sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Em nome dos dragões



                                                       Eles não sabem de nada:
                                                       No outro lado da gorda realidade,
                                                       habitam dragões flamejantes


Nos últimos tempos dera para dormir e sonhar demais. Mas não conseguia ir adiante nesse pensamento, porque quando pensava “nos-últimos-tempos” outra parte da cabeça imediatamente perguntava – quando? Então, um pouco hesitante, respondendo à própria pergunta, dizia-se assim: desde – ai, que dor! –, desde que a realidade começara a engordar. A realidade ficando cada vez mais inchada, repleta de copos de plástico transbordantes de refrigerantes, compotas de figos e pêssegos e goiabas boiando em calda espessa, rubras talhadas de goiabada, carnes gordurosas em molhos condimentados, doces bombons licorosos.

(Ah, como sentia medo desse obeso real a invadir as tardes, quando a gordura vinda de fora pesava os movimentos a ponto de dificultar gestos tradicionalmente leves, como levar a tirar o cigarro da boca, suspirar ou pensar qualquer coisa olhando as ruas da cidade ao longe e em baixo. Atos e pensamentos eram pedaços de pêssego, goiabada, nacos de carne de porco ou carneiro boiando no molho informe do cérebro.)

Mas depois que conseguia ir adiante – e era tão penoso, bracejando náufrago exausto na gordurenta calda-molho das tardes – completava: nos últimos tempos, como ia dizendo, costumava dormir e sonhar demais. Talvez porque apenas no sono e no sonho aquela graxa do cotidiano dissolvia-se pouco a pouco até o completamente, para dar passagem aos dragões. Porque era com dragões que sonhava, e sonhava muito desde que dera para dormir tanto quando, nos últimos tempos, a realidade começara a engordar. Com dragões, preservava magreza e nobreza.

E os dragões – que lindos dragões eles eram – flutuavam em sua mente a noite toda, e durante as manhãs cada vez mais frequentes em que não conseguia sair da cama para enfrentar a graxenta realidade de dentro e de fora do apartamento – mas ah, que belos dragões eles eram, dançando em sua mente nas noite e nas manhãs de sono. Alguns alados, línguas bífidas como as das serpentes, escamas de cristal, caldas reluzentes. Outros de papel, alaranjados, e dragões noturnos vagamente melancólicos lusco-fusco fosforecente dos olhos esbraseados no escuro. Dragões brancos angelicais, dragões negros mansos como panteras novas, dragões roxo-púrpura (seus preferidos) estranhamente sofisticados, como de neón, semáforos. Dragões de São Jorge Ogum guerreiro, sem guerras nem lança, dragões raptores de donzelas sem donzelas raptadas, dragões guardadores de princesas se princesas prisioneiras. Dragões amáveis, dragões serenos, dragões elegantes e – mas como, eram delicados – sobretudos dragões magros, esguios, esbeltos, afilados. Levíssimos e sensuais movendo-se como que ao som como de Laurie Anderson.

Dormia cada vez mais cedo, acordava cada vez mais tarde. A única forma de eliminar a insustentável gordura do real seria enchê-la de dragões em tempo integral? Era tão perigoso. Porque aquela outra parte da cabeça, aquela parte cúmplice da gordura, de coque e minissaia, entre o professoral e o perua, aconselhava: “Meu bem, se você continuar a se distanciar assim do real-objetivo, você vai mais é se f...” Não dava ouvidos, acordava cada vez mais tarde, e mais feliz. Embora soubesse – como eu sei e você, suponho, também (ele não, eles não sabem nada) – que dragões nunca existiram na realidade.  Mas que importância tem afinal a realidade – ele repete todos os dias antes e depois de dormir e sonhar – se o outro lado, o verdadeiro, está sempre tão habitado por flamejantes dragões movendo-se como que ao som de Laurie Anderson.
PS – e por tudo isso, dedico esta ao severo, Ricardo.

                           OESP – Caderno 2, quarta-feira, 10 de setembro de 1986


3 comentários:

  1. Caio.. e os seus Dragões imaginários.

    Amo tanto.. e sempre..

    é como me ler. ou ler algum amigo próximo. ou minha irmã.

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  2. sempre que leio qualquer coisa de Caio fico imaginando que escreveu pra mim! É tão meu, sempre tão meu ♥

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  3. Oba! Nem vi esse texto novo!!
    Gracias

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