quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A grande fraude de tudo - Final



A literatura brasileira contemporânea, com raríssimas exceções, vive ainda na Idade da Pedra. Tempos atrás participei dum seminário de literatura (não tenho o costume, mas pagavam 100 notas e eu tava duro, como sempre) e num “painel” sobre o conto um respeitável crítico parou em Katharine Mansfield e Tchecov, como ideais perfeitos do gênero. Ainda se discute a diferença entre forma-e-fundo, a distinção entre conto-novela-romance. Tudo isso está morto e cheira mal. Como mortos e cheirando mal os caras que o discutem.  A tal literatura-brasileira-contemporânea precisa de alguém ou um grupo que façam com ela o que Caetano & Gil fizeram com a música em 67: introduzir a geleia-geral, a guitarra elétrica, os anos 70. Claro que os jovens não lêem. Literatura, nos termos em que é encarada e discutida aqui nesta terra, cheira a mofo, a putrefação.

Uma pausa para render muitas homenagens a Qorpo-Santo, a Oswald e Mario de Andrade, a Luiz Carlos Maciel, aos irmãos Campos, a Torquato Neto, a Gramiro de Matos e seu “Os Morcegos Estão Comendo os Mamãos Maduros”.

Respeito o trabalho de, por exemplo, Sérgio Sant’Anna, Roberto Drummond, João Ubaldo Ribeiro, Ignácio de Loyola, Flávio Moreira da Costa, Lucienne Samôr. Eles encaram o nosso tempo, usando a forma do nosso tempo. Quebradas, loucas, caóticas. Cito um romance mal lido e mal compreendido: As Meninas, de Lygia Fagundes Telles. A essa altura do campeonato não se admite bom comportamento, bom-mocismo. O jogador em que eu me amarraria se gostasse de futebol seria justamente aquele que foi expulso do campo por violar as regras. Eu disse “VIOLAR AS REGRAS”. “Derrubar as prateleiras, as estantes, as estátuas, louças, livros.”

Só para situar: tenho três livros publicados. O primeiro: Inventário do Irremediável, contos, ed. Movimento, 1970;  o segundo (primeiro a ser escrito): Limite Branco, romance, ed. Expressão e Cultura, 1971; o terceiro: O Ovo Apunhalado, contos, ed. Globo, 1975.  Comecei muito cedo. Com seis anos escrevi meu primeiro conto (a história dum pistoleiro chamado Tumba). Limite Branco é o romance escrito aos 18 anos – e é exatamente isso: um romance escrito aos 18 anos. Inventário já tem umas barras mais pesadinhas, mas ainda é rígido e palavroso. O Ovo Apunhalado é o primeiro livro que assumo integralmente. Levou três anos para ser publicado, mas diz dessas coisas que estou falando aqui. Passou por uma espécie de “expurgo” antes de ser impresso – mesmo assim acho que chegou bastante vivo. Como das vezes anteriores, praticamente ninguém escreveu nada sobre ele. Mas tudo bem. Agora preparo outro livro de textos diversos, a chamar-se Maldições, ou talvez Lixo & Purpurina, e um romance (?) sem título.

Minha situação na literatura-brasileira-comteporânea é exatamente igual à minha situação na vida. Marginal, sem profissão (quem disse que escritor é profissão?). Sou mal visto em certos meios (que aliás não frequento) literários locais. Por exemplo: não me convidam para palestras com estudantes secundários porque acham que um excesso de jeans & pelos passaria aos inocentes jovens uma imagem de excessivo desbunde. Cintos da castidade mentais? Pois é. “Por que vocês não sabem do lixo ocidental”.

Quando saiu O Ovo Apunhalado vieram com umas estórias de que o sonho tinha acabado (ainda), coisas assim. Quero dizer aqui com maiúsculas e com licença de Rita Lee que O SONHO CRESCEU. A respeito disso, cito a mim mesmo, um trecho do conto Eles que está no Ovo: “Você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser, até o fim de sua vida você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu lugar confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão mais a ser as mesmas, e nem você próprio será o mesmo”.

Depois de anos de estagnação na literatura gaúcha começou a acontecer alguma coisa viva e nova. Surgiram duas antologias publicadas independentemente, Teia e Há Margem. Participei da primeira, na segunda só entrou gente inédita em livro. Não há um grupo estruturado, não há sequer um movimento, é provável que esse trabalho não prossiga. Mas os livros estão aí, para quem quiser saber dessas pessoas cheias de vontade de não calar mais, nesta terra onde artista é sinônimo de louco, ladrão ou prostituta. Há pelo menos três excelentes contistas: Sergio Caparelli, Jane Araujo e Valdir Zwetsch, mais dois poetas da pesada: Eduardo San Martin e Nei Duclós.

Tudo é social & político. Se escrevo um texto hoje inevitavelmente ele terá seu sentido social, porque foi gerado dentro de uma série de circunstâncias de tempo e espaço que formam o aqui-agora político e social, mesmo que se passe no século II A.C.. Seguinte: somos um rebanho que perdeu o pastor. Allen Ginsberg dizia que as grandes cidades são cascas de ferida na pele do mundo. O futuro é um salto no escuro. O amor, uma forma de violência. O centro de São Paulo, um imenso pátio de manicômio (o de Porto Alegre e o do Rio também). A saída, onde fica a saída? Não sei. Viver hoje em dia parece ser sinônimo de segurar a barra. Segure a sua. Não aceito quem pretenda escrever ou viver aqui-agora ignorando tudo isso. Não posso solucionar o horror, mas posso pelo menos tentar alertar o maior número possível de pessoas para ele. Aí então talvez se possa fazer alguma coisa. Porque ainda existem senhoras leandros duprés dizendo que “afora a educação liberal não teria mais nada a criticar no mundo de hoje”.

O resto todo mundo sabe. Editores que não editam. Distribuidoras que não distribuem. Livrarias que não vendem e leitores que não compram. Escritores inócuos. E um e outro louco ou sábio (nunca sabemos) aqui e lá tentando desesperadamente fazer alguma coisa. Fundando um novo jornal quando o antigo é fechado; pagando a impressão de seus textos em papel jornal; botando a boca no mundo, quando o mais prudente seria omitir-se para salvar a própria pele. Só que a pele já está perdida, e tudo está bem quando não se tem mesmo mais nada a perder.

Para quem não entendeu ainda, uma frase de R. D. Laing: “Se eu pudesse despertar você, arrancá-lo à sua miserável opinião, se pudesse arrancá-lo à sua desgraçada mente, se pudesse falar, eu lhe contaria”.   

                             Escrita - Revista mensal de literatura, 1976

                   



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