sábado, 13 de janeiro de 2018

Por enquanto é só


A certa altura de Alice Que Delícia, peça de Antonio Bivar, uma das personagens (a filha Dilema) refere-se ao "boom das cantoras sapatas". Ou seja - aquele monte da cantoras de MPB surgidas nos anos 70, no auge do feminismo e de Malu Mulher, que o público aprendeu a identificar mais pelas características sexuais do que pelas vocais. Lembrou? Aposto que, em um minuto, você é capaz de identificar pelo menos meia dúzia. A elegância me impede de citar nomes. Ouvindo , primeiro LP (independente) da cantora Fortuna, essa história me voltou à cabeça. talvez daqui a dez anos, repensando a música brasileira deste final de década, alguém localize outro boom: as cantoras de vozes agudas. Lembrou? Aposto que, em um minuto, você é capaz de lembrar pelo menos meia dúzia. E a elegância, novamente, me impede de citar nomes.

Não que Fortuna não seja uma boa cantora. Ela é: afinadíssima e cheia de bom gosto na escolha do seu repertório - quatro músicas de Itamar Assunção (também produtor do disco), outra de Luiz Melodia, uma de Tetê Espíndola, outra de Arnaldo Black, mais um velho Tim Maia (Não Vou Ficar, antigo sucesso de Roberto Carlos) e um velhíssimo Herivelto Martins (o belo Caminhemos, em arranjo e interpretação apáticos). O problema é a receita. As cantoras do boom de vozes agudas adoram a vanguarda (?) paulistana (surpreendente, em Fortuna, é não gravar nenhum Arrigo, nenhuma versão de Augusto de Campos) e invariavelmente (re)gravam um Roberto Carlos, uma música francesa ou italiana dos anos 50/60 (Fortuna escapou dessa) e um clássico de "fossa". No release mesmo, Itamar avisa: "ela gravou Caminhemos, como poderia ter regravado As Rosas Não Falam, de Cartola, ou Trem das Onze, de Adoniran Barbosa". Ou (o acréscimo é meu) A Noite do Meu Bem, de Dolores Duran, ou Nada Além, de Custódio Mesquita.

Por esse repertório, passeia a voz de Fortuna. Previsível o primeiro, bem educada demais a segunda. Quase impessoal, sem nenhuma emoção. Você coloca e vai ouvindo e vira o disco com a impressão de que é sempre a mesma eterna faixa: correta, oportuna, com teclados, violões, guitarras e percussões entrando na hora certa. Lá pelas tantas a moça pergunta se o ouvinte tem lido Leminski, Jorge Mautner. No meu caso, decididamente não. Serve Adélia Prado, Armindo Freitas Filho, Sérgio Sant'Anna? Duvido. A julgar por Fortuna, a chamada vanguarda paulistana parece ter entrado em acelerado processo de diluição e repetição. Fortuna chegou atrasada. No seu inabalável bom comportamento, dá vontade de ouvir a voz rasgada de Nana Caymmi, ou os gritos desafiadores de Vange Leonel. Tivesse evitado a prudência de cair, confortável e sem riscos, no colo da vanguarda consagrada, Fortuna talvez tivesse resultados mais irregulares - mas sem dúvida menos monótono. Por enquanto, é só.


                   O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 12 de agosto de 1987 

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