Carta anônima
Para ler ao som de Melodia
Sentimental,
de Villa-Lobos, cantada por Olivia Byington
Tenho trabalhado tanto, mas
penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que
parecem poeira assentada aos poucos, e com mais força enquanto a noite avança.
Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem
de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai fazer
assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não
dormisse cedo e estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos
quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de
vidros entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles tem uma
borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte,
onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela.
Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas são sempre
bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada do que
eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.
Daí penso coisas bobas
quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto
a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando
não encontro lugar para sentar, o que é mais frequente, e me deixava irritado,
agora não, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em
você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa
posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuram
nos pés delas aqueles que poderiam ser os seus. (A Teus Pés, lembro.) E fico
tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em
alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você - seria, seriam?
Boas e bobas, são as coisas
que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de
cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças
pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar
sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer
lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento
e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu
também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a
gente tem muito poder de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos
pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não
tem jeito, e tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil
como a voz de Olivia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de
Wagner, mais Chagall que Van Gogh, mais Jarmusch que Win Wenders, mais Cecilia
Meireles que Nelson Rodrigues.
Tenho trabalhado tanto, por
isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando
penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio
melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa
vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos
tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e
nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca na minha mão, eu toco na
sua. Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem
dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão
cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do
fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar
desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de
ferro para meu corpo balançar como se estivesse à bordo de um navio ou de você.
Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe.
Suspiro tanto quanto penso
em você, chorar só choro às vezes, e é tão frequente. Caminho mais devagar,
certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente,
mas penso tanto em você que na hora de dormir vezenquando até sorrio e fico
passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz
baixa te amo tanto dorme com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo
do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo.
Caderno 2 - Quarta-Feira, 16
de março de 1988
ai que alívio saber que esse blog continua que nem o Caio F.: vivo
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