A literatura brasileira contemporânea, com raríssimas
exceções, vive ainda na Idade da Pedra. Tempos atrás participei dum seminário
de literatura (não tenho o costume, mas pagavam 100 notas e eu tava duro, como
sempre) e num “painel” sobre o conto um respeitável crítico parou em Katharine
Mansfield e Tchecov, como ideais perfeitos do gênero. Ainda se discute a
diferença entre forma-e-fundo, a distinção entre conto-novela-romance. Tudo
isso está morto e cheira mal. Como mortos e cheirando mal os caras que o
discutem. A tal
literatura-brasileira-contemporânea precisa de alguém ou um grupo que façam com
ela o que Caetano & Gil fizeram com a música em 67: introduzir a
geleia-geral, a guitarra elétrica, os anos 70. Claro que os jovens não lêem.
Literatura, nos termos em que é encarada e discutida aqui nesta terra, cheira a
mofo, a putrefação.
Uma pausa para render muitas homenagens a Qorpo-Santo, a
Oswald e Mario de Andrade, a Luiz Carlos Maciel, aos irmãos Campos, a Torquato
Neto, a Gramiro de Matos e seu “Os Morcegos Estão Comendo os Mamãos Maduros”.
Respeito o trabalho de, por exemplo, Sérgio Sant’Anna,
Roberto Drummond, João Ubaldo Ribeiro, Ignácio de Loyola, Flávio Moreira da
Costa, Lucienne Samôr. Eles encaram o nosso tempo, usando a forma do nosso
tempo. Quebradas, loucas, caóticas. Cito um romance mal lido e mal
compreendido: As Meninas, de Lygia Fagundes Telles. A essa altura do campeonato
não se admite bom comportamento, bom-mocismo. O jogador em que eu me amarraria
se gostasse de futebol seria justamente aquele que foi expulso do campo por
violar as regras. Eu disse “VIOLAR AS REGRAS”. “Derrubar as prateleiras, as
estantes, as estátuas, louças, livros.”
Só para situar: tenho três livros publicados. O primeiro:
Inventário do Irremediável, contos, ed. Movimento, 1970; o segundo (primeiro a ser escrito): Limite
Branco, romance, ed. Expressão e Cultura, 1971; o terceiro: O Ovo Apunhalado,
contos, ed. Globo, 1975. Comecei muito
cedo. Com seis anos escrevi meu primeiro conto (a história dum pistoleiro
chamado Tumba). Limite Branco é o romance escrito aos 18 anos – e é exatamente
isso: um romance escrito aos 18 anos. Inventário já tem umas barras mais
pesadinhas, mas ainda é rígido e palavroso. O Ovo Apunhalado é o primeiro livro
que assumo integralmente. Levou três anos para ser publicado, mas diz dessas
coisas que estou falando aqui. Passou por uma espécie de “expurgo” antes de ser
impresso – mesmo assim acho que chegou bastante vivo. Como das vezes
anteriores, praticamente ninguém escreveu nada sobre ele. Mas tudo bem. Agora
preparo outro livro de textos diversos, a chamar-se Maldições, ou talvez Lixo
& Purpurina, e um romance (?) sem título.
Minha situação na literatura-brasileira-comteporânea é
exatamente igual à minha situação na vida. Marginal, sem profissão (quem disse
que escritor é profissão?). Sou mal visto em certos meios (que aliás não frequento)
literários locais. Por exemplo: não me convidam para palestras com estudantes
secundários porque acham que um excesso de jeans & pelos passaria aos
inocentes jovens uma imagem de excessivo desbunde. Cintos da castidade mentais?
Pois é. “Por que vocês não sabem do lixo ocidental”.
Quando saiu O Ovo Apunhalado vieram com umas estórias de
que o sonho tinha acabado (ainda), coisas assim. Quero dizer aqui com
maiúsculas e com licença de Rita Lee que O SONHO CRESCEU. A respeito disso,
cito a mim mesmo, um trecho do conto Eles que está no Ovo: “Você não pode
voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser, até o
fim de sua vida você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou
movimentar-se de seu lugar confortável. Mas a partir do momento em que você vê,
mesmo involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão mais a ser
as mesmas, e nem você próprio será o mesmo”.
Depois de anos de estagnação na literatura gaúcha começou
a acontecer alguma coisa viva e nova. Surgiram duas antologias publicadas
independentemente, Teia e Há Margem. Participei da primeira, na segunda só
entrou gente inédita em livro. Não há um grupo estruturado, não há sequer um
movimento, é provável que esse trabalho não prossiga. Mas os livros estão aí,
para quem quiser saber dessas pessoas cheias de vontade de não calar mais,
nesta terra onde artista é sinônimo de louco, ladrão ou prostituta. Há pelo
menos três excelentes contistas: Sergio Caparelli, Jane Araujo e Valdir
Zwetsch, mais dois poetas da pesada: Eduardo San Martin e Nei Duclós.
Tudo é social & político. Se escrevo um texto hoje
inevitavelmente ele terá seu sentido social, porque foi gerado dentro de uma
série de circunstâncias de tempo e espaço que formam o aqui-agora político e
social, mesmo que se passe no século II A.C.. Seguinte: somos um rebanho que
perdeu o pastor. Allen Ginsberg dizia que as grandes cidades são cascas de
ferida na pele do mundo. O futuro é um salto no escuro. O amor, uma forma de
violência. O centro de São Paulo, um imenso pátio de manicômio (o de Porto
Alegre e o do Rio também). A saída, onde fica a saída? Não sei. Viver hoje em
dia parece ser sinônimo de segurar a barra. Segure a sua. Não aceito quem
pretenda escrever ou viver aqui-agora ignorando tudo isso. Não posso solucionar
o horror, mas posso pelo menos tentar alertar o maior número possível de
pessoas para ele. Aí então talvez se possa fazer alguma coisa. Porque ainda
existem senhoras leandros duprés dizendo que “afora a educação liberal não
teria mais nada a criticar no mundo de hoje”.
O resto todo mundo sabe. Editores que não editam.
Distribuidoras que não distribuem. Livrarias que não vendem e leitores que não
compram. Escritores inócuos. E um e outro louco ou sábio (nunca sabemos) aqui e
lá tentando desesperadamente fazer alguma coisa. Fundando um novo jornal quando
o antigo é fechado; pagando a impressão de seus textos em papel jornal; botando
a boca no mundo, quando o mais prudente seria omitir-se para salvar a própria
pele. Só que a pele já está perdida, e tudo está bem quando não se tem mesmo
mais nada a perder.
Para quem não entendeu ainda, uma frase de R. D. Laing:
“Se eu pudesse despertar você, arrancá-lo à sua miserável opinião, se pudesse
arrancá-lo à sua desgraçada mente, se pudesse falar, eu lhe contaria”.
Escrita - Revista mensal de literatura, 1976
Obrigada! :)
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