Festa que faz sucesso em 85, tem que ter pela menos uma
tentativa de suicídio, uma overdose, meia dúzia de traições, alguns tapas na
cara e muitos escândalos.
Sempre quando pinta um tema assim geral para escrever,
corro ao Aurelião tirar informações. Desta vez, foi lá que encontrei: “Festa.
S. F. 1. Reunião alegre para fim de divertimento.” Aí parei e lembrei de um
conto de Katherine Mansfield. Bliss (traduzido por Érico Veríssimo como Felicidade,
mas talvez mais próximo da tradução de Ana Cristina Cesar: Êxtase), em que a
personagem dá uma festa e, no final. surpreende o marido beijando uma de suas melhores
amigas. A reunião-alegre-para- fim-de-divertimento desaba bruscamente. Lembrei também daquela festa de O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald,
que acaba num grande desastre. Moral da história: as festas, como os tiros, às
vezes podem sair pela culatra... Bem, fui em frente no dicionário. E encontrei
festança, festão, festeiro, festejo e até festarola, que achei lindo e não tem
nada demais – uma festa como as outras. Mas na verdade, fui pensando, é que as
festas não são mais como antigamente. Até ai, nada de novo: nada é mais como
antigamente. Tenho um amigo que diz que festa, para ser considerada um sucesso,
em 85, tem que ter pelo menos uma tentativa de suicídio, uma overdose, duas ou
três separações-lancinantes, meia dúzia de traições, outra de comas alcoólicas,
alguns tapas na cara e vários escândalos. Reunião alegre? Para fim de divertimento?
Bom, cada um se diverte como pode. E talvez diversão – como aquela famosa
definição de conto de Mário de Andrade – seja tudo aquilo que chamamos de divertido.
Pode ser. Venho de outros tempos. Tão remotos que, outro
dia, dando uma palestra para adolescentes (quando me convidam, vou sempre: acho
uma festa), perguntaram a minha idade e, quando falei bem claro trinta e seis,
ouvi um ooooooh! de choque generalizado. Que traduzi por “nossa-como- esse-cara-é-velho”.
Pois é. Então, minhas memórias mais distantes de festas remontam aos distantíssimos
anos 50. E era outro papo. Lá, sim, no interior do Rio Grande do Sul, acredito
que tivesse mesmo esse sentido de alegria & divertimento. Minha mãe era uma
festeira exímia. Sabidíssima, ela. Como todo ano fazia parte da lista das 10
mais elegantes (sempre tirava o segundo lugar, só perdendo para uma certa Dona
Marina Plada, ue ela odiava com todas as forças, embora jurasse ser superior-a-essas-coisas), dar festas era um
dos jeitos que ela tinha de angariar votos. Explico: para fazer a lista, o
cronista social entrevistava todas as senhoras da cidade e, da votação, saiam
as tais 10 mais. Democrático. não?
Pois Dona Nair Abreu tinha seu trunfo: uma quituteira
fabulosa e exclusiva, a demolidora Tia Piba. Solteirona e feíssima, era prima
de meu pai. Doceira de mil talentos, além de todos os cursos, hoje compreendo,
seu grande segredo era jogar todo seu afeto de solitária nos doces que fazia.
Não sei de onde tiraram o apelido de Piba – esquisito, mas bem menos que o nome
real dela: Eponina. Além dos talentos culinários, Tia Piba contava também com
um par de inesquecíveis olhos verdes, frequentemente marejados de lágrimas
quando ouvia, principalmente, Gregório Barrios e Lucho Gatica. Ou Anísio Silva.
Costumava cantar Quero Beijar-te as Mãos (quem lembra?) enquanto preparava seus
quitutes.
Tia Piba se saía bem com os salgadinhos. Mas o forte dela
eram mesmo os doces. Foi ela quem lançou na cidade umas japonesinhas absurdas,
de cabelo feito com uma ameixa em passa, daquelas pretas grandonas, que ela abria
numa das pontas. Depois, requinte dos requintes, com um pincel tão fininho que
parecia ter um pelo só – e, lógico, era o único da cidade – pintava os olhos, o
nariz e a boca de uma por uma. Dezenas de japonesinhas. Tia Piba também foi a lançadora
dos doces caramelados, que eu nunca fui muito chegado – doces demais e
complicados para fazer: a calda dependia de um certo ponto, que dependia do
tempo, não podia estar muito úmido, senão “desandava” e não tinha jeito.
Uma festa, em casa – havia várias por ano, uma para cada
filho, e éramos cinco, sem falar na do pai e na da mãe – começava vários dias
antes. Tia Piba simplesmente mudava lá pra casa. Contratava uma ajudante, e nós
ficávamos o dia inteiro atazanando as duas. Naquele tempo, raspas e restos
realmente Interessavam. Os das panelas de Tia Piba, pelo menos, eram inesquecíveis.
Ela só não gostava que comessem os doces prontos: contava um por um antes de
dormir e, na manha seguinte, recontava. Rolavam as maiores cenas se faltava um.
As costureiras da cidade também ficavam na maior agitação: todo mundo mandava
fazer roupa nova. E ai de quem pintasse na festa com um vestido já manjado.
Ficava falada. Ninguém indicava o nome dela para a lista das 10 mais. A própria
Tia Piba aparecia radiosa. Lembro de um vestido dela todo justo até quase o
joelho, depois abrindo num enorme babado de tule roxo. Saltos altos vermelhos.
Nunca mais vi ninguém tão elegante.
É que, naquele tempo, não só havia roupa de festa como
havia também um estado-de-espírito-de-festa. Eu ficava muito impressionado
porque todo mundo mudava o jeito de falar no dia da festa. Parecia filme. Era
uma overdose de delicadezas tipo por- favor-com-licençamuito-obrigado. Tia
Piba: consagradíssima, às vezes se excedendo um pouco nas doses do
indescritível ponche de frutas que minha mãe preparava com champanha, guaraná e
não sei mais quê. Quando a noite avançava, as crianças eram mandadas para a
cama. Mas sempre tinha um jeito de espiar: a festa virava baile. Afastavam mesas
e cadeiras: rolavam altos tangos. Namoros começavam. Deviam terminar também,
mas lembro mais dos que começavam. Todo mundo saía com um pratinho de doces
para quem não tinha podido vir. A casa custava a voltar ao normal, as sobras da
festa na geladeira. Até a próxima festa.
E era isso ai, já faz tempo. Por isso que agora fico um
pouco chocado com as festas que a gente vai e, na entrada, já pedem dinheiro
para comprar bebida. Sem falar numas portas de quarto fechadas que abrem para
pouca gente, e sempre saem umas pessoas lá de dentro fungando ou com os olhos
vermelhos... Eu, hein? Ainda tenho saudade daquelas Japonesinhas de negríssimos
e deliciosos cabelos de ameixa. Onde andarão? Ou: onde andará o jeito mais leve
que a vida teve, um dia?
Revista Around,
Junho de 1985
*Gracias pela lembrança, Lara!
Nenhum comentário:
Postar um comentário