Bolero à grega
Até
hoje, ninguém sabe ao certo como estava o tempo no dia em que mataram Santiago
Nassar. Para muitos, “era uma manhã radiante, com uma brisa de mar que chegava
através dos bananais”. Mas a maioria lembra-se de “um tempo fúnebre, de céu
sombrio e baixo e um denso cheiro de águas paradas”. Alguns acrescentam ainda
que no exato instante do crime, talvez naquele momento mesmo em que a primeira
punhalada o atingiu na palma da mão direita, começou a cair uma chuvinha miúda.
Estranhamente igual à que o próprio Santiago vira no sonho da noite anterior.
Assim,
numa manhã de fevereiro, entre vagos presságios e obscuros sonhos premonitórios
– vestido de “linho branco lavado só com água, porque sua pele era tão delicada
que não suportava o roçar do engomado” –, Santiago Nassar, aos 21 anos de
idade, começa a caminhada em direção à própria morte. Assim, também o
colombiano Gabriel Gárcia Márquez desiste da greve literária iniciada em 1973,
quando o general Augusto Pinochet assumiu a “presidência” do Chile, e que
deveria durar até sua queda do poder. Pinochet, como se vê, foi bem mais
resistente que supunha Márquez – e o autor de Cem Anos de Solidão acabou por
mudar de ideia. “Foram os próprios escritores chilenos que pediram que voltasse
atrás em minha decisão”, contornou ele ao anunciar a publicação desta Crônica
de Uma Morte Anunciada, no início deste ano. “De qualquer forma, estou certo de
que Pinochet não durará muito no poder”.
INTELIGÊNCIA
ACESA – Dure ou não Pinochet, quem ganha com a quebra do juramento são os
leitores deste apaixonado autor de letras de bolero cm música digna de As Mil e
Uma Noites e mise en scéne de tragédia grega. Lido um simples parágrafo desta
novela, que só agora chega ao Brasil, é impossível parar. Toda a população da
pequena cidade colombiana onde se passa a ação de Crônica de Uma Morte
Anunciada sabe que Santiago Nassar vai morrer. Menos ele. Todos sabem que os
gêmeos Pablo e Pedro Vicário esperam com suas facas afiadas para vingar a hora
perdida da irmã Angela, devolvida na noite de núpcias por não ser mais virgem.
O leitor também sabe. O que não o impedirá de devorar em poucas horas cada uma
das páginas que o conduzem ao momento em que Santiago, as vísceras entre os
dedos, desaba de bruços na cozinha.
Costurando
pacientemente retalhos de folhetim com contos de fada e reportagem, dramas
sicilianos de lençóis manchados de sangue expostos aos vizinhos na manhã
seguinte a requintes sutis de novelista policial, Márquez sabe sempre que o
mais importante é manter o leitor com a curiosidade acesa e a inteligência
desperta, Por isso, a medida que superpõe múltiplas vozes narrando o crime, à
maneira de um repórter cercando o fato, permite que a emoção de quem o lê
prencha as lacunas propositadamente deixadas. Jamais se saberá com certeza quem
violou Angela Vicario – como jamais se saberá a verdade sobre a suposta traição
de Capitu, de Machado de Assis ou sobre as intimidades amorosas do Hans Castorp
e da Clawdia Chauchat, de Thomas Mann. A justiça ou não do assassinato daquele
pálido Santiago, com suas “pálpebras árabes e cabelos crespos”, permanecerá um
enigma.
QUATRO
MULHERES – Mas, quem sabe, é exatamente essa riqueza ambígua do que não é
totalmente expresso – aliada a uma notável capacidade de estimular fantasias
com gosto de infância e a um sereno domínio técnico da narrativa – que aproxima
García Márquez das linhagens mais nobres de ficcionistas. Não deve ser
gratuitamente que ele declara ter quatro mulheres importantes na vida: a avó, a
mãe, a esposa e ninguém menos que Virginia Woolf...
Misturando
memória e fantasia ao recriar esta história real, contada por sua mãe (arrancando-lhe
a promessa de que só a escreveria quando estivessem mortos todos os
protagonistas), Márquez revela um emocionado amor pela criatura humana. É assim
que semeia histórias de cega paixão – como são as 2.000 cartas escritas durante
dezessete anos pela repudiada Angela ao noivo – ou velados ódios, como o da
cozinheira Victoria Guzmán, que não avisa Santiago de sua morte próxima. E em
cada uma dessas páginas Gárcia Márquez reinventa a vida no que ela tem de mais
ensolarado e mais trevoso. Morto Santiago, o cheiro de seu sangue a tudo
impregna. Até a pele de quem lê, por que não?
Veja, 4 de
novembro, 1981
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