Está de volta às livrarias Esta Valsa
é Minha, o romance autobiográfico de Zelda Fitzgerald. A caprichada edição da
Companhia das Letras fez a fineza de incluir o prefácio que Caio F. escreveu em
1986, quando o livro saiu por aqui. Está na capa, bem destacado: “prefácio
original de caio fernando abreu”. Ele iria adorar. A partir da próxima linha, tudo é do Caio.
Sempre imagino assim: um dia, um
daqueles dias longos, chapados e doloridos da clínica psiquiátrica, Zelda
sentou e escreveu, como se fosse a voz de outra pessoa, uma frase assim: “Essas
garotas pensam que podem fazer qualquer coisa e ficar impunes”. Porque provavelmente
era isso que diziam todos em volta dela. Ou só pensavam, nem é preciso dizer.
Estava escrito nos olhos e no comportamento dos médicos, das enfermeiras, dos
poucos amigos que a visitavam, e quem sabe até no rosto do marido Francis
Scott, obrigado agora a escrever e vender ficção como se fossem salsichas para
poder sustentá-la na clínica. Linda, jovem, talentosa, com um marido e uma
filha lindos – e louca. Pode?
Podia. Tanto que ela estava ali.
Depois de escrita aquela frase – imagino sempre –, o resto veio naturalmente:
em apenas seis semanas, ela terminou Esta Valsa é Minha. Escrito, como se pode
perceber por seu volume e pelo pouquissimo tempo, de um jato só. Zelda escrevia
para se justificar, para se compreender, para se salvar. Para orientar a si
própria dentro daquele poço onde tinha caído e que, até hoje, por falta de
outra palavra mais adequada, chamamos de “loucura”. Nesse sentido, conheço
apenas um outro livro assimm autoterapêutico: The Bell Jar (A Redoma de Vidro), o único romance
escrito pela poeta Sylvia Plath, pouco antes de suicidar-se, aos trinta e um
anos. Ela não conseguiu salvar-se através da literatura. Zelda também não: a
loucura voltaria em ondas, com pequenos intervalos, até o incêndio no hospital
psiquiátrico que a matou acidentalmente, em 1947, sete anos depois da morte de
Scott.
A autobiografia é nítida em Esta Valsa
é Minha. De certa forma, parece a versão pessoal de Zelda a tudo que Scott
contaria em Suave é a Noite, onde ela própria aparece com o nome de Nicole.
Aqui, ela se chama Alabama, uma garota ousada do sul dos Estados Unidos que, em
plenos anos 20, emerge de sua vida provinciana para casar-se com o artista
David Knight: “David Knight e srta. Alabama Ninguém” – ele grava com a ponta de
uma faca na madeira da porta, pouco depois de se conhecerem. E a vida, a
seguir, por trás dos prazeres, viagens e bebedeiras monumentais, parece ter
sido sempre a luta de Alabama para deixar de ser a “srta. Ninguém”. Ou a luta
de Zelda para deixar de ser a sombra, embora fascinante, do escritor mais
mimado e talentoso de seu tempo.
Capa da 1ª edição |
Alabama/Zelda tem uma filha (Bonnie,
no romance; Scottie, na vida real), um caso com um aviador francês (Jacques, no
romance; Edouard Josanne, na vida real). À procura da própria face, apaixona-se
pela dança: faz aulas alucinadamente, como se fosse possível tornar-se uma
grande bailarina. Zelda desistiu: Alabama, não. Persegue seu sonho até a
Itália, e é aqui que a loucura aparece sobre a forma de metáfora: Alabama quase
precisa amputar um pé, de tanto dançar. O pé salva-se, mas ela nunca mais pode
voltar a dançar. Para Alabama, a dança está perdida. Para Zelda, a sanidade
mental. O único jeito de prosseguir, então, é tentar compreender o que se
passou. Como diz Alabama, no final: “Junto tudo num grande monte que rotulo de “o
passado” em depois de esvaziar dessa maneira esse profundo reservatório que foi
um dia meu ser, estou pronta para continuar”.
Esta Valsa é Minha é principalmente
isto: a tentativa, apesar das mutilações, de continuar a vida. Com seus cortes
bruscos, seus diálogos derramados e técnica às vezes desconjuntada, mas
encharcado de emoção e entrega, o livro flui – para usar a imagem da própria
Zelda – “como a corrente clara e fria de um riacho de trutas”. Depois dele, é
possível compreender melhor aquela velha história de Zelda chamando os
bombeiros, trancada num quarto de hotel em Paris. Quando eles arrombaram a
porta, perguntando onde era o fogo, ela bateu no próprio peito e disse: “Aqui”.
E é então, também que se pode compreender aqueles versos de Ana Cristina Cesar:
“Chamem os bombeiros, gritou Zelda./ Alegria! Algoz inesperado”. Não, essas
garotas não podiam mesmo ficar impunes – dizem todos. E veja só: Sylvia Plath,
Ana Cristina Cesar, Zelda Fitzgerald e Alabama Knight – para ficarmos so nessas
quatro – não ficaram. Mas deixaram versos, histórias. E lendas. Que talvez não existissem,
se elas – bravas garotas – não tivessem ousado ir muito além do mediocramente
permitido.
Aqui, uma resenha de Pedaços do Paraíso, coletânea de contos do casal Zelda/ Scott http://caiofcaio.blogspot.com.br/2013/03/desesperados.html
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