quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Amizade Telefônica

Ilustração da coluna de Caio F. quando publicada no Caderno 2, em maio de 1986


                                           Amizade telefônica
Palavras, sentido e lógica ganham novos sentidos quando se fala sem se ver

Amigos telefônicos são preciosos. E por isso mesmo, raros. Eu tenho três ou quatro, e bastam. Amigo telefônico é assim: você só fala por ele por telefone. Ou fala pessoalmente também, mas é completamente diferente. Quando você encontra muito seguido um amigo telefônico, a amizade se divide em duas amizades paralelas: a que acontece cara a cara, e a que acontece telefonicamente. Esta sempre mais funda. Há coisas que só se diz por telefone: Telefone elimina rosto, gesto, movimento: a voz fica absoluta. O que a voz diz, ao telefone, é tudo, porque por trás dela não acontece nada como um franzir de sobrancelhas, um riso no canto da boca. E se acontece, você não vê. O que você não vê praticamente não acontece. Ou acontece tão vagamente que é como se não.


A gente recorre a um amigo telefônico quando alguma coisa não cabe por dentro. Não apenas dor - assim, tipo CVV -, porque se fosse isso, virava neurose braba, feia. Depois de um certo ponto de aluguel, vez que você ligasse, então, teu amigo telefônico ia dizer que não estava. Com toda razão. A gente recorre a ele quando alguma coisa boa não cabe dentro sozinha: tem que ser dita.Você liga para dizer que está feliz. Teve uma iluminação, pressentimento, uma fantasia, desejo. As pautas desenvolvidas na amizade telefônica podem ser muito abstratas, entende? E essa é outra das grandes diferenças entre a amizade telefônica e a outra: poder falar de coisas que quase aconteceram. Ou que deviam acontecer. Um pouco como em carta.Antigamente, carta era o equivalente do telefone. Quando não tinha telefone - há muitos, muitos anos - eu tive vários amigos-por-carta. Por, que na carta, também, você diz coisas que, cara a cara, nunca seriam dizíveis.

Amigo telefônico é noturno. A vontade de falar com ele costuma acontecer quando não há mais nada interessante na TV, quando todos os livros e todos discos do mundo não matariam a sede de ouvir uma voz humana dizendo coisas que respondam ou complementem ou rebatam outras coisas que a sua voz vai dizendo. E vai dizendo sem preocupação de ordem, de lógica, de senso. Com amigo telefônico, toda preocupação de parecer lúcido, consciente & equilibrado é inteiramente desnecessária. Se uma terceira pessoa ouvisse um papo entre dois velhos amigos telefônicos, provavelmente acharia completamente louco. Na amizade telefônica, a lógica é tão sutil que parece não existir. Mas existe.

Há também os silêncios. Silêncio de amizade-cara-a-cara quase sempre soa (???) constrangedor. As pessoas desviam os olhos, acendem cigarros, fazem comentários tipo nada-a-ver, só para quebrar o silêncio. Em amizade telefônica, nunca: um fica ouvindo a respiração do outro durante muito tempo. E não precisa dizer nada. A respiração do outro fala olha, estou aqui, está tudo bem, seja o que for, vai dar certo, estou atento ao seu coração, você está atento ao meu, e por estarmos atentos ao coração um do outro, só por isso - ele fica mais leve, o coração.

Agora são sete horas da manhã, estou pensando em meus amigos telefônicos. Mas não telefono. Amigo telefônico costuma dormir até tarde, principalmente às segundas-feiras - porque as noites de domingo - ah, essas: são praticamente telefônicas. E eles são solitários, esses amigos meio estranhos: ouvem vozes. Por isso mesmo, ponho um disco de João Gilberto bem baixinho e dou um beijo à distância na testa de cada um deles. Envio pelo espaço a voz de João para embalá-los nesse sono da manhã feriada e chuvosa. Que nem canção-de-ninar - me liga, tá?

                       OESP, Caderno 2, Terça-feira, 27 de maio de 1986

2 comentários:

  1. Quer Pregar Com Conhecimento Bíblico Profundo, Dominando a Oratória, com boa Dicção, Citando Versículos de Memória, sem Timidez e com total Eloquência?

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