E continua o especial Caio F. escreve sobre escritores que ele adorava. Depois de Gabriel, Gárcía Márquez, Patricia Highsmith, e Virginia Woolf), nos posts anteriores, agora é Julio Cortázar e os 10 contos de Orientação dos Gatos. O texto do Caio chama-se Encanto Felino e está abaixo.Boa leitura.
Aos 67 anos, é no estreito limiar entre a beleza e a violência, o real
e o fantástico, que se movimenta agilmente o autor destas dez histórias. Ao
contrário de seu Alguém Que Anda Por Aí,
em que bons textos de ficção se misturavam descuidadamente a outros mais
próximos da mera crônica ou reportagem, aqui cada peça tem seu sentido próprio
e parece exaustivamente trabalhada até quase a perfeição. É o caso, por
exemplo, de graffiti. Num país sem
nome, num tempo sem data, dois personagens que não se conhecem conseguem se
comunicar no meio da mais violenta repressão policial por meio de desenhos
feitos com giz pelos muros da cidade. Em cinco páginas, Cortázar resume as
dificuldades de um encontro pela arte, pela beleza ou pela poesia num tempo de
terror ditatorial.
Mas há mais: histórias sombrias, quase tétricas, como Texto em uma Caderneta, sobre um
labiríntico metrô em que desaparecem misteriosamente pessoas “tão pálidas e tão
tristes” nas profundezas das estações de Buenos Aires – uma sofisticada
metáfora da situação política argentina. Ou História com Aranhas, sobre uma macabra dupla em férias no Caribe,
que só se revela na última frase. Não falta também aquele saboroso Cortázar que
questiona seus próprios processos criativos, como no dramático Tango de Volta.
Encantatório na maneira como consegue jogar o leitor dentro de uma
atmosfera em que a transgressão do real se torna perfeitamente aceitável,
Cortázar frustra novamente as carpideiras que o declaravam acabado. Lúdico e
lírico, é outra vez diabolicamente envolvente. Às vezes evocativo, como em Queremos Tanto a Glenda, ou o
melancólico contemplador da natureza humana, esquiva como a dos gatos que atravessam
todo o livro, no conto-título.
Com histórias de sabor amargo escondido sob o chantilly do delírio,
Julio Cortázar parece querer nos transmitir que na arte, apesar dos regimes
repressores, encontra-se quem sabe a possibilidade mais plena da realização
humana. E seus contos podem ser lidos com o mesmo prazer do personagem de Histórias que Me Conta, quando
confessa: “Me conta histórias quando durmo sozinho, quando a cama parece maior
do que é e mais fria....”
Veja, 23 de
Dezembro de 1981
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