A crônica abaixo veio do facebook da Paula Dip e foi publicada na revista Lira Paulistana. Eis o post da Paula: "Procurei muito, e encontrei ontem, perdido entre meus arquivos, esse texto de Caio, "Abolerados blues, ou Para sempre teu", publicado nos anos 80 na extinta revista Lira Paulistana. Esse texto me inspirou quando dei titulo ao meu livro, e nele Caio fala de uma de suas grandes paixões: a cidade de São Paulo, que ele amou e odiou com igual fervor". E Para Sempre Teu Caio F., o livro de Paula Dip, lançado em 2009, breve estará com uma nova edição (a quinta) nas livrarias. Abaixo, Abolerados Blues ou Para Sempre Teu:
Meu
dia em Sampa começa sempre na Avenida Rebouças, saindo da vila escondida onde
habito para batalhar ônibus ou táxi (quando há grana, claro). Não é muito
agradável. Tem barulho demais, monóxido de carbono demais, tem um astral de
tensão que me faz chegar no trabalho como se tivesse um mármore na nuca.
Atrasado, correndo, pelas manhãs, maldigo muito a vida e a cidade, assobiando “deu
pra ti, baixo-astral/ vou pra Porto Alegre, tchau/ quando ando assim meio down/
vou pra Porto e bah trilegal”. Mas não vou pra Porto, a não ser para pegar um
colo rápido, vezenquandemente. É só um inofensivo consolo escapista. Nem deu
pra Sampa, ainda. Vou ficando por aqui, que Oxalá e Tupã me alumiem.
A
noite costuma aliviar, principalmente quando chove e tem aqueles luminosos
todos refletidos nas poças d’água da Consolação. Ou uns crepúsculos, uns
laranjas, uns vermelhos intensos pras bandas do Ibirapuera. Uma chuva fininha,
daquelas que dá vontade de ficar o dia todo em casa tomando chás, ouvindo Erik
Satie e lendo Proust, bem tia. Nessas horas, Sampa revela seus venenos
escondidos, suas seduções tão secretas e tão sutis que você mal percebe até que
ponto está envolvido. Aí você grita chega! e sai correndo pro Rio de Janeiro.
Que nada. Um dia, dois, três no máximo, aquela exuberância toda começa a gastar
e o de dentro da gente vai ficando meio sem paradeiro no meio da dispersão, dos
baixos leblons a sóis ipanemas da vida. Haja Ponte Aérea.
Deve
ser lugar-comum, mas Sampa é definitivamente um caso de amor mal resolvido,
sabe como? Você já amaldiçoou mil vezes a vez em que a conheceu, você já deu na
cara dela, ela já deu na tua cara (vezenquando ficam feias marcas, roxuras,
inchaços, cicatrizes), você já bateu forte a porta de casa jurando vingança e
nunca mais voltar. Perfídia, injúria: abolerados blues. Mas voltou sempre. E
teve também aquelas noites com vinho branco, luz de velas, depois lençóis de
cetim, suspiros, ah aquela tarde no Ibirapuera quando, olhando as carpas
coloridas, de repente tudo ficou mágico! E os planos, tantos planos em comum,
tantos encontros inesperados, tantas mãos se tocando mornas, fazendo tudo parecer
um grande e único corpo, com um só coração batendo sístole-diástole, todo
sangue e paixão. Como sobreviver à ausência disso?
Depois, tem pessoas. Só aqui existiria, por exemplo, Augusto de Campos. Ou Rita Lee. Ou Lygia Fagundes Telles. Ou Telmo Martino. Ou Cida Moreira. Ou J.C. Violla. Ou Bruna Lombardi. Ou José Márcio Penido. Ou se começo a enumerar, não paro. Então mesmo naqueles sábados à noite, quando a última possibilidade é discar 130 para ouvir uma voz humana, você sabe que em algum ponto da babylon city deve haver uma pessoa bonita, senão fazendo algo bonito pelo menos sendo, bonitamente, ela mesma. Ajuda? Pode ser. Ainda que ultimamente a cidade ande mais pro escândalo da Ro-Ro do que pra saúde de Lee Jones. Ou sou eu quem anda assim? Porque também não sei se sei mais separar o que é de dentro e o que é de fora de mim, o que me faz pensar – com ou sem zen-budismos, pouco importa – se a cidade não seria eu o tempo todo, ou vice e versa, tanto faz. Também tenho essas zonas lestes, esses jardins, moocas e morumbis esquizoidemente divididos sobre a pele asfaltada.
Depois, tem pessoas. Só aqui existiria, por exemplo, Augusto de Campos. Ou Rita Lee. Ou Lygia Fagundes Telles. Ou Telmo Martino. Ou Cida Moreira. Ou J.C. Violla. Ou Bruna Lombardi. Ou José Márcio Penido. Ou se começo a enumerar, não paro. Então mesmo naqueles sábados à noite, quando a última possibilidade é discar 130 para ouvir uma voz humana, você sabe que em algum ponto da babylon city deve haver uma pessoa bonita, senão fazendo algo bonito pelo menos sendo, bonitamente, ela mesma. Ajuda? Pode ser. Ainda que ultimamente a cidade ande mais pro escândalo da Ro-Ro do que pra saúde de Lee Jones. Ou sou eu quem anda assim? Porque também não sei se sei mais separar o que é de dentro e o que é de fora de mim, o que me faz pensar – com ou sem zen-budismos, pouco importa – se a cidade não seria eu o tempo todo, ou vice e versa, tanto faz. Também tenho essas zonas lestes, esses jardins, moocas e morumbis esquizoidemente divididos sobre a pele asfaltada.
E é
então que a paisagem vista através da janela se transforma subitamente num
espelho. No primeiro olhar, você rejeita, vidro vagabundo, espelho deformante
como aqueles de parque de diversões. Depois, aos pouquinhos, você começa a
encarar e vai aceitando. Não é simpático esse arranha-céu de vidro ali no olho
esquerdo? E o que me diz da praça larga sobre a boca? Da quaresmeira toda
florida entre os cabelos? Aquele tietê na testa cheira um pouco mal, é verdade,
e os shppingcenters no nariz incomodam bastante. Mas tanto gás neon cintila em
tuas pupulas desbotadas, baby, que você de repente fica tonto e gira e gira
todo vivo ao som de mil buzinas, sem saber nunca se de desespero ou de alegria.
Diz
que até o ano 2000 abre uma fenda embaixo de Sampa e engole tudo. Deus, preciso
dar um jeito de acabar com este caso! Devolva logo minhas cartas e minhas
fotografias, diaba. Apesar de tudo, para sempre teu
Caio Fernando de Abreu
Revista Lira Paulistana, começo dos anos 1980
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