aberta sobre o pátio cheio de begônias - e daquela
porta interna do guarda-roupa com fotos de Cauby e Sandro Moretti. Cauby de
bigodinho, orelhas meio de abano. Fino, sóbrio. Usasse faca, tia Vilma puxaria
a dela, bem afiada, se alguém ousasse chamar Cauby de "maricão". E
como chamavam!
Sandro Moretti: galã de fotonovela |
Tivesse eu Pavima por perto
- e não lá nos ermos de Itaqui - hoje à noite a levaria para assistir Cauby e
Angela em "As Vozes". Talvez, suprema subversão, conseguisse fazê-la
beber pelo menos uma vodka. Não, não me atrevo a imaginar tanto. Um singelo
copo de vinho, branco naturalmente - quem sabe? Eu ficaria de porre total,
lógico, e falaríamos de todo esse tempo que se foi, e dos que morreram, e dos
que se descaminharam, dos que a vida feriu fundo, e dos que sofreram duramente
por amor (ou falta de). Com Angela e Cauby ao fundo, talvez a velha - muito velha
- e boa - boa no sentido vasto da generosidade - Pavima revelasse enfim seu
grande segredo indizível. Que deve haver um, fatal. Sobre uma história que não
houve. Homem casado, talvez? Um cunhado, um oficial do exército, um estudante
pobre? Que vil sedutor, meu Deus?
Ao som das vozes de Cauby e
Angela, eu e Pavima. Eu ficaria pensando qualquer coisa meio longa e
complicada, como esta, assim: amar de paixão tresloucada ou detestar com as
mais recônditas fibras do self, achar breguésimo ou tão brega, mas tão brega
que (como o princípio zen do yin e do yang) chega a ficar requintadamente
chique, qualquer dessas atitudes, intelectuais ou emocionais, em relação a
Cauby e Angela não têm nada a ver.Se eu pudesse ver, do outro lado da mesa, os
olhos muito cansados e quase azuis de tia Vilma por trás dos óculos de lentes
grossas, teria ainda mais certeza que Cauby e Angela pairam infinitamente acima
dos nossos pobres e preconceituosos padrões críticos.
Mas claro que, se eu quiser,
posso colocar imediatamente o disco dos Inocentes e acabar com este clima. Mas
é este clima que não acabam, como não acabam Angela e Cauby, as vozes que só
por soarem, independente do que dizem, trazem de volta o passado de um país
inteiro. Fico remexendo à toa em fotos e recortes antigos. Anoto os nomes dos
oito irmãos da operária Abelim Maria da Cunha (Angela): Abdmar, Abiezer,
Ablair, Abiail, Abladina, Abdiel, Abmael e Abedil. Parece uma oração. Encontro
um elogio de Louis Armstrong, outro de Elis, à voz de Sapoti (e aquele agudo?).
Vou mais fundo até encontar - juro - o registro de uma dança da inteiramente
dark de Cauby, em 1952. Detalhes não posso dar. Mas é forte. Aliás, com suas
antenas mutantes, o Supla pegou esse lado do Cauby. E Elis, quando gravou com
ele o infernal Bolero de Satã:
"Agora me assalta a aflição de chorar louco e só de manhã".
Tia Vilma/Pavima/Vilminha
teria hoje talvez uma das melhores noites de sua vida em sépia. Ficaríamos numa
mesa ao fundo, cúmplices. Tenho certeza que ela cantaria junto Vida de Bailarina, bem baixinho. E
fingindo limpar os óculos, enxugaria muito dissimuladamente - mas não tanto que
eu não percebesse - outra daquelas furtivas lágrimas
O Estado de S. Paulo - Caderno 2 - Sexta-feira, 6 de junho de 1986
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