Daí um senhor das Minas Gerais escreve para reclamar das
lamúrias de Caio F. e ele, que nunca responde cartas de leitores, responde. A
crônica é uma maravilha. Uma espécie de resposta aos haters, antes das redes
sociais.
Lamúrias com chantilli
Só mesmo as mães são felizes.
Ou: caretas de Paris e New
York sem mágoas estamos aí
Ou: caretas de Paris e New
York sem mágoas estamos aí
Recebo muitas cartas de
leitores. Nem sempre - ou quase nunca -
respondo. Fico contente e grato, mas não tenho tempo. Também porque a maioria é tão legal que nem pede
resposta. Só dizem coisas boas, dão força. Ter leitores me espanta, não consigo
acreditar muito nisso. As cartas, alguns telefonemas também, desmentem essa
sensação. E é aí que sinto medo, porque vem o peso da responsabilidade sobre o
que dizer. Mas se deixo o medo baixar, eu travo e não escrevo nada. Então,
quando sento para escrever, é como se não tivesse leitor algum em parte alguma
do mundo. Fico só preocupado em dizer alguma coisa que eu mesmo realmente
acredite. Que seja verdade dentro de mim, e assim será muito amplo: porque eu
sou todo mundo, entende? Quem é da mesma família, entende sem muita explicação.
Quem não é, fazer o quê? Dar detalhe cansa.
Mas eis que, semana passada,
chegou uma carta irada. Um senhor lá das Minas Gerais dizia-se cansado das
minhas "lamúrias". Falava coisas como "pessimismo mórbido e
doentio" (oh Deus, estes oito anos de análise e uma alta servem pra quê? e
- medo - dizia-se temeroso que eu "influenciasse os jovens a cometer
suicídio". Nefasto Caio F.: seria eu tão poderoso e fatal assim? Uma
espécie de Jim Jones da crônica.
Isola rápido. Ô, meu senhor,
não quero isso não. Queria outro mundo, outra ordem social, outras relações
humanas - e me sinto um tanto idiota tentando explicar o que me parece óbvio.
Mais carinho, mais beleza, mais justiça, mais alegria. Qualquer coisa que qualquer
pessoa razoavelmente normal (mas "de perto ninguém é normal",
lembra?) quer. Mesmo um punk, só que o jeito de querer do punk é do avesso. E o
avesso é um jeito tão bom quanto qualquer outro. Além disso, não tem só cara e
coroa. Tem cara, coroa - e quina também.
E é aí que não entendo
certas pessoas. Principalmente essas que chamo de "as trolhas do
apocalipse". Sabe aquelas bem-intencionadérrimas? Sabe aquela linha
o-que-será-do-futuro-de-nossas-criancinhas? Sabe aquela linha
vamos-valorizar-o-sorriso-de-uma-criança-o-voo-de-uma-borboleta-e-o-azul-do-firmamento?
Viver é barra, meu senhor, Deus é naja e o amor - com licença de Maria Rita
Kehh - é uma droga pesada. E nada tenho contra najas, barras e drogas pesadas.
Só não acho que fazer aquele cretiníssimo "jogo-do-contente" de
Pollyana seja a melhor maneira de enfrentar e compreender o real. Todo mundo é
médico e monstro. A vida também. Você deve ficar ao lado do médico, mas encarar
o monstro quando ele pinta. Senão, meu caro, um dia ele te devora.
Acho que todo mundo
interessado em situar-se um pouco nestes anos 80 deveria ouvir pelo menos uma
vez Só as Mães São Felizes, de Cazuza. Tá tudo lá. Amargura não existe, quando
se tenta compreender. E pessimismo, pra mim, é palavra sem sentido quando penso
em Chernobyl ou Cubatão. Nem sempre o que é fácil é bom - me dizia um Dragão,
naquele domingo de chuva no aeroporto. Auto conhecimento, e por extensão
inevitável o conhecimento dos outros e do mundo, não é exatamente um mar de
rosas. Mas nunca tive medo de nada - de dentro ou de fora - que pudesse ampliar
minha consciência. Acho que esse é o único jeito digno de ser. Por isso mesmo,
durmo em paz toda noite. Muitas vezes só, confuso, angustiado, assustado - mas
absolutamente certo que sou uma pessoa legal. Ainda não nasceu a trolha do
apocalipse capaz de me provar o contrário.
Metade luz, metade treva. E
esse fio de navalha entre os dois, corda bamba afiada onde você, sombrinha
aberta da mão, pé ante pé se equilibra. Ou tenta. Sem rede de segurança, mas
com um sorriso nos lábios, e um grande, sonoro, enorme axé! no coração. Pra
todos nós.
OESP, Caderno 2, quinta-feira, 9 de outubro de
1986
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