Há um conto de Clarice Lispector, não lembro
o nome, em que depois de mil complicações uma menina consegue para ler
Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. E lá pelas tantas, deslumbrada com
o livro, ela diz: “Era um livro para viver dentro dele”. São raros os livros
assim que você possa morar um pouco dentro, como uma outra vida paralela.
Conheço poucos. Alguns são obras-primas, outros não, porque um livro-para-viver-dentro-dele
não é necessariamente um clássico. John Fante, por exemplo, é supermemorável.
Um livro assim tem qualidades meio imperceptíveis, um jeito de puxar você para
dentro dele e misturar na sua própria vida. Tenho uma amiga que está morando,
há meses, dentro da série Duna, de Frank Herbert. Talvez esses livros ofereçam,
pura e simplesmente, aquilo que o velho Roland Barthes chamava de o prazer do
texto.
Sempre achei Garcia Márquez uma delícia,
antes do Nobel, desde que morei meses dentro de Cem Anos de Solidão. Anos
depois, pirei muito com Crônica de Uma Morte Anunciada – li, reli, tresli e até
hoje acho que talvez seja seu melhor livro. É simplesmente perfeito, só que não
é um-livro-para-se-morar. Já O Amor Nos Tempos do Cólera é plenamente
habitável: cheio de cheiros (já começa com um, o de amêndoas amargas, que
lembra “amores contrariados”), de cores, de formas. É folhetinesco no melhor
sentido: você torce, se envolve, se comove. Um certo toque folhetinesco talvez
seja característica dos livros memoráveis (O Tempo e o Vento, de Érico
Veríssimo, por exemplo, ou Jane Eyre, de Charlotte Bronte): humaniza e alivia
as experimentações geladas. Reconforta. Como uma chá.
Pode ser que O Amor não esteja à altura dos
dois outros que citei. Mas um-livro-de-se-morar-dentro também tem essa
característica: a gente não se importa nem um pouco com ele ser ou não
grandioso. Mas no final de cada dia desumanizado, achei um presente poder
rebater a dose diária de cinismo e atordoamento com o fiel amor de Florentino
Ariza por Fermina Daza. Como quando criança mergulhava nas Mil e Uma Noites, ou
naqueles Monteiros Lobatos de que Clarice falava. Para que pedir mais? Quero
ser cada vez mais simples. Mais burro até. Só para sentir mais vezes esse
gostinho raro: o prazer. Do texto e da vida.
OESP, Caderno 2 – Domingo, 2 de novembro de
1986
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