Eles não sabem de nada:
No outro lado da gorda realidade,
habitam dragões flamejantes
Nos últimos tempos dera para dormir e sonhar
demais. Mas não conseguia ir adiante nesse pensamento, porque quando pensava “nos-últimos-tempos”
outra parte da cabeça imediatamente perguntava – quando? Então, um pouco
hesitante, respondendo à própria pergunta, dizia-se assim: desde – ai, que dor!
–, desde que a realidade começara a engordar. A realidade ficando cada vez mais
inchada, repleta de copos de plástico transbordantes de refrigerantes, compotas
de figos e pêssegos e goiabas boiando em calda espessa, rubras talhadas de
goiabada, carnes gordurosas em molhos condimentados, doces bombons licorosos.
(Ah, como sentia medo desse obeso real a
invadir as tardes, quando a gordura vinda de fora pesava os movimentos a ponto
de dificultar gestos tradicionalmente leves, como levar a tirar o cigarro da
boca, suspirar ou pensar qualquer coisa olhando as ruas da cidade ao longe e em
baixo. Atos e pensamentos eram pedaços de pêssego, goiabada, nacos de carne de
porco ou carneiro boiando no molho informe do cérebro.)
Mas depois que conseguia ir adiante – e era
tão penoso, bracejando náufrago exausto na gordurenta calda-molho das tardes –
completava: nos últimos tempos, como ia dizendo, costumava dormir e sonhar
demais. Talvez porque apenas no sono e no sonho aquela graxa do cotidiano
dissolvia-se pouco a pouco até o completamente, para dar passagem aos dragões.
Porque era com dragões que sonhava, e sonhava muito desde que dera para dormir
tanto quando, nos últimos tempos, a realidade começara a engordar. Com dragões,
preservava magreza e nobreza.
E os dragões – que lindos dragões eles eram –
flutuavam em sua mente a noite toda, e durante as manhãs cada vez mais
frequentes em que não conseguia sair da cama para enfrentar a graxenta
realidade de dentro e de fora do apartamento – mas ah, que belos dragões eles
eram, dançando em sua mente nas noite e nas manhãs de sono. Alguns alados,
línguas bífidas como as das serpentes, escamas de cristal, caldas reluzentes. Outros
de papel, alaranjados, e dragões noturnos vagamente melancólicos lusco-fusco
fosforecente dos olhos esbraseados no escuro. Dragões brancos angelicais,
dragões negros mansos como panteras novas, dragões roxo-púrpura (seus
preferidos) estranhamente sofisticados, como de neón, semáforos. Dragões de São
Jorge Ogum guerreiro, sem guerras nem lança, dragões raptores de donzelas sem
donzelas raptadas, dragões guardadores de princesas se princesas prisioneiras.
Dragões amáveis, dragões serenos, dragões elegantes e – mas como, eram
delicados – sobretudos dragões magros, esguios, esbeltos, afilados. Levíssimos
e sensuais movendo-se como que ao som como de Laurie Anderson.
Dormia cada vez mais cedo, acordava cada vez
mais tarde. A única forma de eliminar a insustentável gordura do real seria
enchê-la de dragões em tempo integral? Era tão perigoso. Porque aquela outra
parte da cabeça, aquela parte cúmplice da gordura, de coque e minissaia, entre
o professoral e o perua, aconselhava: “Meu bem, se você continuar a se distanciar
assim do real-objetivo, você vai mais é se f...” Não dava ouvidos, acordava cada
vez mais tarde, e mais feliz. Embora soubesse – como eu sei e você, suponho,
também (ele não, eles não sabem nada) – que dragões nunca existiram na
realidade. Mas que importância tem
afinal a realidade – ele repete todos os dias antes e depois de dormir e sonhar
– se o outro lado, o verdadeiro, está sempre tão habitado por flamejantes
dragões movendo-se como que ao som de Laurie Anderson.
PS – e por tudo isso, dedico esta ao severo,
Ricardo.
OESP – Caderno 2, quarta-feira, 10 de
setembro de 1986
Caio.. e os seus Dragões imaginários.
ResponderExcluirAmo tanto.. e sempre..
é como me ler. ou ler algum amigo próximo. ou minha irmã.
sempre que leio qualquer coisa de Caio fico imaginando que escreveu pra mim! É tão meu, sempre tão meu ♥
ResponderExcluirOba! Nem vi esse texto novo!!
ResponderExcluirGracias