Ilustração da coluna de Caio F. quando publicada no Caderno 2, em maio de 1986 |
Amizade telefônica
Palavras, sentido e lógica
ganham novos sentidos quando se fala sem se ver
Amigos telefônicos são
preciosos. E por isso mesmo, raros. Eu tenho três ou quatro, e bastam. Amigo
telefônico é assim: você só fala por ele por telefone. Ou fala pessoalmente
também, mas é completamente diferente. Quando você encontra muito seguido um
amigo telefônico, a amizade se divide em duas amizades paralelas: a que
acontece cara a cara, e a que acontece telefonicamente. Esta sempre mais funda.
Há coisas que só se diz por telefone: Telefone elimina rosto, gesto, movimento:
a voz fica absoluta. O que a voz diz, ao telefone, é tudo, porque por trás dela
não acontece nada como um franzir de sobrancelhas, um riso no canto da boca. E
se acontece, você não vê. O que você não vê praticamente não acontece. Ou
acontece tão vagamente que é como se não.
A gente recorre a um amigo
telefônico quando alguma coisa não cabe por dentro. Não apenas dor - assim,
tipo CVV -, porque se fosse isso, virava neurose braba, feia. Depois de um
certo ponto de aluguel, vez que você ligasse, então, teu amigo telefônico ia
dizer que não estava. Com toda razão. A gente recorre a ele quando alguma coisa
boa não cabe dentro sozinha: tem que ser dita.Você liga para dizer que está
feliz. Teve uma iluminação, pressentimento, uma fantasia, desejo. As pautas
desenvolvidas na amizade telefônica podem ser muito abstratas, entende? E essa
é outra das grandes diferenças entre a amizade telefônica e a outra: poder
falar de coisas que quase aconteceram. Ou que deviam acontecer. Um pouco como
em carta.Antigamente, carta era o equivalente do telefone. Quando não tinha
telefone - há muitos, muitos anos - eu tive vários amigos-por-carta. Por, que
na carta, também, você diz coisas que, cara a cara, nunca seriam dizíveis.
Amigo telefônico é noturno.
A vontade de falar com ele costuma acontecer quando não há mais nada
interessante na TV, quando todos os livros e todos discos do mundo não matariam
a sede de ouvir uma voz humana dizendo coisas que respondam ou complementem ou
rebatam outras coisas que a sua voz vai dizendo. E vai dizendo sem preocupação
de ordem, de lógica, de senso. Com amigo telefônico, toda preocupação de
parecer lúcido, consciente & equilibrado é inteiramente desnecessária. Se
uma terceira pessoa ouvisse um papo entre dois velhos amigos telefônicos,
provavelmente acharia completamente louco. Na amizade telefônica, a lógica é
tão sutil que parece não existir. Mas existe.
Há também os silêncios.
Silêncio de amizade-cara-a-cara quase sempre soa (???) constrangedor. As
pessoas desviam os olhos, acendem cigarros, fazem comentários tipo nada-a-ver,
só para quebrar o silêncio. Em amizade telefônica, nunca: um fica ouvindo a
respiração do outro durante muito tempo. E não precisa dizer nada. A respiração
do outro fala olha, estou aqui, está tudo bem, seja o que for, vai dar certo,
estou atento ao seu coração, você está atento ao meu, e por estarmos atentos ao
coração um do outro, só por isso - ele fica mais leve, o coração.
Agora são sete horas da
manhã, estou pensando em meus amigos telefônicos. Mas não telefono. Amigo
telefônico costuma dormir até tarde, principalmente às segundas-feiras - porque
as noites de domingo - ah, essas: são praticamente telefônicas. E eles são
solitários, esses amigos meio estranhos: ouvem vozes. Por isso mesmo, ponho um
disco de João Gilberto bem baixinho e dou um beijo à distância na testa de cada
um deles. Envio pelo espaço a voz de João para embalá-los nesse sono da manhã
feriada e chuvosa. Que nem canção-de-ninar - me liga, tá?
OESP, Caderno 2,
Terça-feira, 27 de maio de 1986
blza
ResponderExcluirQuer Pregar Com Conhecimento Bíblico Profundo, Dominando a Oratória, com boa Dicção, Citando Versículos de Memória, sem Timidez e com total Eloquência?
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