terça-feira, 20 de junho de 2017

Duas ou três coisas sobre os anos 80


                 Duas ou três coisas sobre os anos 80


Foto de Juca Martins
Não sei de onde veio essa mania de dividir o tempo em décadas. Como ele se tornasse mais compreensível e suportável assim organizadinho, disposto em prateleiras. Penso então que a gente quase sempre dá nome às coisas para perder o medo delas. Não sei se conseguimos. Mas sei que se eu falar anos 40 ou 50 ou 60 ou 70, imediatamente você monta uma colagem-painel na cabeça, onde cabem de Humphrey Bogart a Martha Rocha, de Crush a Aída Curi, Patricia Hearst e Sid Vicious, Chevrolet Impala e flower-power. Arbitrária ou não, a divisão funciona. Pelo menos para dar uma certa ilusão de disciplina ao caos.

Mas se eu falar anos-80, você pensa o quê? Tenho pensado duas ou três coisas sobre isso. Com a autoridade talvez apenas de estar dentro deles, em pleno centro vertiginoso e assustador da exata metade deles (junho, 85), perdido entre os 10 milhões de habitantes desta cada vez mais dura Sampa. E se adjetivo “vertiginoso & assustador” já estou dizendo senão três, pelo menos duas coisas sobre este tempo. Sinto muito: conto só com o que sinto e os meus sentidos captam.

Anda tudo muito triste. Engolimos a negação das diretas, aceitamos a meia-sola Tancredo Neves, devoramos a orgia fúnebre via Rede Globo. Órfãos, caímos nos braços de José Sarney. Que não escolhemos, mas tudo bem, cara: trata-se da “Nova República” anunciada pelas centenas de pombos que Fafá de Belém soltou por aí. Uma mágica: Fafá solta a pomba e, plim-plim!, a Nova República cai do céu como um maná, solucionando as secas, enchentes, inflação, fome, desemprego e solidão. Só que não aconteceu nada. Não só em relação a isso, mas a muito mais, tenho me perguntado assim: a face dos anos-80 não estará sendo esse indisfarçável furo na cartola de onde deveria ter saído um coelho?

Não quero falar de Podres Poderes. Há coisas mais graves no ar. São Paulo atualmente é uma cidade tomada pela paranoia do Aids. Pelo menos na faixa de gente-como-a-gente: essa parcela mínima e privilegiada da população que não só come e mora (coisa rara), como ainda por cima ainda lê, vai ao cinema, essas coisas. Conheço pessoas que não se tocam mais. O que é que se faz quando aquilo que era possibilidade de prazer – o toque, o beijo, o mergulho no corpo alheio capaz de nos livrar da sensação de finitude e incomunicabilidade – começa a se tornar possibilidade de horror? Quando o amor vira risco de contaminação. Pouco importa se entre homens e mulheres, entre homens e homens ou mulheres e mulheres. Os médicos acham importante desvincular a ideia da Aids da homossexualidade, sabia? E pouco importa também não saber ao certo de onde veio o vírus maldito. As hipóteses não atenuam o fato: a coisa existe. E mata. Pior ainda: estimula a níveis dementes o preconceito contra a mais castigada das minorias. Há qualquer coisa de nazismo no ar. Qualquer coisa de fogueiras medievais para queimar os feiticeiros. Lenha é que não falta.

Então, para nos distrairmos, há o pós. Pós-punk, pós-new wave, pós-moderno, pós-tudo, pós-pós. E há o new: new catolicismo, new-jovem-guarda, new puritanismo. Ninguém falou ainda no pré. Pré-qualquer-coisa. Anos-80 como pré cara a cara com a nossa perdição de micróbios doentes na costa frágil de um planetinha insignificante? Anda, sim, tudo muito triste. Tudo foi questionado, experimentado, negado, superado: a moda caiu de moda. O vazio e a involução tornam-se dolorosamente nítidos se a gente colocar lado a lado, por exemplo e ao acaso, Beatles e Menudos. Embora eu até possa concordar que a abobrinha seja uma saudável saída para the horror... the horror... Os fins de semana paulistanos têm sido pródigos em abobrinhas para os mais variados gostos, de amantes profissionais a rapazes com problemas por usarem óculos. Mas a gente não é hiena, certo?

Mas a lesão mais feia, mais feia que a ferida na perna do mendigo da esquina aqui de casa, corroendo por trás dos modelinhos Company ou Fiorucci é essa medonha suspeita de que de tanto pestear a natureza, o homem finalmente conseguiu tornar-se, ele mesmo, a própria peste. Daí, eu também ando muito triste. E sem entender quase nada.

                        Revista Domingo, Jornal do Brasil, 2 de junho de 1985


Atenção: A coluna de Caio F. no Caderno 2 do Estadão começou em 1986. Essa crônica pro JB é de antes disso

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