Mas eu, tu, ele: todos caetaneiam
Faz tempo que desconfio. Na última
sexta-feira, tive certeza: devo mesmo estar enlouquecendo. Fui ver o filme de
Caetano – e gostei. Mais inquietante ainda – não achei chato. Isso que fazia um
calor senegalesco no Cine Metrópole tomado por tietes frenéticas, eu tinha
acabado de sair de um fechamento, estava com fome e sede. Do ponto de vista do
conforto físico, não havia clima para tolerar, por exemplo, 10 ou 15 minutos de
Hamilton Vaz Pereira recitando páginas e páginas de Grande Sertão: Veredas. Mas
de repente eu tinha relaxado e foi ficando gostoso estar lá atento à música da
palavra de Guimarães, o Rosa, enquanto via a cara boa de Hamilton. Preciso
reler Guimarães, pensei. E achei bom pensar – mais que pensar: querer isso. Por
que não?
Falei em tietes. O problema de Caetano,
coitado, são as tietes. As tietes e antitietes. Caetano faz ou diz uma coisa –
qualquer coisa – e imediatamente as tietes caem de joelhos em adoração
profunda, enquanto as antitietes correm em busca dos seus mais fétidos tomates
& pútrefos ovos para jogar no ícone. O que é, também, uma forma de tietagem.
Só que às avessas. Odiar Caetano, adorar Caetano – não há meio termo. Nesses
extremos, perde-se o centro, perde-se a quina da cara e da coroa, perde-se o
ponto exato da junção/fusão entre ying e yang, ou seja: o próprio Caetano. Sua
sensibilidade especialíssima, tudo que ele tem para dar de toque ou dica.
Preste atenção. Por que não?
Presto sempre atenção no que Caetano diz e faz:
ele me interessa. Como prestava atenção no que Clarice Lispector escrevia, como
presto atenção na cabeça de Augusto de Campos, como presto atenção nos filmes
de Arnaldo Jabor (quem reviu O Casamento, na Globo, há duas semanas, sabe que
vale a pena), como presto atenção nos desenhos de Mira Schendel. Então,
assistindo a O Cinema Falado, quando minha cabeça esquizo sobre o corpo cansado
queria escapar sobre o lado fácil do “ó, que saco essa falação!”, uma ou outra coisa se
dividia e – sem razão, além da razão – ia fluindo e se encantando. Por que não?
Se encantando com Rodrigo Veloso dançando
Águas de Março, deixando um arrepio na pele com Dona Canô cantando Noel Rosa,
pensando “que bonito” naquela composição em preto e branco, um corpo feminino
branco, outro masculino negro, com o próprio Caetano e a igreja de Santo Amaro
da Purificação ao fundo, com Mario Peixoto explicando a onda que quebra, a voz
luminosa de Nana Caymmi sobre a cidade do Rio, o pavão-Caetano quase no final,
a criança-Caetano na última cena, tentando fazer direito uma coisa que ele não
sabe: cinema. Se é que existe jeito certo, pois errado é jeito como qualquer
outro. Por que não?
Se você for ver com espírito de tiete, vai
dar pulinhos de alegria. Se for ver com espírito de antitiete, vai dar pulinhos
de ódio. Mas se você conseguir pegar O Cinema Falado como quem pega, digamos,
um livro de poesia e folheia ao acaso – que bonito este verso, que chato isto
aqui, que fecho criativo, este ritmo não tem nada a ver – e deslizar, só
deslizar, com alguns solavancos inevitáveis, sem a menor preocupação de tirar
qualquer conclusão, que bom pode ser. Quem criticar O Cinema Falado, vai se
ferrar. Quem discutir O Cinema Falado, vai se ferrar. O sexo dos anjos não
importa. Mas os anjos em si são tão interessantes com suas asas, percebe? E por
que não?
Saí cheio de idéias. Algumas bobas, outras
quem sabe não. Uma baita vontade de viver. Cheguei em casa, ouvi vários
Caetanos, fiquei dançando sozinho. Não, não é pecado apostar na alegria. Que bom
Caetano existir: o leite mau na cara dos caretas. Eu quero mais é caetanear o
que há de bom. Com mil Suzanas Amarais – Por que não?
OESP – Caderno 2, 10 de dezembro
de 1986 (tks pela lembrança, Lara)
Imagina!
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