A Bela e a Fera, de Clarice Lispector
Para quem aprendeu a amar Clarice Lispector, este livro é
uma verdadeira dádiva, além de documento importante para os estudiosos de sua
obra. São oito contos inéditos, de um período que abrange 37 anos de
ininterrupto, profundo e sofrido trabalho de criação literária. Os seis
primeiros foram escritos entre 1940 e 1941, quando a autora tinha apenas 14 ou
15 anos* – antes, portanto, de sua estreia com o romance Perto do Coração
Selvagem, em 1944. Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice, organizou esses
originais, enquanto Olga Borelli (que já havia coordenado o póstumo Um Sopro de
Vida) acrescentou os dois últimos contos escritos por Clarice, pouco antes de
sua morte, em 1977.
Os contos adolescentes de Clarice pouco têm de
adolescentes. Já se encontram, ali, alguns dos elementos dos vários livros
posteriores: o mergulho psicológico, a presença da morte, o choque entre as
realidades objetivas e subjetivas, a solidão e a incomunicabilidade humanas, a
tentativa de penetração e desvendamento de camadas escondidas da alma – tudo isso
está presente nestas seis peças que, quase espantosamente, podem ser lidas não
apenas com curiosidade, mas com autêntico prazer.
No rapaz suicida (em História Interrompida), na
adolescente desorientada que procura a consultoria sentimental de uma revista
(Gertrudes Pede um Conselho), ou na mulher casada que foge do marido para
ligar-se a outro homem (na pequena e densa novela Obsessão), podem ser
localizadas as sementes das mesmas personagens que viriam a habitar seus livros
futuros. Com a diferença que, aqui, Clarice ainda se preocupa com a “história”,
que foi pacientemente desestruturando, até chegar em obras como A Paixão
Segundo G.H. ou Água Viva.
Já em 1941, ela saia-se com ousadas inovações formais,
como os dois pontos que concluem Mais Dois Bêbados. Cerca de trinta anos mais
tarde, intrigaria os críticos com a simples vírgula que iniciava Uma
Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. E aos 14 anos era suficientemente lúcida
e bem humorada para fazer ironias como esta: “No entanto, para quem leu um
pouco e pensou bastante nas noites de insônia, é relativamente fácil dizer qualquer
coisa que pareça profunda”.
CRISTALINA – A ironia é a marca principal dos dois
últimos textos: Um Dia a Menos e A Bela e a Fera. No primeiro, uma virgem
balzaquiana suicida-se quase por acaso, ao descobrir distraidamente a própria
individualidade. No segundo, que lembra o sarcástico humor social de A Hora da
Estrela, Clarice narra o patético e hilariante encontro entre uma grã-fina e um
mendigo. “Justiça social” são as palavras que ocorrem vagamente à mulher,
enquanto seus valores desabam e ela se descobre, também, uma mendiga: “Nunca
pedi esmola, mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo
pelo amor de Deus que me achem bonita, alegre e aceitável, e minha roupa de alma
está maltrapilha”.
Clarice não gostava que os leitores fizessem esforço para
lê-la. Não se considerava um “escritor racional”. Preferia estabelecer uma espécie
de telepatia com o leitor, e o livro então lia-se como que por si próprio. Para
quem a considera, ainda, uma escritora difícil, hermética, talvez A Bela e a
Fera seja o meio mais fácil de estabelecer essa comunicação e entrar em contato
com um universo onde é dito o indizível da sensibilidade humana. Nele, Clarice
está mais cristalina do que nunca. E tão misteriosa e indefinível como sempre –
“pura e cruel” como a luz do sol que descreve num conto escrito há quase
quarenta anos.
A volta de Clarice, ainda que póstuma, reascende a
esperança de que, dentro da literatura latino-americana, existia uma autêntica
e expressiva voz brasileira. Europeia, requintada, minuciosa e misteriosa,
Clarice permanece como uma das manifestações mais intensas do escritor
nacional. E A Bela e a Fera adquire nova importância, quando lança raios de luz
sobre todas as outras obras de Clarice, de A Maçã no Escuro a Um Sopro de Vida.
Escrever, para Clarice Lispector, era um ato confundido com o próprio inventar
da vida de cada dia. No campo da prosa, a escritora consegue aproximar-se, em
termos internacionais, da elaboração de uma Marguerite Yourcenar, a autora de A
Obra no Escuro. No campo nacional, é provável que Clarice seja o Carlos
Drummond de Andrade do romance brasileiro. Como Drummond, ela jamais escrevia
por vaidade, por ter uma “mensagem” a transmitir ou por desejar construir um
objeto perfeito. Clarice escrevia como quem compõe música: escutando o ritmo do
mundo, obrigada a vibrar junto com ele.
Veja, 9
de janeiro de 1980
Nota: "A verdade também é que Clarice era deliberadamente misteriosa. Apagava rastros, diluía pistas. Ninguém sabe ao certo o ano de seu nascimento, na Ucrânia. Ela sempre disfarçava, mudava de assunto, confundia": escreveu Caio F. em Na Trilha dos Mistérios de Clarice http://caiofcaio.blogspot.com.br/2010/08/na-trilha-dos-misterios-de-clarice.html
A idade de Clarice Lispector permaneceu por anos um mistério. Hoje, sabe-se que ela nasceu em 1920
e, portanto, tinha 20 ou 21 anos “entre 1940 e 1941” quando escreveu os contos
que Caio F. cita no início.
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