Patricia Highsmith tira
férias do romance policial
mas leva a ferocidade
férias do romance policial
mas leva a ferocidade
na bagagem
Se,
da autora de O Amigo Americano, você só espera ler mais uma daquelas sombrias
histórias de crime, mistério e muita, muita tensão psicológica – ledo engano.
Ledo sim. Jamais frustrante. Ao contrário: nos 10 contos que compôem estas Catástrofes (nem tanto) Naturais –
tradução apenas aproximada do original Tales
of natural and unnatural catastrophes – Patricia Highsmith, a musa heavy
dos policiais, deixa bem claro que sua literatura é perfeitamente capaz de
superar rótulos redutores para invadir terrenos antes palmilhados pelos mais
chegados numa science-fiction, num romance-reportagem ou naquilo que, há duas
décadas, foi graciosamente batizado como “realismo fantástico”. Em se tratando
de Highsmith, porém, nada de graciosidades, frieza documental ou gentis ETs. Ferocidade
é sempre com ela. E disso – felizmente para as cabeças pensantes – Highsmith nunca
abriu mão.
E
aqui ela está possessa. Seus criminosos, desta vez, têm nomes e podem ser
identificados, às vezes na primeira linha de cada conto. São quase sempre os
dirigentes do mundo, seja este primeiro ou terceiro: o presidente Buck Jones
(Reagan?) e sua esposa alcoólatra, Millie, que por puro pileque desencadeia uma
guerra nuclear planetária (em O
presidente Buck Jones incita ao patriotismo), ou Bomo (Bokassa?), ditador
da “vasta e fértil terra de Nabuti, na África Oriental”, que vê seu palácio
transformar-se numa espécie de túmulo, exatamente durante a visita de uma
comissão da ONU. Colhidas na exarcebação das notícias de jornal, as catástrofes
de Highsmith não se limitam a ser assustadores ou subversivas. Podem também ser
muito engraçadas, como a história do Papa Sisto VI (João Paulo II?) que, graças
a uma violenta topada no dedão do pé, encampa subitamente a Teologia da
Libertação e começa uma revolução social no mundo inteiro. Para rebater risos
fáceis, mergulha na pungência de Moby
Dick, a Baleia Míssil, reescritura cruel de Melville, um protesto ecológico
tão inquietante quanto uma foto do desmatamento amazônico.
Difícil
destacar um ou outro texto num livro que, além das qualidades literárias e da
enfurecida crítica aos loucos poderes, possui ainda uma unidade rara para uma
coletânea de histórias curtas. Mas talvez seu núcleo temático concentre-se
principalmente em Problemas no Torres de
Jade, crônica de um finíssimo prédio de apartamento de 88 andares. Invadido
por baratas cada vez mais gigantescas, o Torres de Jade transforma-se aos
poucos num tótem real e metafórico de apodrecimento social: por baixo dos
mármores, das abóbadas verde-jade e de todas as delícias do consumo, fervilha
um indestrutível ninho de baratas. Impiedosa, Highsmith dispara sua
metralhadora cheia de fúria contra as campanhas imobiliárias, as agências
publicitárias, o jornalismo mundano e, mais além (ou aquém?) das máquinas
fabricantes de modismos, contra os seres patéticos que a maioria de nós se
tornou, disposta a tudo apenas para manter as aparências do chic.
O
mesmo acontece no cínico Operação
Bálsamo, que trata de um hipotetico grupo – o CNN (Comissão de Controle
Nuclear) – encarregado de “disfarçar” o lixo nuclear da usina de Three Mile
Island. Claro, sempre é possível que alguém se aborreça com Alugam-se Úteros, ache gratuito o humor
de Cemitério Misterioso ou mal
consiga localizar na história de Naomi, a velha com mais de 200 anos (de Sem Fim à Vista) a mesma força
contestatória que, como um rastilho de pólvora, percorre os outros textos. Mas
os insignificantes tropeços destas Catástrofes
não permitem ironias fáceis com o título.
Naturalmente
– e com muita coerência – a longa viagem pelos horrores contemporâneos feita
por Patricia Highsmith termina numa gigantesca contaminação nuclear. Fim previsível
para ficções que brincam, o tempo todo, com o apocalíptico. No final do livro,
com a força gravitacional abalada pelas explosões, um enlouquecido planeta
Terra gira pelo universo à mercê de ventos radioativos, “a última das pragas”.
Os 10 contos de Patricia Highsmith são pura dinamite. Loucuras perfeitamente
lógicas não só na mente privilegiada desta autora de 18 romances fascinantes,
mas também na de qualquer pessoa razoavelmente informada sobre o que acontece
atualmente no planeta.
Jornal
do Brasil – Idéias, 13 de maio de 1989
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