Em 1993,
Caio F. escreve sobre a volta dele. De quem? "não digo nem escrevo o nome
dele", ele escreve. "E não digo que volte direto por cima (embora
seja essa a meta), mas passo a passo. Deputado, senador." Pois, quase 25
anos depois dessa coluna de Caio, o tal anuncia que está na disputa à presidência. Abaixo a coluna
Adivinhe
quem vem para roubar
Fiquem atentos, ele quer voltar. Nas últimas semanas, aqui e
ali pelos jornais, encontro notas sobre a mudança para São Paulo, sobre o livro
que está escrevendo e até mesmo algum artigo estofado de palavras gordas tipo justiça, pátria, dignidade. Em fotos
recentes, continua com aquele ar entre o pinguim de geladeira e ator canastrão
de melodrama chicano, agora acrescido de certa aura estudadamente humilde. Como
se quissesse deixar bem claro que sofreu-e-aprendeu-com-o-sofrimento. Atenção,
a cilada está se armando. Como antes, tão lenta que mal se percebe.
Porque ele é espertíssimo. E não digo que volte direto por
cima (embora seja essa a meta), mas passo a passo. Deputado, senador. No
começo, não recusará os mais insignificantes espaços da mídia - e esta, o que é
horrível, lhe dará espaços cada vez maiores, mais nobres. (Se é que se pode
usar a palavra "nobre" em situação desse tipo.) Também porque virá o
livro, e haverá o pretexto de divulgá-lo e naturalmente vendê-lo. Aos quilos,
lógico. Tudo é business, aqui e no Haiti.
Até que, num final de semana, você vai tropeçar na cara dele
na capa das principais revistas do país. Humílimo, sofridérrimo, luzes
acentuando certas rugas amargas, certas sombras, quase santo. E enquanto rolarem
inimagináveis conchavos políticos por trás, a imagem começará a nos bombardear
de novo. Já imagino os sentimentos coletivos a serem utilizados em slogans
autopunitivos e maquiavélicos: erramos, fomos injustos, nunca é tarde para
corrigir um erro. Ele vai declarar que tinha certeza de que não o deixariam só,
como pedira, que o povo brasileiro, minha gente, não o trairia, que agora sim
vamos retomar o crescimento e a arrancada em direção ao século XXI e
patati-patatá, lembram?
Quando chegar o momento, virão votos em penca das regiões
mais medonhas do país. Como da outra vez. Haverá fraudes, acidentes
providenciais em caminhões que conduziriam eleitores do outro candidato - e
isso y otras cositas, jamais será esclarecido. Em seguida, estonteantes viagens
internacionais, superjatos, transatlânticos, jet skis, talvez um novo casamento
(o anterior, convenhamos, é difícil reabilitar). Sugiro: Lady Di após o
divórcio, ou Madonna (já que ela vem aí, não custa tentar. No caso de elas não
toparem, quem sabe Sula Miranda (aquela porção sertaneja)? E por que não Xuxa,
tão solitária e combalida sob o peso daquela estressante montanha de dólares?
Calma, também não precisa delirar... mas ele quer voltar, do
fundo mais lodoso de minha paranóia congênita - acho claríssimo. Ele sabe que,
das muitas doenças graves que afligem o país, a mais grave é talvez não
suportar a própria cara. Como da outra vez, quando em vez da rude cara operária
do outro preferiram a empoada dele, simulacro estúpido dos galãs de TV. Como se
votando nele se tornassem ele.
E os caras-pintadas, meu Deus, vão ficar com as caras no
chão! Aprenderão na carne aquilo que sempre ouviram dizer: o Brasil, meus
filhos, é um país sem memória. Tanto que, até hoje, ainda não percebeu que este
horror onde estamos atolados não passa do saldo legado por ele. A impunidade
para ele e seus capangas nos deixou uma inversão moral nojenta: se você é
honesto, você é trouxa. Não viram ele? Se ainda não, arregalem bem os fatigados
olhos: exatamente um ano depois de ter sido corrido, armando todas para voltar.
Não digo nem escrevo o nome dele. Como aquela palavra, o
contrário de sorte, cuja carga negativa desaba sobre quem a pronuncia. Pois
isso é o que vai acontecer a quem se deixar enganar outra vez. Não digam que
não avisei. Só vai ser difícil me achar para dizer qualquer coisa. Porque se
isso acontecer mesmo - além da imaginação - peço aos amigos que me joguem num
hospício e me deixem lá. Incomunicável.
O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 3 de
outubro de 1993
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