Na manhã do Rio, crescia
o tumulto. Era o povo ferido
exigindo seus direitos
o tumulto. Era o povo ferido
exigindo seus direitos
Exterior Dia Rio de Janeiro. Onze horas da manhã de terça-feira. 30 de junho de 1’987. Manhã de céu alucinadamente carioca. Azul, Azul. Névoa transparente sobre a baía, o mar e os morros, que vai se diluindo aos poucos. A névoa vira nuvem, a nuvem vira azul. Ar tão limpo que quase dói nos pulmões paulistanos. Na janela do carro, pelo aterro, uma velha letra do Caetano volta como trilha sonora: “Olhos abertos em verde sobre o espaço do aterro, sobre o espaço, sobre o mar, o mar vai longe do Flamengo o céu vai longe e suspenso”.
Interior Dia Quase meio-dia. Biblioteca Nacional, Cinelândia. Cheiro gostoso de livro, paz. Estudantes, professoras. Tudo quieto, organizado. Estou debruçado com Lucia Villares sobre microfilmes de jornais do século passado. Dezesseis de julho de 1889, o dia em que tentaram matar Dom Pedro II. Um ruído – buzinas, gritos –, vindo de fora, entra pelas janelas abertas, misturado ao azul, e começa a crescer. Comento “Eita Brasil biblioteca precisa de silêncio e toda essa zona lá fora...” Algumas pessoas começam a levantar das mesas, espiam pelas janelas. Deixo de lado os microfilmes, resolvo também dar a minha espiadinha. Me debruço numa janela. E vejo.
Exterior Dia Cinelândia, Avenida Rio Branco. Teatro Municipal. Cerca de dez pessoas estão paradas em frente a um ônibus. Gritam coisas tipo “Abaixo o aumento!”. O ônibus não pode seguir em frente. Os ônibus e carros que estão atrás, também não. O engarrafamento aumento. Lembro de ter lido nos jornais que o preço das passagens de ônibus foi aumentado. É que pensei assim – ué, não estava tudo congelado? O tumulto cresce.
Começa a juntar mais povo. Povo – povo: trabalhadores do Brasil – eu, você, nós. Estão furiosos. De longe, pode-se ler no rosto deles que estão cansados, com fome, sem dinheiro. O grupo duplica, quadriplica.
Interior Dia No grande salão da Biblioteca, não há ninguém nas mesas. Todos na janela olham o povo, que aumenta e grita e aumenta e grita mais. Impossível concentrar-se. O barulho de coisa viva, tensa, prestes a explodir, impede qualquer concentração.
Exterior Dia O povo que estava dentro dos ônibus engarrafados desceu para a rua, juntou-se ao outro povo. Agora sacodem violentamente os ônibus. Chegam alguns carros de polícia. Sirenes uivam. O povo joga pedras e vaia. Saia-justa a polícia tira o time. Ou finge que tira pela janela de um carro, o policial joga no ar algo parecido com um foguete de São João. Quando o foguete bate no asfalto, ouve-se um ruído igual ao de um tiro. Fumaça, gente com as mãos nos olhos, gás lacrimogêneo. Da janela, dá quase para ouvir, por trás dos gritos, o coração das pessoas batendo forte. Inclusive o meu. E o coração do povo, mais forte ainda. Exausto, humilhado, atrevido, corajoso.
Interior Dia As moças da Biblioteca resolvem fechar o prédio. Estão apavoradas. As pessoas se entreolham: medo. Com as janelas fechadas, entre os livros, o rugido do povo que chega lá de fora fica ainda mais assustador. Um funcionários nos leva pelos corredores até uma saída lateral. Saída discreta pelos fundos.
Exterior Dia Zona na rua. Praça de guerra. Gente caminha apressada. Polícia chegando. Bancos e lojas fecham. Convido Lúcia: “vamos dar o fora já daqui?”. Vamos para o Largo do Machado. Marrocos perde. O povo brasileiro nunca esteve tão pobre, tão feio, tão triste. E com tanto ódio, com toda a razão. Congela e corta num mendigo.
Interior Noite São Paulo, três dias depois. Meu quarto. Não consigo dormir. Penso no que vi, penso no Brasil. Abro o caderno Ideias do JB. Uma pequena entrevista do Mario Quintana me alivia a alma: “O Brasil não pode cair no abismo porque ele é maior do que o abismo”. Amém, velho, bom e sábio tio Mario. Deus te ouça
OESP – Caderno 2, 8 de julho de 1987
E aqui, Paisagem Útil, a canção do Caetano que Caio F. cita lá no começo
E aqui, Paisagem Útil, a canção do Caetano que Caio F. cita lá no começo
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