segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Prefácio à Esta Valsa é Minha

Está de volta às livrarias Esta Valsa é Minha, o romance autobiográfico de Zelda Fitzgerald. A caprichada edição da Companhia das Letras fez a fineza de incluir o prefácio que Caio F. escreveu em 1986, quando o livro saiu por aqui. Está na capa, bem destacado: “prefácio original de caio fernando abreu”. Ele iria adorar. A partir da próxima linha, tudo é do Caio. 


Sempre imagino assim: um dia, um daqueles dias longos, chapados e doloridos da clínica psiquiátrica, Zelda sentou e escreveu, como se fosse a voz de outra pessoa, uma frase assim: “Essas garotas pensam que podem fazer qualquer coisa e ficar impunes”. Porque provavelmente era isso que diziam todos em volta dela. Ou só pensavam, nem é preciso dizer. Estava escrito nos olhos e no comportamento dos médicos, das enfermeiras, dos poucos amigos que a visitavam, e quem sabe até no rosto do marido Francis Scott, obrigado agora a escrever e vender ficção como se fossem salsichas para poder sustentá-la na clínica. Linda, jovem, talentosa, com um marido e uma filha lindos – e louca. Pode?

Podia. Tanto que ela estava ali. Depois de escrita aquela frase – imagino sempre –, o resto veio naturalmente: em apenas seis semanas, ela terminou Esta Valsa é Minha. Escrito, como se pode perceber por seu volume e pelo pouquissimo tempo, de um jato só. Zelda escrevia para se justificar, para se compreender, para se salvar. Para orientar a si própria dentro daquele poço onde tinha caído e que, até hoje, por falta de outra palavra mais adequada, chamamos de “loucura”. Nesse sentido, conheço apenas um outro livro assimm autoterapêutico: The Bell Jar (A Redoma de Vidro), o único romance escrito pela poeta Sylvia Plath, pouco antes de suicidar-se, aos trinta e um anos. Ela não conseguiu salvar-se através da literatura. Zelda também não: a loucura voltaria em ondas, com pequenos intervalos, até o incêndio no hospital psiquiátrico que a matou acidentalmente, em 1947, sete anos depois da morte de Scott.

A autobiografia é nítida em Esta Valsa é Minha. De certa forma, parece a versão pessoal de Zelda a tudo que Scott contaria em Suave é a Noite, onde ela própria aparece com o nome de Nicole. Aqui, ela se chama Alabama, uma garota ousada do sul dos Estados Unidos que, em plenos anos 20, emerge de sua vida provinciana para casar-se com o artista David Knight: “David Knight e srta. Alabama Ninguém” – ele grava com a ponta de uma faca na madeira da porta, pouco depois de se conhecerem. E a vida, a seguir, por trás dos prazeres, viagens e bebedeiras monumentais, parece ter sido sempre a luta de Alabama para deixar de ser a “srta. Ninguém”. Ou a luta de Zelda para deixar de ser a sombra, embora fascinante, do escritor mais mimado e talentoso de seu tempo.

Capa da 1ª edição
Alabama/Zelda tem uma filha (Bonnie, no romance; Scottie, na vida real), um caso com um aviador francês (Jacques, no romance; Edouard Josanne, na vida real). À procura da própria face, apaixona-se pela dança: faz aulas alucinadamente, como se fosse possível tornar-se uma grande bailarina. Zelda desistiu: Alabama, não. Persegue seu sonho até a Itália, e é aqui que a loucura aparece sobre a forma de metáfora: Alabama quase precisa amputar um pé, de tanto dançar. O pé salva-se, mas ela nunca mais pode voltar a dançar. Para Alabama, a dança está perdida. Para Zelda, a sanidade mental. O único jeito de prosseguir, então, é tentar compreender o que se passou. Como diz Alabama, no final: “Junto tudo num grande monte que rotulo de “o passado” em depois de esvaziar dessa maneira esse profundo reservatório que foi um dia meu ser, estou pronta para continuar”.

Esta Valsa é Minha é principalmente isto: a tentativa, apesar das mutilações, de continuar a vida. Com seus cortes bruscos, seus diálogos derramados e técnica às vezes desconjuntada, mas encharcado de emoção e entrega, o livro flui – para usar a imagem da própria Zelda – “como a corrente clara e fria de um riacho de trutas”. Depois dele, é possível compreender melhor aquela velha história de Zelda chamando os bombeiros, trancada num quarto de hotel em Paris. Quando eles arrombaram a porta, perguntando onde era o fogo, ela bateu no próprio peito e disse: “Aqui”. E é então, também que se pode compreender aqueles versos de Ana Cristina Cesar: “Chamem os bombeiros, gritou Zelda./ Alegria! Algoz inesperado”. Não, essas garotas não podiam mesmo ficar impunes – dizem todos. E veja só: Sylvia Plath, Ana Cristina Cesar, Zelda Fitzgerald e Alabama Knight – para ficarmos so nessas quatro – não ficaram. Mas deixaram versos, histórias. E lendas. Que talvez não existissem, se elas – bravas garotas – não tivessem ousado ir muito além do mediocramente permitido.


Aqui, uma resenha de Pedaços do Paraíso, coletânea de contos do casal Zelda/ Scott http://caiofcaio.blogspot.com.br/2013/03/desesperados.html






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