Em novembro de 1989, onze escritores foram convidados pelo Caderno
Idéias do Jornal do Brasil para “traçar, com absoluta liberdade de estilo, o
perfil dos onze principais candidatos à Presidência da República. E Caio
Fernando de Abreu escreveu o de Leonel Brizola, Alguém escreve ao caudilho, abaixo.
Alguém escreve ao caudilho
“churrasco, bom chimarrão,
fandango, trago e mulher:
é disso que o velho gosta,
é isso que o velho quer.”
(Berenice Azambuja)
Bagaceira, exclamou sem exclamação, puro costume. Se fumasse, esmagaria a ponta do cigarro no bico da bota, que já tinha calçado uma. O pé esquerdo restava nu, um tanto patético com seus calos cada vez mais doloridos. Cinco minutos, pedira, pelo amor de Deus e não paravam de bater à porta, será que um vivente não tem um minuto de sossego nesta côsa, quase gritou. Aí lembrou da água para o mate, abriu uma fresta e pegou o termo sem ver a cara da mão que estendia a garrafa. Doutor, ouviu, o povo tá esperando. Pela vidraça abaixada, pelas cortinas fechadas vinham gritos e foguetes, como quando se tem dor de ouvido e através de algodões o som chega abafado, remoto. Encheu a cuia, cuspiu fora a água pelando de quente. O primeiro gole, lembra sempre, só para esquentar a bomba. Pulando no único pé calçado, afastou a cortina. Mas não viu a praça cheia, nem palanque nem povo.
Um
campo plano espelhado sem fim, via, tão sem fim que se olhasse em volta teria o
horizonte inteiro, como em alto mar, só que verde de capim, não de água, aqui e
ali coberto com aquela plantinha amarela, flor de fedorenta, que brotava antes
dos Finados, maria-mole diziam, ele ria, maria-mole era nome de doce noutros
lugares, ou de china dessas bem rampeiras, girava o pescoço e via os trezentos e
sessenta graus do pampa interrompidos vez por outra por uma capão de eucaliptos
ou a superfície de vidro de algum açude, e de repente via também olhando mais
atrás no tempo, não no espaço, sem querer mas via sempre e sempre com susto e
revolta, embora nunca tivesse visto a cabeça degolada do pai, outra vez
perguntou, como perguntava sempre: mas afinal o fio do facão cortou em cima ou
em baixo do lenço maragato?
Quem
sabe no meio, pensou pela primeira vez, que barbaridade. Largou a cortina,
tentou enfiar o pé descalço na bota. O calo latejou tão forte que a mão tremeu
e a cuia derramou um pouco da erva na bombacha, favo-de-mel do lado, bombacha
de festa. Foi quando catava os toquinhos de madeira no linho do bolso que
encontrou o postal. Meio amassado, tantos comícios, ruas sujas do Village,
batiam outra vez na porta, tá na hora, doutor, ainda assim tornou a ler, já
vou, criatura:
“Caudilho
velho, aqui tá o maior barato. Thanks pela grana, pouca mas valeu, Acho uma
caretice tua continuar nessa história, eu ainda tô naquelas de podres poderes,
you know. Mas dou força e se tu chegar lá até voto e faço outro disco. Pensei
em regravar Teixeirinha, com sintetizador fica bárbaro. Kisses, Little N.”
Guria
despelotada, resmungou, nunca sabia se irritação ou uma espécie de carinho.
Tornou a botar o cartão no bolso, nem mostrei pra pobre da Neusa. Deu outro
chupão na bomba, bosta de erva lavada, nem a erva mais presta neste país,
bagaceirada. Lá fora, foguetes mais altos. Espiou outra vez pela janela, e
outra vez o pampa imenso, pudesse esporeava o cavalo e saía agora no tranquito em
direção a São Borja, Itaqui, Uruguaiana, ver o sol deitar no Uruguai, no lado
dos correntinos. Mas batiam na porta, num encansinamento ele puxou o zíper da
bombacha, parece côsa de fresco, e só se olhou no espelho para dar um nó no
lenço vermelho. Única, última vaidade: arrepiou os pelos das sobrancelhas, que
até bigode e cabelos, como tanta coisa, tanta gente, tinham ido embora. Abriu a
porta, saiu para o corredor. E já ia afundar naquele alvoroço de abraços quando
um chamango tocou no seu ombro para avisar, voz baixa:
- Me
desculpe, seu Leonel, mas o senhor tá só com um pé de bota.
Jornal
do Brasil, Caderno Ideias, 12 de novembro de 1989
E aqui, a música cujos versos iniciais Caio F. usa de epígrafe
E aqui, a música cujos versos iniciais Caio F. usa de epígrafe
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