sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Adeus, agosto. Alô, setembro!



Mesmo aqui, no país bandido,
agosto sempre vai embora. E
setembro sempre volta, sim


Agosto, todo mundo sabe, nunca foi fácil. Este que nos deixou à meia-noite de ontem e pareceu durar uns seis meses, cumpriu a tradição. Levou Drummond, levou John Huston, Gilberto Freyre. O mais patético: levou Pixote. Ao saber do assassinato (é as-sas-si-na-to mesmo que eu quero dizer) dele, além de sentir uma vergonha viscosa de ser brasileiro, fiquei pensando assim – Deus, o que é que está acontecendo com este país? Imagino a praça de guerra (Líbano perde) em que se transformou o Rio de Janeiro e, na trilha sonora, ficou ouvindo Lobão berrar “vida, vida, vida bandida”. Em 1987, Lobão tornou-se a mais perfeita tradução de Brasil. Um país invadido pela corrupção, pela barbárie, pela violência policial, pela bandidagem. Você vai até a esquina comprar cigarros e não sabe se volta vivo.

Falei disso a um motorista de táxi. Sobre Pixote, ele disse: “Pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto”. Sobra a guerra da polícia com os traficantes, no Rio: “Bandido tem mais é que morrer”. Fiquei pensando: e, se tivesse educação, tinha bandido?  Se tivesse comida, tinha bandido? E se tivesse uma perspectiva qualquer de futuro no ar, tinha bandido? Se houvesse um mínimo de alguma coisa levemente parecida com “felicidade”, “dignidade”, “justiça?”. Quem inventou essa violência desenfreada que tomou conta do País não foram os marginais – foram os poderosos. Se eu desculpo bandido? Desculpo sim. Não desculpo é marajá. Não desculpo Zé Sarney no comando desta barca de Medusa, navegando em mar de sangue – em direção a que abismo?  Ninguém sabe, temos medo.

Passadas as águas de agosto, ontem inaugurou setembro. E por não apostar no País, aposto em setembro (“se o mundo é um lixo, eu não sou”). De saída, tem uma coisa linda que eu vou contar pra vocês. É assim: tenho quatro irmãos de sangue em Porto Alegre, e – graças a Deus – talvez uns 20 irmãos de alma soltos pelo mundo. Esta semana, dois deles estão aqui, vindos de Porto Alegre para apresentar no Madame Satã um trabalho chamado Lenta Valsa de Morrer.

Ivan, Adriana e Eliane: Lenta Valsa de Morrer
Eles chamam-se Ivan Mattos e Eliane Steinmetz (Eliane é “a Gorda” – emagreceu, mas o apelido ficou), atualmente também conhecidos como “os loiros” porque, como diz o Bivar, oxigenaram um pouco. Ivan e Gorda são das pessoas  mais engraçadas que conheço, e das mais talentosas. Não estão mais cabendo em Porto Alegre, a cidade-carroça, e vieram mostrar esse trabalho para quem quiser ver. São textos de Clarice Lispector, do alemão Heiner Müller, do gaúcho Renato Campão – e também meus. Tudo isso embalado pela voz de Adriana Calcanhotto, uma supercantora (quem perdeu o show dela no Off, semana passada, dançou), com participação de Adriane Mottolla, uma moça muito chique, e figurinos de Zé Adão Barbosa, um moço também muito chique. Na direção, outro irmão de alma: Luciano Alabarse. Pinta lá pra ver. Eles vão gostar, você também.

Se estou fazendo propaganda dos meus amigos? Lógico, meu bem, você acha que eu ia fazer propaganda dos meus inimigos? Sinto/sei que, de cada vez que o horror arreganha os dentes – assassinam Pixote, o Rio vira Líbano -, se a gente estiver atento, no minuto seguinte a velha Dona Vida, essa senhora imprevisível e nem sempre respeitável, faz uma pirueta no trapézio para mostrar a outra face. Não a de megera medonha, sanguinária, mas seu avesso: a fada suave, revelando o talento de gente moça. Ivan, Eliane, Adriana, moçada que já nasceu com os militares no poder, sem esperança nem fé, rolando de rir de tudo, com um jeito insólito de captar o sério das coisas. Não o sério clichê, o sério careta – mas um olho novo de pegar o mundo. Esse jeito existe, eu já vi. Cada vez que olho para Ivan e Gorda, cada vez que ouço Adriana, ele está lá.

Como setembro. Mesmo aqui, no País Bandido, agosto vai sempre embora, e setembro sempre chega. Se você q      uiser, claro. Porque, como aquele motorista de táxi, você pode achar que bandido é bandido, tem que ser morto. Quanto a mim, acho que todo mundo tem mais é que viver. Ser feliz. Agora, dá licença, vou escancarar a janela, tomar um banho e me preparar para este setembro que ninguém vai sujar. Em mim, não mesmo.

                      OESP, Caderno 2, Quarta-feira, 2 de setembro de 1987


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A vida é uma brasa, mora?




Uma esquizocrônica
para Samuel Beckett.
Na forma do caos.

Nuvens radioativas, pacotes econômicos: nunca fomos tão felizes!  terroristas líbios, uma colagem de Vicent Kutka, qualquer ponto do sensível, ah: resgates, punks no metrô, copos de vinho tinto, um blues de Bessie Smith, sauna japa na Liberdade, trocar de lençóis na sexta, Anjelica Huston de chapéu negro, aquele olhar chiquérrimo sobre o mundo, táxis, táxis, alguém no JB referindo-se aos “esfuziantes-anos-80” (?), cortes na seleção, leves paranóias, mas eu sei onde estou metido, gangs juvenis, a frase de Beckett dando voltas na cabeça: nenhuma dor, quase nenhuma dor – isso que é maravilhoso, velhinhos tocando Olhos Negros no Brahma, cartão-postal de Paris na cabeceira, tons dourados, folhas mortas, como te amei e não disse, Giovanni guilhotinado por amor, imperceptivelmente chegar à próxima face depois desta, talvez desprezível, graves paranóias, o relógio da Paulista marcando trágico, lento & inexorável o fim de domingo, sinto falta de você, hi-fi com Fanta: astral Bukowski, geladas fotos sensuais de Pedro Fedrizzi, alguém me chamando de “tiete-bem-pensante” (?), mas não pensem que não sei onde estou metido, pessoas cirandando em torno de um posto, madrugada de sábado no Bexiga, engarrafamentos de trânsito, pressa dentro dos táxis, dragão tatuado no braço, muito busto, muita coxa, Hélio que vai para a Europa, yuppies na Oscar Freire, Bruna Lombardi, Diadorim, homem-mulher, feijoada no Supremo, nenhuma importância, só porque sei onde estou metido, outra vítima da AIDS, parem de me testar: sou legal, cara, pizzarias entupidas de criancinhas, táxis, táxis, atriz argentina joga-se pela janela, e se eu dissesse de repente e sem pudor eu te amo? Patricia em prantos ao telefone, de pura transgressão beber litros de água mineral em pleno Madame Satã, quem me seduz? olhar com medo, olhar com perdão, olhar com interesse, olhar com náusea e paixão, e de jeito nenhum compreender nada de onde se está desgraçadamente metido, telefones que não param de tocar, Rê Bordosa minha amada à beira do suicídio, não esquecer comprar Gilette G-II, que falta faz Ana C. meu Deus do céu, palavras lindas na letra M do Aurelião, repetir fascinado metâmero, metasterno, metereoscópio, paranóias desenfreadas, tudo que você quiser, e táxis, táxis, monóxido de carbono, amigos solicitando estranhíssimas cumplicidades, copos e copos de vinho tinto, ninguém dizendo meu-amor, suspeitas, censura interna outra vez, palavrão não pode, esse filme que já vi e por isso mesmo sei onde estou metido, uma carta que não chega nunca, nossa, como estou me lixando, vela branca prô Anjo da Guarda, bate outra, sal de frutas, pó de guaraná, candidatura de Gabeira, sen-si-bi-li-da-de-ex-ces-si-va, meu caro: honestidade, epidemias, vírus, pestes, dengues, devia vender mais caro minh’alma inestimável, Toninho ameaçado pelos skin-heads, nenhuma solidariedade, azia na certa amanhã de manhã, saudade, saudade inútil o tempo todo de qualquer coisa indefinida, de alguém desconhecido, investigar preço secretária eletrônica, ter certeza que em algum ponto do caminho se perdeu e ponto, e pronto, acabou, e para sempre, querido e não tocado jamais, mobilizado pela raiva, por favor me leva daqui para que eu me esqueça de onde sei que estou metido, corrompido até o último hímen, já temos um passado, meu amor, me convida pra jantar em tua casa, bota Billie Holiday baixinho, depois me dá um beijo na boca, bem molhado, irrecusável, um sonho com Hilda Hilst, o texto, o texto, traí meu destino, companheira, empurrado pela desordem, sobrevivendo ao naufrágio, agarrado mísero e adjetivoso a meu pedaço de madeira flutuante, e agora chega, chega, let it be, let it be, baby, que la vie, en rose ou em black no duro – é sempre uma brasa, mora: o caos é a forma.
Quanto a vocês, salve-se quem puder. Porque quanto a mim, querida, querido, queridos – eu? Ah: eu juro por todos os santos que sei muito bem onde estou metido.
               OESP – Caderno 2, Terça-Feira, 6 de maio de 1986


segunda-feira, 13 de agosto de 2012

As Pedras rolam


Há algo falso nessa divisão arbitrária e cheia de clichês – anos 40, anos noir; anos 50, anos roqueiros, topetes levantados, ginga nos quadris; anos 60, ó que delícia de década!; anos 70, a década-do-eu; e por aí vai. Tudo muito didático, muito pedagógico. Como na escola, dividir a literatura em prateleiras, tipo simbolista, romântica, naturalista. A vida e a história não têm subdivisões. Ou passam a ter, mas para efeito posterior de educação. E fatalmente: diluição, manipulação.


Este Anos 60, de Luiz Carlos Maciel (L&PM, 120 páginas), infelizmente não foge do equívoco. Escrito talvez pelo melhor perito do assunto no Brasil (afinal, foi ele quem lançou os tais anos 60 como ideologia, na coluna Underground, de O Pasquim), o livro se perde quase completamente naquele tipo de lamentação linha “como era gostosa a minha saia larga” ou “que saudades do meu tamancão”. Para leitores menos maldosos, explique-se: em geral, tudo não passa de uma lamuriosa choradeira sobre como era legal viajar de ácido, como os estudantes & intelectuais eram mais engajados, como a guitarra de Jimi Hendrix era estonteante, como a montagem de Roda Viva incomodou o público etc. & etc.  

Para Maciel, os anos 80 são os anos da monumental rebordosa – e só. Serão? Até quem sabe. No seu excelente artigo sobe Aids, lucidamente, ele assinala que a solução não é usar camisinha, mas “denunciar a culpa mórbida e tentar (...) libertar o ser humano de seus fantasmas”. Como no artigo de LSD, informa razoavelmente sobre o psicodelismo. (Mas informa para quem lê, não para quem viveu e viajou.) Situa, com certa precisão, algumas tendências de uma época que – todos sentimos muito – infelizmente passou. Maciel se dá mal, por exemplo, ao analisar o rock contemporâneo, e ao tomar Jimi Hendrix como fim de um tipo de música, que continua a crescer (ele parece nunca ter ouvido falar de Laurie Anderson, para ficarmos só nesse nome) e a fluir. Como a vida e as pessoas dentro dela, dentro e ao mesmo tempo fora de um processo histórico, que, no final das contas, ainda não pode ser analisado (e limitado), simplesmente porque não parou de rolar. É mutável, dinâmico. Surpreendente. 

Tentar aprisionar a realidade em conclusões de carpideira de um tempo que se foi é coisa perigosa. O bar da esquina está cheio de gente interessante que nunca ouviu falar em Janis Joplin. E se, como no pequeno (e belo) poema disfarçado no meio de uma prosa chata sobre o machista e careta O Pasquim, o próprio Maciel diz “O sol cai; é mais um dia que se vai, que se esvai, em nada, nada mais”, isso é sinal de que o tempo andou. A vida também acontece agora, plenos anos 80, com os punks ali na esquina ou dentro de você. A nave-mãe não vai descer, e o indivíduo não desapareceu. Prestar atenção no novo é não entrar para o PMDB.

                  OESP – Caderno 2, 19 de julho de 1987

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Em nome dos dragões



                                                       Eles não sabem de nada:
                                                       No outro lado da gorda realidade,
                                                       habitam dragões flamejantes


Nos últimos tempos dera para dormir e sonhar demais. Mas não conseguia ir adiante nesse pensamento, porque quando pensava “nos-últimos-tempos” outra parte da cabeça imediatamente perguntava – quando? Então, um pouco hesitante, respondendo à própria pergunta, dizia-se assim: desde – ai, que dor! –, desde que a realidade começara a engordar. A realidade ficando cada vez mais inchada, repleta de copos de plástico transbordantes de refrigerantes, compotas de figos e pêssegos e goiabas boiando em calda espessa, rubras talhadas de goiabada, carnes gordurosas em molhos condimentados, doces bombons licorosos.

(Ah, como sentia medo desse obeso real a invadir as tardes, quando a gordura vinda de fora pesava os movimentos a ponto de dificultar gestos tradicionalmente leves, como levar a tirar o cigarro da boca, suspirar ou pensar qualquer coisa olhando as ruas da cidade ao longe e em baixo. Atos e pensamentos eram pedaços de pêssego, goiabada, nacos de carne de porco ou carneiro boiando no molho informe do cérebro.)

Mas depois que conseguia ir adiante – e era tão penoso, bracejando náufrago exausto na gordurenta calda-molho das tardes – completava: nos últimos tempos, como ia dizendo, costumava dormir e sonhar demais. Talvez porque apenas no sono e no sonho aquela graxa do cotidiano dissolvia-se pouco a pouco até o completamente, para dar passagem aos dragões. Porque era com dragões que sonhava, e sonhava muito desde que dera para dormir tanto quando, nos últimos tempos, a realidade começara a engordar. Com dragões, preservava magreza e nobreza.

E os dragões – que lindos dragões eles eram – flutuavam em sua mente a noite toda, e durante as manhãs cada vez mais frequentes em que não conseguia sair da cama para enfrentar a graxenta realidade de dentro e de fora do apartamento – mas ah, que belos dragões eles eram, dançando em sua mente nas noite e nas manhãs de sono. Alguns alados, línguas bífidas como as das serpentes, escamas de cristal, caldas reluzentes. Outros de papel, alaranjados, e dragões noturnos vagamente melancólicos lusco-fusco fosforecente dos olhos esbraseados no escuro. Dragões brancos angelicais, dragões negros mansos como panteras novas, dragões roxo-púrpura (seus preferidos) estranhamente sofisticados, como de neón, semáforos. Dragões de São Jorge Ogum guerreiro, sem guerras nem lança, dragões raptores de donzelas sem donzelas raptadas, dragões guardadores de princesas se princesas prisioneiras. Dragões amáveis, dragões serenos, dragões elegantes e – mas como, eram delicados – sobretudos dragões magros, esguios, esbeltos, afilados. Levíssimos e sensuais movendo-se como que ao som como de Laurie Anderson.

Dormia cada vez mais cedo, acordava cada vez mais tarde. A única forma de eliminar a insustentável gordura do real seria enchê-la de dragões em tempo integral? Era tão perigoso. Porque aquela outra parte da cabeça, aquela parte cúmplice da gordura, de coque e minissaia, entre o professoral e o perua, aconselhava: “Meu bem, se você continuar a se distanciar assim do real-objetivo, você vai mais é se f...” Não dava ouvidos, acordava cada vez mais tarde, e mais feliz. Embora soubesse – como eu sei e você, suponho, também (ele não, eles não sabem nada) – que dragões nunca existiram na realidade.  Mas que importância tem afinal a realidade – ele repete todos os dias antes e depois de dormir e sonhar – se o outro lado, o verdadeiro, está sempre tão habitado por flamejantes dragões movendo-se como que ao som de Laurie Anderson.
PS – e por tudo isso, dedico esta ao severo, Ricardo.

                           OESP – Caderno 2, quarta-feira, 10 de setembro de 1986


terça-feira, 7 de agosto de 2012

Caetano, caetanagem


                                O problema do Caetano são as tietes. E as anti tietes. 
                                                    Mas eu, tu, ele: todos caetaneiam

Faz tempo que desconfio. Na última sexta-feira, tive certeza: devo mesmo estar enlouquecendo. Fui ver o filme de Caetano – e gostei. Mais inquietante ainda – não achei chato. Isso que fazia um calor senegalesco no Cine Metrópole tomado por tietes frenéticas, eu tinha acabado de sair de um fechamento, estava com fome e sede. Do ponto de vista do conforto físico, não havia clima para tolerar, por exemplo, 10 ou 15 minutos de Hamilton Vaz Pereira recitando páginas e páginas de Grande Sertão: Veredas. Mas de repente eu tinha relaxado e foi ficando gostoso estar lá atento à música da palavra de Guimarães, o Rosa, enquanto via a cara boa de Hamilton. Preciso reler Guimarães, pensei. E achei bom pensar – mais que pensar: querer isso. Por que não?

Falei em tietes. O problema de Caetano, coitado, são as tietes. As tietes e antitietes. Caetano faz ou diz uma coisa – qualquer coisa – e imediatamente as tietes caem de joelhos em adoração profunda, enquanto as antitietes correm em busca dos seus mais fétidos tomates & pútrefos ovos para jogar no ícone. O que é, também, uma forma de tietagem. Só que às avessas. Odiar Caetano, adorar Caetano – não há meio termo. Nesses extremos, perde-se o centro, perde-se a quina da cara e da coroa, perde-se o ponto exato da junção/fusão entre ying e yang, ou seja: o próprio Caetano. Sua sensibilidade especialíssima, tudo que ele tem para dar de toque ou dica. Preste atenção. Por que não?

Presto sempre atenção no que Caetano diz e faz: ele me interessa. Como prestava atenção no que Clarice Lispector escrevia, como presto atenção na cabeça de Augusto de Campos, como presto atenção nos filmes de Arnaldo Jabor (quem reviu O Casamento, na Globo, há duas semanas, sabe que vale a pena), como presto atenção nos desenhos de Mira Schendel. Então, assistindo a O Cinema Falado, quando minha cabeça esquizo sobre o corpo cansado queria escapar sobre o lado fácil do “ó,  que saco essa falação!”, uma ou outra coisa se dividia e – sem razão, além da razão – ia fluindo e se encantando. Por que não?

Se encantando com Rodrigo Veloso dançando Águas de Março, deixando um arrepio na pele com Dona Canô cantando Noel Rosa, pensando “que bonito” naquela composição em preto e branco, um corpo feminino branco, outro masculino negro, com o próprio Caetano e a igreja de Santo Amaro da Purificação ao fundo, com Mario Peixoto explicando a onda que quebra, a voz luminosa de Nana Caymmi sobre a cidade do Rio, o pavão-Caetano quase no final, a criança-Caetano na última cena, tentando fazer direito uma coisa que ele não sabe: cinema. Se é que existe jeito certo, pois errado é jeito como qualquer outro. Por que não?

Se você for ver com espírito de tiete, vai dar pulinhos de alegria. Se for ver com espírito de antitiete, vai dar pulinhos de ódio. Mas se você conseguir pegar O Cinema Falado como quem pega, digamos, um livro de poesia e folheia ao acaso – que bonito este verso, que chato isto aqui, que fecho criativo, este ritmo não tem nada a ver – e deslizar, só deslizar, com alguns solavancos inevitáveis, sem a menor preocupação de tirar qualquer conclusão, que bom pode ser. Quem criticar O Cinema Falado, vai se ferrar. Quem discutir O Cinema Falado, vai se ferrar. O sexo dos anjos não importa. Mas os anjos em si são tão interessantes com suas asas, percebe? E por que não?

Saí cheio de idéias. Algumas bobas, outras quem sabe não. Uma baita vontade de viver. Cheguei em casa, ouvi vários Caetanos, fiquei dançando sozinho. Não, não é pecado apostar na alegria. Que bom Caetano existir: o leite mau na cara dos caretas. Eu quero mais é caetanear o que há de bom. Com mil Suzanas Amarais – Por que não?

                   OESP – Caderno 2, 10 de dezembro de 1986  (tks pela lembrança, Lara)


quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A grande fraude de tudo - Final



A literatura brasileira contemporânea, com raríssimas exceções, vive ainda na Idade da Pedra. Tempos atrás participei dum seminário de literatura (não tenho o costume, mas pagavam 100 notas e eu tava duro, como sempre) e num “painel” sobre o conto um respeitável crítico parou em Katharine Mansfield e Tchecov, como ideais perfeitos do gênero. Ainda se discute a diferença entre forma-e-fundo, a distinção entre conto-novela-romance. Tudo isso está morto e cheira mal. Como mortos e cheirando mal os caras que o discutem.  A tal literatura-brasileira-contemporânea precisa de alguém ou um grupo que façam com ela o que Caetano & Gil fizeram com a música em 67: introduzir a geleia-geral, a guitarra elétrica, os anos 70. Claro que os jovens não lêem. Literatura, nos termos em que é encarada e discutida aqui nesta terra, cheira a mofo, a putrefação.

Uma pausa para render muitas homenagens a Qorpo-Santo, a Oswald e Mario de Andrade, a Luiz Carlos Maciel, aos irmãos Campos, a Torquato Neto, a Gramiro de Matos e seu “Os Morcegos Estão Comendo os Mamãos Maduros”.

Respeito o trabalho de, por exemplo, Sérgio Sant’Anna, Roberto Drummond, João Ubaldo Ribeiro, Ignácio de Loyola, Flávio Moreira da Costa, Lucienne Samôr. Eles encaram o nosso tempo, usando a forma do nosso tempo. Quebradas, loucas, caóticas. Cito um romance mal lido e mal compreendido: As Meninas, de Lygia Fagundes Telles. A essa altura do campeonato não se admite bom comportamento, bom-mocismo. O jogador em que eu me amarraria se gostasse de futebol seria justamente aquele que foi expulso do campo por violar as regras. Eu disse “VIOLAR AS REGRAS”. “Derrubar as prateleiras, as estantes, as estátuas, louças, livros.”

Só para situar: tenho três livros publicados. O primeiro: Inventário do Irremediável, contos, ed. Movimento, 1970;  o segundo (primeiro a ser escrito): Limite Branco, romance, ed. Expressão e Cultura, 1971; o terceiro: O Ovo Apunhalado, contos, ed. Globo, 1975.  Comecei muito cedo. Com seis anos escrevi meu primeiro conto (a história dum pistoleiro chamado Tumba). Limite Branco é o romance escrito aos 18 anos – e é exatamente isso: um romance escrito aos 18 anos. Inventário já tem umas barras mais pesadinhas, mas ainda é rígido e palavroso. O Ovo Apunhalado é o primeiro livro que assumo integralmente. Levou três anos para ser publicado, mas diz dessas coisas que estou falando aqui. Passou por uma espécie de “expurgo” antes de ser impresso – mesmo assim acho que chegou bastante vivo. Como das vezes anteriores, praticamente ninguém escreveu nada sobre ele. Mas tudo bem. Agora preparo outro livro de textos diversos, a chamar-se Maldições, ou talvez Lixo & Purpurina, e um romance (?) sem título.

Minha situação na literatura-brasileira-comteporânea é exatamente igual à minha situação na vida. Marginal, sem profissão (quem disse que escritor é profissão?). Sou mal visto em certos meios (que aliás não frequento) literários locais. Por exemplo: não me convidam para palestras com estudantes secundários porque acham que um excesso de jeans & pelos passaria aos inocentes jovens uma imagem de excessivo desbunde. Cintos da castidade mentais? Pois é. “Por que vocês não sabem do lixo ocidental”.

Quando saiu O Ovo Apunhalado vieram com umas estórias de que o sonho tinha acabado (ainda), coisas assim. Quero dizer aqui com maiúsculas e com licença de Rita Lee que O SONHO CRESCEU. A respeito disso, cito a mim mesmo, um trecho do conto Eles que está no Ovo: “Você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser, até o fim de sua vida você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu lugar confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão mais a ser as mesmas, e nem você próprio será o mesmo”.

Depois de anos de estagnação na literatura gaúcha começou a acontecer alguma coisa viva e nova. Surgiram duas antologias publicadas independentemente, Teia e Há Margem. Participei da primeira, na segunda só entrou gente inédita em livro. Não há um grupo estruturado, não há sequer um movimento, é provável que esse trabalho não prossiga. Mas os livros estão aí, para quem quiser saber dessas pessoas cheias de vontade de não calar mais, nesta terra onde artista é sinônimo de louco, ladrão ou prostituta. Há pelo menos três excelentes contistas: Sergio Caparelli, Jane Araujo e Valdir Zwetsch, mais dois poetas da pesada: Eduardo San Martin e Nei Duclós.

Tudo é social & político. Se escrevo um texto hoje inevitavelmente ele terá seu sentido social, porque foi gerado dentro de uma série de circunstâncias de tempo e espaço que formam o aqui-agora político e social, mesmo que se passe no século II A.C.. Seguinte: somos um rebanho que perdeu o pastor. Allen Ginsberg dizia que as grandes cidades são cascas de ferida na pele do mundo. O futuro é um salto no escuro. O amor, uma forma de violência. O centro de São Paulo, um imenso pátio de manicômio (o de Porto Alegre e o do Rio também). A saída, onde fica a saída? Não sei. Viver hoje em dia parece ser sinônimo de segurar a barra. Segure a sua. Não aceito quem pretenda escrever ou viver aqui-agora ignorando tudo isso. Não posso solucionar o horror, mas posso pelo menos tentar alertar o maior número possível de pessoas para ele. Aí então talvez se possa fazer alguma coisa. Porque ainda existem senhoras leandros duprés dizendo que “afora a educação liberal não teria mais nada a criticar no mundo de hoje”.

O resto todo mundo sabe. Editores que não editam. Distribuidoras que não distribuem. Livrarias que não vendem e leitores que não compram. Escritores inócuos. E um e outro louco ou sábio (nunca sabemos) aqui e lá tentando desesperadamente fazer alguma coisa. Fundando um novo jornal quando o antigo é fechado; pagando a impressão de seus textos em papel jornal; botando a boca no mundo, quando o mais prudente seria omitir-se para salvar a própria pele. Só que a pele já está perdida, e tudo está bem quando não se tem mesmo mais nada a perder.

Para quem não entendeu ainda, uma frase de R. D. Laing: “Se eu pudesse despertar você, arrancá-lo à sua miserável opinião, se pudesse arrancá-lo à sua desgraçada mente, se pudesse falar, eu lhe contaria”.   

                             Escrita - Revista mensal de literatura, 1976