quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A CARTA FURIOSA DE CAIO F. PRO PASQUIM



Quem assistiu não esquece Caio Fernando Abreu chamando Rachel de Queiroz de latifundiária e reacionária no programa Roda Viva (o vídeo tá no youtube). Pois esta carta aqui tem o mesmo teor, com a ira santa de Caio voltada ao Pasquim.

O entrevistão de O Pasquim, em 1977
Era 1977. A Codecri, editora do Pasquim, publicou Histórias de Um Novo Tempo, coletânea de contos com seis autores "novíssimos" - Caio Fernando Abreu, um deles. E quatro foram reunidas para uma das célebres entrevistas, com direito a chamada de capa: "A ala jovem da literatura dá seu recado". O Pasquim, então, andava distante dos tempos mais libertários como o da entrevista com Leila Diniz, por exemplo, e havia uma nova geração chegando - Caio, tinha 29 anos e já havia publicado três livros: Inventário Do Irremediável (Contos, 70), Limite Branco (romance, 71) e O Ovo Apunhalado (contos,75), o primeiro a despertar mais atenção.

Com quatro páginas, o entrevistão rendeu uma carta em que Rogério Monteiro dizia que conhecia Caio F. e que ele renderia sozinho muito mais do que os que foram reunidos. A resposta do Pasquim foi debochada (no final). Resultado: Caio Fernando Abreu, furioso, escreveu uma carta para o Pasquim sobre o que achava da entrevista, do reacionarismo do jornal e muito muito mais, praticamente um documento sobre aquele quase final de década quando Rita Lee era presa com maconha, Odara do Caetano Veloso era alvo de "patrulhas ideológicas".... Não lembro de ter lido essa carta em nenhum dos livros publicados sobre ele.

Abaixo a carta de Caio. E no final, a que a originou.


                         A CARTA DE CAIO F. PRO PASQUIM

Porto Alegre, 18 de agosto de 1977
Seu Edélsio (?):

Como não costumo mais ler O Pasquim, somente hoje, através de outra pessoa, tomei conhecimento da carta enviada a vocês por Rogério Monteiro, a respeito da entrevista sobre Histórias de Um Novo Tempo. E também da resposta. Grossa e imbecil como, suponho - já que não perco tempo com imprensa pseudoliberal, chauvinista e reacionária -, costumam ser as respostas de vocês.

Certamente, ou quase, vocês não publicarão esta carta. A não ser com os costumeiros e arbitrários cortes. Ou/e com uma resposta idiota. Antes de mais nada, quero deixar algumas coisas bem claras: não tenho o hábito de escrever para jornais ou revistas (a não ser quando pegam no meu pé) e nem estou querendo aparecer no Pasquim. Caretice por caretice, meu irmão, no final das contas, a Manchete é o mesmo caldo.

"Seu Edélsio" - eu não admitiria nem que Otto Maria Carpeaux (você já ouviu falar?) viesse a dizer que os autores - ou eu, especificamente - de Histórias de Um Novo Tempo - "na base do pau" poderiam "aprender alguma coisa que não fosse ler livrinho ou revistinha estrangeira". Seu moço, eu estou fazendo 29 anos, tenho muita estrada nas costas e não sou nenhum imbecil. Simplesmente dispenso orientações - de quem quer que seja - no meu trabalho de criação literária. Censura basta uma, cara. E vocês confundem descolonização cultural com fechamento cultural: proibir ou criticar a leitura de literatura estrangeira (e você acha que os autores que leio - estrangeiros ou não  - alguma vez escreveram livrinhos?) é exatamente a mesma atitude de baixar censura prévia sobre a imprensa estrangeira. Isso é FECHAMENTO CULTURAL, moço. Isso é FAS-CIS-MO, chê.

E tem mais: eu ia ficar quieto no meu canto porque tenho nojo de intrigas e bastidores literários, mas chega de levar paulada e ficar quieto. É assim que o nosso povo está vivendo há 13 anos.

Eu quero dizer que aquela ridícula entrevista foi CORTADA E DISTORCIDA ARBITRARIAMENTE. Segundo estou informado, um jovem (cujo nome prefiro omitir), dizendo-se autorizado por mim a cortar algumas de minhas declarações foi o autor desse troço. Eu pedi apenas que cortasse o que eu disse sobre (...) (NR - Seu pedido foi atendido). A não que vocês, além de reacionários, sejam também dedos-duros. O que eu não duvidaria. Bem, cortaram tudo. Desde um depoimento - a melhor coisa da noite - do escritor João Silvério Trevisan - até minha reação à agressividade do Cícero Sandroni e a minha resposta a uma pergunta de Félix de Athayde. "Você está defendendo o João Silvério por gostar do livro dele ou porque vocês dois são homossexuais?". Eu respondi: "Eu sou bi-sexuado, Félix. Como todo mundo. Inclusive você. A diferença é que eu admito isso e vocês não".

Olha, moço, eu não tenho moral pública nenhuma a defender. Eu sou exatamente o que sou, ou o que a geração estúpida de vocês fez com que a minha se tornasse. Acontece que neste país, e nesta imprensa moralista, verdade é sinônimo de escândalo. E é, no mínimo lamentável, perceber que justamente vocês, que se supõem tão liberais, venham com esse tipo de atitude MEDIEVAL. Tapar o sol com a peneira, cara? Mas se o mundo tá podre, meu irmão. Se tá tudo caindo aos pedaços e a única coisa a preservar (difícil quando se está em contato com certo tipo de máfia) é uma certa dignidade humana.

São caras como vocês que estão tentando destruir Caetano e Gil. São caras como vocês que provocaram, indiretamente, a loucura, a prisão e a cegueira de Maura Lopes Cançado. São caras como vocês que prenderam Rita Lee. São caras como vocês que expulsaram José Celso Martinez do país. Ou Rogério Sganzerla. Ou Helena Ignez. Ou Julio Bressane. Por não terem se habituado ainda à idéia de que OS TEMPOS SÃO OUTROS, de que a década do 70 tá no fim e todos os conceitos marxistóides de vocês criaram mofo, de que entre a minha geração e a de vocês existe um abismo onde cabem o tropicalismo, os Beatles, os tóxicos, as viagens de carona, as comunidades, a macrobiótica, a ioga, Timothy Leary, a ecologia, o aumento no índice de loucura y otras cositas más. Não há diálogo entre nós porque a mente de vocês é estreita demais.

Quanto ao HISTÓRIAS DE UM NOVO TEMPO, suponho que a Codecri já tenha faturado bastante em cima dos"novíssimos". É bom dizer: a Codecri não nos deu sequer passagem para ir até o Rio (eu moro no Sul, e sou jornalista, e ganho pouco). A Codecri não divulgou o nosso nome nos lançamentos: ficamos sempre à sombra de Otávio Ribeiro e seu Barra Pesada, tratados como "pobres jovens a quem estamos dando uma chance". Eu quero que as chances de vocês vão para o inferno. E se quiserem colocar meu nome no índex do Pasquim (deve ter um, não? pois até o Vaticano tem) eu vou achar até bom.

Talvez eu devesse ser mais contido ou mais brittish (para seu governo, moço: leio inglês, espanhol, italiano, francês, entendo alguma coisa de sueco e estou estudando alemão) - já que para Félix de Athayde não passo de um "inglês de fronteira". Inglês de fronteira que aprendeu na porrada a lidar com gente medíocre e baixo-astral, e que cada dia prefere conhecer mais as plantas e os animais do que seres humanos de um certo tipo.

Eu acho tudo isso péssimo, e gostaria de não ter sido praticamente forçado (por mim mesmo) a escrever esta carta. Mas isso é exatamente o que penso a respeito de vocês, e de toda uma imprensa dita liberal. A gente fica pensando na mysérya do lyberalysmo, de Glauber Rocha. A propósito, vocês já ouviram Nara Leão cantando este Erasmo Carlos: "mas não polua minha cultura / não venha dividir comigo sua autocensura/ me desencontre/ não me prostitua/ Se não seremos mais uma carcaça em desgraça por aí"

Mas a minha (e a de minha geração) grande vingança, bichos, vocês jamais entenderão: é que vocês nunca conseguirão ficar ODARA, entendeu? O mais são lembranças agradáveis do tempo que Luiz Carlos Maciel perdeu fazendo páginas e páginas para vocês.
Meus pêsames.

Sem açúcar nem afeto (P.S.) Rogério Monteiro existe, palhaço, é um jornalista gaúcho que vive em Salvador. Flagrou? Po*** nenhuma.
Caio Fernando Abreu
(Rua Chile, 661, Jardim Botânico/Porto Alegre, RS)
Brittish é com um t só (PS: ESSA FOI A "RESPOSTA" DO PASQUIM)


                            A CARTA DE ROGÉRIO MONTEIRO

BAIANO BOM DE FIBRA, BOM DE CUCA E CORAÇÃO
"Escuta, Edélsio, eu não me ligo nesse negócio de ficar escrevendo cartinhas, mas resolvi uma exceção para levar até vocês - editores de uma das poucas fontes de informação "legíveis" do país - meu protesto pela bundamolice que foi a entrevista "Quatro Histórias do Nosso Tempo" (Pasquim 422). Digo isso porque conheço bem a obra do gaúcho Caio Fernando Abreu e garanto que ele sozinho teria condições de dar um recado melhor nas quatro páginas gastas com a matéria. Dos demais participantes, conheço apenas os trabalhos apresentados no livro editado pela Codecri. Mas acredito que teriam muito mais a dizer e só não o fizeram por serem cortados, agredidos e, principalmente, condicionados pelos entrevistadores (destaque para aquela besta do Cícero Sandroni) a colocar todo papo no plano político direto. Acho que vocês estão velhos e... "ROGÉRIO MONTEIRO" (Salvador (?) BA (?))
Concurso de Contos, "Rogério Monteiro", não é aqui, não. E qualquer tentativa de colocar qualquer papo em qualquer tipo de plano político direto é sempre saudável. "Rogério Monteiro", "você" acha que eles foram agredidos, é? Antes sesse. Ao menos assim poderiam, na base do pau, aprender algumas coisa que não fosse ler livrinho ou revistinha estrangeira. Vá emborgear um cortázar, "Rogério Monteiro". E teu sotaque, além do mais, é de Minas, nunca da Bahia. Te Flagrei, boneco!!!



quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Amizade Telefônica

Ilustração da coluna de Caio F. quando publicada no Caderno 2, em maio de 1986


                                           Amizade telefônica
Palavras, sentido e lógica ganham novos sentidos quando se fala sem se ver

Amigos telefônicos são preciosos. E por isso mesmo, raros. Eu tenho três ou quatro, e bastam. Amigo telefônico é assim: você só fala por ele por telefone. Ou fala pessoalmente também, mas é completamente diferente. Quando você encontra muito seguido um amigo telefônico, a amizade se divide em duas amizades paralelas: a que acontece cara a cara, e a que acontece telefonicamente. Esta sempre mais funda. Há coisas que só se diz por telefone: Telefone elimina rosto, gesto, movimento: a voz fica absoluta. O que a voz diz, ao telefone, é tudo, porque por trás dela não acontece nada como um franzir de sobrancelhas, um riso no canto da boca. E se acontece, você não vê. O que você não vê praticamente não acontece. Ou acontece tão vagamente que é como se não.


A gente recorre a um amigo telefônico quando alguma coisa não cabe por dentro. Não apenas dor - assim, tipo CVV -, porque se fosse isso, virava neurose braba, feia. Depois de um certo ponto de aluguel, vez que você ligasse, então, teu amigo telefônico ia dizer que não estava. Com toda razão. A gente recorre a ele quando alguma coisa boa não cabe dentro sozinha: tem que ser dita.Você liga para dizer que está feliz. Teve uma iluminação, pressentimento, uma fantasia, desejo. As pautas desenvolvidas na amizade telefônica podem ser muito abstratas, entende? E essa é outra das grandes diferenças entre a amizade telefônica e a outra: poder falar de coisas que quase aconteceram. Ou que deviam acontecer. Um pouco como em carta.Antigamente, carta era o equivalente do telefone. Quando não tinha telefone - há muitos, muitos anos - eu tive vários amigos-por-carta. Por, que na carta, também, você diz coisas que, cara a cara, nunca seriam dizíveis.

Amigo telefônico é noturno. A vontade de falar com ele costuma acontecer quando não há mais nada interessante na TV, quando todos os livros e todos discos do mundo não matariam a sede de ouvir uma voz humana dizendo coisas que respondam ou complementem ou rebatam outras coisas que a sua voz vai dizendo. E vai dizendo sem preocupação de ordem, de lógica, de senso. Com amigo telefônico, toda preocupação de parecer lúcido, consciente & equilibrado é inteiramente desnecessária. Se uma terceira pessoa ouvisse um papo entre dois velhos amigos telefônicos, provavelmente acharia completamente louco. Na amizade telefônica, a lógica é tão sutil que parece não existir. Mas existe.

Há também os silêncios. Silêncio de amizade-cara-a-cara quase sempre soa (???) constrangedor. As pessoas desviam os olhos, acendem cigarros, fazem comentários tipo nada-a-ver, só para quebrar o silêncio. Em amizade telefônica, nunca: um fica ouvindo a respiração do outro durante muito tempo. E não precisa dizer nada. A respiração do outro fala olha, estou aqui, está tudo bem, seja o que for, vai dar certo, estou atento ao seu coração, você está atento ao meu, e por estarmos atentos ao coração um do outro, só por isso - ele fica mais leve, o coração.

Agora são sete horas da manhã, estou pensando em meus amigos telefônicos. Mas não telefono. Amigo telefônico costuma dormir até tarde, principalmente às segundas-feiras - porque as noites de domingo - ah, essas: são praticamente telefônicas. E eles são solitários, esses amigos meio estranhos: ouvem vozes. Por isso mesmo, ponho um disco de João Gilberto bem baixinho e dou um beijo à distância na testa de cada um deles. Envio pelo espaço a voz de João para embalá-los nesse sono da manhã feriada e chuvosa. Que nem canção-de-ninar - me liga, tá?

                       OESP, Caderno 2, Terça-feira, 27 de maio de 1986

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Carta anônima



                               Carta anônima

                          Para ler ao som de Melodia Sentimental,
                        de Villa-Lobos, cantada por Olivia Byington

Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos, e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai fazer assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo e estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidros entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas são sempre bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada do que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.

Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais frequente, e me deixava irritado, agora não, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuram nos pés delas aqueles que poderiam ser os seus. (A Teus Pés, lembro.) E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você - seria, seriam?

Boas e bobas, são as coisas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito poder de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, e tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olivia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagall que Van Gogh, mais Jarmusch que Win Wenders, mais Cecilia Meireles que Nelson Rodrigues.

Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca na minha mão, eu toco na sua. Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse à bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe.

Suspiro tanto quanto penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão frequente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que na hora de dormir vezenquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo.

                   Caderno 2 - Quarta-Feira, 16 de março de 1988



quinta-feira, 28 de março de 2019

Frank Sinatra pelo jovem Caio F.



Uma única matéria assinada - apenas uma - registra a passagem de Caio Fernando Abreu pela revista Manchete. Repare no canto inferior da foto acima, a assinatura à esquerda: Texto de Caio Fernando Abreu. E matéria de capa com Frank Sinatra, oito páginas muita foto e pouco texto, que anunciava sua retirada dos palcos aos 30 anos de carreira. O texto começa assim:

"A decisão não foi tomada de improviso. Ao contrário, foi longamente amadurecida. Há dois anos e meio, como ele mesmo disse na semana passada em sua casa de Palm Springs, Califórnia, Frank Sinatra vinha pensando em abandonar o "mundo dos espetáculos e da vida pública", para usar a expressão do texto conciso e bem feito em que o cantor/ator se despede agora."

O Ovo Apunhalado
Claro que ele não entrevistou Frank Sinatra. Era junho de 1971 e Caio F., 23 anos, trabalhava no departamento de pesquisa da revista semanal carioca (e também da Pais & Filhos). O livro Para Sempre Teu, Caio F., de Paula Dip, conta como foi essa temporada carioca que acabou em prisão. Ele morava em Botafogo, numa comunidade hippie e por lá escreveu a maior parte dos contos de O Ovo Apunhalado (1975).

Um flagrante por porte de maconha, que ele dizia ter sido plantado, o levou à prisão. E só foi solto graças à intervenção de Adolpho Bloch, dono da editora que publicava a Manchete, que o demitiu e lhe deu uma passagem de ida para Porto Alegre.


E naqueles acasos também rola polícia no final do perfil de Sinatra por Caio F.:

"Ano passado teve sérias complicações com a polícia, que o acusava de ligações com a Máfia. Nada ficou provado, mas paira sempre uma desconfiança sobre Sinatra, por ter sido criado num bairro de mafiosos e por sua ascendência italiana.O que mais o aborreceu, entretanto, foi o livro de Mario Puzzo, O Chefão, que hoje em dia é sucesso internacional. Dizem que quis retratar Sinatra com seu personagem central, um cantor, ator, homem de maior popularidade nos Estados Unidos, mas cheio de vícios em sua decadência, o mais inocente dos quais é o da embriaguez. Os que conhecem de perto Frank Sinatra chegam a afirmar que é perfeitamente possível que seja esse livro uma das causas que estão na raiz de sua decisão de abandonar já a carreira para viver uma vida mais tranquila."


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Feliz em conhecê-la, Natália Lage



Natália Lage em À Beira do Mar Aberto,











Chama-se Natália, essa garota. Como heroína de romance russo ou uma tia-avó que nem conheci, famosa pela solidão (morreu solteirona), independência (vivia num hotel), aristocracia (odiava gentalha) e bom gosto (costureira requintadíssima) e, curiosa, como a própria filha que não tive e sempre pensei chamar de Clara, Luz ou, justamente, Natália.

Tem 16 anos. Feitas as contas poderia ser minha neta, posto que sou 30 anos mais velho. Supondo que eu tivesse tido um filho aos 15, e esse filho também tivesse tido um filho aos 15 - esse último filho ou filha, neto ou neta, poderia ser Natália. Por escolha, não tive nenhum. Os dois possíveis, em comum acordo com suas mães, foram abortados. Coisa de que me arrependo até hoje, ainda que não soubesse o que fazer a esta altura do safári com um rapaz ou moça de 19 anos e outro ou outra de 13.

Penso muito nesses filhos que não deixamos que vivessem. Rezo por eles, peço-lhes sempre um perdão desesperançado, amargo, desconfiado de que o crime cometido será para sempre imperdoável. Mas como Deus, embora aja, arranja jeitos tortuosos de compensar, volta e meia cruzo com alguém que poderia ser um daqueles filhos.

Natália é desses. Pele branca de porcelana, cabelos lisos quase louros, silhueta barroca, parece uma inglesinha do século passado. Não é difícil imaginá-la envolta em rendas, com chapéu e luvas, um livro ou bordado nas mãos. Fala pouco, quase nada. Mas olha muito o fundo. Séria, não fica jogando carinho fora (é de Escorpião), mas de vez em quando pega na sua mão ou te dá um abraço apertado sem avisar. Súbito e verdadeiro, o gesto de Natália nunca é social, estudado ou sedutor: toca em você respirando suave, sem nada pedir, sem carências. Como quem diz qualquer coisa tipo "que bom navegamos juntos".

Até dez dias atrás eu só conhecia Natália da TV: ela foi filha ao mesmo tempo de Vera Fischer e de Silvia Pfeiffer (e de Mário Gomes) numa telenovela cujo nome não lembro, depois a hiponga Adrenalina de Tropicaliente. Por amigos, certo dia soube que Natália gostava dos meus livros. Mas ela é tão jovem, pensei, e esses teens (argh!) não lêem nada, pensei assim com preconceito burro.

O elenco de À Beira do Mar Aberto
Fim do ano passado me procurou Marta Lage, mãe de Natália, queria produzir um espetáculo teatral com meus contos. Natália, imaginem, não tinha coragem de falar comigo. Pura intuição do bem, autorizei na hora.

Juntaram-se ao elenco Candé Horácio (19), Suzana Pires (18), Henrique Farias (20) e Mauricio Branco (25), todos eles filhos-não-tidos. Gilberto Gawronski começou a dirigí-los. Surgiu o título de um dos contos - À Beira do Mar Aberto, a idéia justa desse maar imenso da vida aos pés dos muitos jovens, tão jovens que mal começaram a navegar. Terá sereia nesse mar? E ilha e tubarão, terá? Piratas, tesouros, naufrágios, calmarias, tempestades, recifes, corais, escorbutos, banzo e nácar? Oh, Deus, tende piedade dos moços: só navegando em tuas águas pra descobrir tanto horror e maravilha.

Então vim ao Rio, e com uma equipe de 17 lindas pessoas fomos a Fortaleza estrear. Conheci Natália. Durante a viagem, enquanto os outros se agitavam excitados, ela leu todo O Marinheiro, de Fernando Pessoa; num bar, a vi sair discretamente para caminhar de mãos dadas com um menino mendigo. De vez em quando, numa mesa cheia, baixa a cabeça e escreve, escreve, escreve. É uma atriz. Tão menina, e de vez em quando umas entonações sabidas de balzaquiana, ironias de diva, charme de gatinha. Estranha densidade. Aura, magnetismo: talento.

Voltei, eles ficaram. Vão a Natal, João Pessoa, Salvador, Ilhéus, depois o Sul. Eu trouxe Natália no meu coração assustado, feito flor rara. Desde que a conheci, aqueles filhos que não tive me doem bem menos. Que é da natureza da dor parar de doer, tenho aprendido.
                Caderno 2, OESP - Domingo, 5 de fevereiro de 1995

E aqui, sobre a peça À Beira do Mar Aberto