A certa altura de Alice Que
Delícia, peça de Antonio Bivar, uma das personagens (a filha Dilema) refere-se
ao "boom das cantoras sapatas". Ou seja - aquele monte da cantoras de
MPB surgidas nos anos 70, no auge do feminismo e de Malu Mulher, que o público
aprendeu a identificar mais pelas características sexuais do que pelas vocais.
Lembrou? Aposto que, em um minuto, você é capaz de identificar pelo menos meia
dúzia. A elegância me impede de citar nomes. Ouvindo Só, primeiro LP
(independente) da cantora Fortuna, essa história me voltou à cabeça. talvez
daqui a dez anos, repensando a música brasileira deste final de década, alguém localize
outro boom: as cantoras de vozes agudas. Lembrou? Aposto que, em um minuto,
você é capaz de lembrar pelo menos meia dúzia. E a elegância, novamente, me
impede de citar nomes.
Não que Fortuna não seja uma
boa cantora. Ela é: afinadíssima e cheia de bom gosto na escolha do seu
repertório - quatro músicas de Itamar Assunção (também produtor do disco),
outra de Luiz Melodia, uma de Tetê Espíndola, outra de Arnaldo Black, mais um
velho Tim Maia (Não Vou Ficar, antigo sucesso de Roberto Carlos) e um
velhíssimo Herivelto Martins (o belo Caminhemos, em arranjo e interpretação
apáticos). O problema é a receita. As cantoras do boom de vozes agudas adoram a
vanguarda (?) paulistana (surpreendente, em Fortuna, é não gravar nenhum
Arrigo, nenhuma versão de Augusto de Campos) e invariavelmente (re)gravam um
Roberto Carlos, uma música francesa ou italiana dos anos 50/60 (Fortuna escapou
dessa) e um clássico de "fossa". No release mesmo, Itamar avisa:
"ela gravou Caminhemos, como poderia ter regravado As Rosas Não Falam, de
Cartola, ou Trem das Onze, de Adoniran Barbosa". Ou (o acréscimo é meu) A
Noite do Meu Bem, de Dolores Duran, ou Nada Além, de Custódio Mesquita.
Por esse repertório, passeia
a voz de Fortuna. Previsível o primeiro, bem educada demais a segunda. Quase
impessoal, sem nenhuma emoção. Você coloca e vai ouvindo e vira o disco com a
impressão de que é sempre a mesma eterna faixa: correta, oportuna, com
teclados, violões, guitarras e percussões entrando na hora certa. Lá pelas
tantas a moça pergunta se o ouvinte tem lido Leminski, Jorge Mautner. No meu
caso, decididamente não. Serve Adélia Prado, Armindo Freitas Filho, Sérgio
Sant'Anna? Duvido. A julgar por Fortuna, a chamada vanguarda paulistana parece
ter entrado em acelerado processo de diluição e repetição. Fortuna chegou
atrasada. No seu inabalável bom comportamento, dá vontade de ouvir a voz
rasgada de Nana Caymmi, ou os gritos desafiadores de Vange Leonel. Tivesse
evitado a prudência de cair, confortável e sem riscos, no colo da vanguarda
consagrada, Fortuna talvez tivesse resultados mais irregulares - mas sem dúvida
menos monótono. Por enquanto, é só.
O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 12 de agosto de 1987
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