quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Bolero à grega

Quem abre é Gabriel Gárcía Márquez e nas próximas semanas, críticas de Caio Fernando Abreu de escritores que ele adorava: Julio Cortázar, Virginia Woolf, Patricia Highsmith, Lya Luft, Zelda e Scott Fitzgerald. Na segunda, Patricia Highsmith. E abaixo, Crônica de Uma Morte Anunciada por Caio F.



Bolero à grega

Até hoje, ninguém sabe ao certo como estava o tempo no dia em que mataram Santiago Nassar. Para muitos, “era uma manhã radiante, com uma brisa de mar que chegava através dos bananais”. Mas a maioria lembra-se de “um tempo fúnebre, de céu sombrio e baixo e um denso cheiro de águas paradas”. Alguns acrescentam ainda que no exato instante do crime, talvez naquele momento mesmo em que a primeira punhalada o atingiu na palma da mão direita, começou a cair uma chuvinha miúda. Estranhamente igual à que o próprio Santiago vira no sonho da noite anterior.

Assim, numa manhã de fevereiro, entre vagos presságios e obscuros sonhos premonitórios – vestido de “linho branco lavado só com água, porque sua pele era tão delicada que não suportava o roçar do engomado” –, Santiago Nassar, aos 21 anos de idade, começa a caminhada em direção à própria morte. Assim, também o colombiano Gabriel Gárcia Márquez desiste da greve literária iniciada em 1973, quando o general Augusto Pinochet assumiu a “presidência” do Chile, e que deveria durar até sua queda do poder. Pinochet, como se vê, foi bem mais resistente que supunha Márquez – e o autor de Cem Anos de Solidão acabou por mudar de ideia. “Foram os próprios escritores chilenos que pediram que voltasse atrás em minha decisão”, contornou ele ao anunciar a publicação desta Crônica de Uma Morte Anunciada, no início deste ano. “De qualquer forma, estou certo de que Pinochet não durará muito no poder”.

INTELIGÊNCIA ACESA – Dure ou não Pinochet, quem ganha com a quebra do juramento são os leitores deste apaixonado autor de letras de bolero cm música digna de As Mil e Uma Noites e mise en scéne de tragédia grega. Lido um simples parágrafo desta novela, que só agora chega ao Brasil, é impossível parar. Toda a população da pequena cidade colombiana onde se passa a ação de Crônica de Uma Morte Anunciada sabe que Santiago Nassar vai morrer. Menos ele. Todos sabem que os gêmeos Pablo e Pedro Vicário esperam com suas facas afiadas para vingar a hora perdida da irmã Angela, devolvida na noite de núpcias por não ser mais virgem. O leitor também sabe. O que não o impedirá de devorar em poucas horas cada uma das páginas que o conduzem ao momento em que Santiago, as vísceras entre os dedos, desaba de bruços na cozinha.

Costurando pacientemente retalhos de folhetim com contos de fada e reportagem, dramas sicilianos de lençóis manchados de sangue expostos aos vizinhos na manhã seguinte a requintes sutis de novelista policial, Márquez sabe sempre que o mais importante é manter o leitor com a curiosidade acesa e a inteligência desperta, Por isso, a medida que superpõe múltiplas vozes narrando o crime, à maneira de um repórter cercando o fato, permite que a emoção de quem o lê prencha as lacunas propositadamente deixadas. Jamais se saberá com certeza quem violou Angela Vicario – como jamais se saberá a verdade sobre a suposta traição de Capitu, de Machado de Assis ou sobre as intimidades amorosas do Hans Castorp e da Clawdia Chauchat, de Thomas Mann. A justiça ou não do assassinato daquele pálido Santiago, com suas “pálpebras árabes e cabelos crespos”, permanecerá um enigma.

QUATRO MULHERES – Mas, quem sabe, é exatamente essa riqueza ambígua do que não é totalmente expresso – aliada a uma notável capacidade de estimular fantasias com gosto de infância e a um sereno domínio técnico da narrativa – que aproxima García Márquez das linhagens mais nobres de ficcionistas. Não deve ser gratuitamente que ele declara ter quatro mulheres importantes na vida: a avó, a mãe, a esposa e ninguém menos que Virginia Woolf...
Misturando memória e fantasia ao recriar esta história real, contada por sua mãe (arrancando-lhe a promessa de que só a escreveria quando estivessem mortos todos os protagonistas), Márquez revela um emocionado amor pela criatura humana. É assim que semeia histórias de cega paixão – como são as 2.000 cartas escritas durante dezessete anos pela repudiada Angela ao noivo – ou velados ódios, como o da cozinheira Victoria Guzmán, que não avisa Santiago de sua morte próxima. E em cada uma dessas páginas Gárcia Márquez reinventa a vida no que ela tem de mais ensolarado e mais trevoso. Morto Santiago, o cheiro de seu sangue a tudo impregna. Até a pele de quem lê, por que não?

                                                  Veja, 4 de novembro, 1981

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