Natália Lage em À Beira do Mar Aberto, |
Tem 16 anos. Feitas as contas poderia ser minha neta, posto
que sou 30 anos mais velho. Supondo que eu tivesse tido um filho aos 15, e esse
filho também tivesse tido um filho aos 15 - esse último filho ou filha, neto ou
neta, poderia ser Natália. Por escolha, não tive nenhum. Os dois possíveis, em
comum acordo com suas mães, foram abortados. Coisa de que me arrependo até
hoje, ainda que não soubesse o que fazer a esta altura do safári com um rapaz
ou moça de 19 anos e outro ou outra de 13.
Penso muito nesses filhos que não deixamos que vivessem. Rezo
por eles, peço-lhes sempre um perdão desesperançado, amargo, desconfiado de que
o crime cometido será para sempre imperdoável. Mas como Deus, embora aja,
arranja jeitos tortuosos de compensar, volta e meia cruzo com alguém que
poderia ser um daqueles filhos.
Natália é desses. Pele branca de porcelana, cabelos lisos
quase louros, silhueta barroca, parece uma inglesinha do século passado. Não é
difícil imaginá-la envolta em rendas, com chapéu e luvas, um livro ou bordado nas
mãos. Fala pouco, quase nada. Mas olha muito o fundo. Séria, não fica jogando
carinho fora (é de Escorpião), mas de vez em quando pega na sua mão ou te dá um
abraço apertado sem avisar. Súbito e verdadeiro, o gesto de Natália nunca é
social, estudado ou sedutor: toca em você respirando suave, sem nada pedir, sem
carências. Como quem diz qualquer coisa tipo "que bom navegamos
juntos".
Até dez dias atrás eu só conhecia Natália da TV: ela foi
filha ao mesmo tempo de Vera Fischer e de Silvia Pfeiffer (e de Mário Gomes)
numa telenovela cujo nome não lembro, depois a hiponga Adrenalina de
Tropicaliente. Por amigos, certo dia soube que Natália gostava dos meus livros.
Mas ela é tão jovem, pensei, e esses teens (argh!) não lêem nada, pensei assim
com preconceito burro.
O elenco de À Beira do Mar Aberto |
Fim do ano passado me procurou Marta Lage, mãe de Natália,
queria produzir um espetáculo teatral com meus contos. Natália, imaginem, não
tinha coragem de falar comigo. Pura intuição do bem, autorizei na hora.
Juntaram-se ao elenco Candé Horácio (19), Suzana Pires (18),
Henrique Farias (20) e Mauricio Branco (25), todos eles filhos-não-tidos.
Gilberto Gawronski começou a dirigí-los. Surgiu o título de um dos contos - À
Beira do Mar Aberto, a idéia justa desse maar imenso da vida aos pés dos muitos
jovens, tão jovens que mal começaram a navegar. Terá sereia nesse mar? E ilha e
tubarão, terá? Piratas, tesouros, naufrágios, calmarias, tempestades, recifes,
corais, escorbutos, banzo e nácar? Oh, Deus, tende piedade dos moços: só
navegando em tuas águas pra descobrir tanto horror e maravilha.
Então vim ao Rio, e com uma equipe de 17 lindas pessoas fomos
a Fortaleza estrear. Conheci Natália. Durante a viagem, enquanto os outros se agitavam
excitados, ela leu todo O Marinheiro, de Fernando Pessoa; num bar, a vi sair
discretamente para caminhar de mãos dadas com um menino mendigo. De vez em
quando, numa mesa cheia, baixa a cabeça e escreve, escreve, escreve. É uma
atriz. Tão menina, e de vez em quando umas entonações sabidas de balzaquiana,
ironias de diva, charme de gatinha. Estranha densidade. Aura, magnetismo:
talento.
Voltei, eles ficaram. Vão a Natal, João Pessoa, Salvador,
Ilhéus, depois o Sul. Eu trouxe Natália no meu coração assustado, feito flor
rara. Desde que a conheci, aqueles filhos que não tive me doem bem menos. Que é
da natureza da dor parar de doer, tenho aprendido.
Caderno
2, OESP - Domingo, 5 de fevereiro de 1995
E aqui, sobre a peça À Beira do Mar Aberto
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