segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Abolerados blues ou Para Sempre Teu

A crônica abaixo veio do facebook da Paula Dip e foi publicada na revista Lira Paulistana. Eis o post da Paula: "Procurei muito, e encontrei ontem, perdido entre meus arquivos, esse texto de Caio, "Abolerados blues, ou Para sempre teu", publicado nos anos 80 na extinta revista Lira Paulistana. Esse texto me inspirou quando dei titulo ao meu livro, e nele Caio fala de uma de suas grandes paixões: a cidade de São Paulo, que ele amou e odiou com igual fervor". E Para Sempre Teu Caio F., o livro de Paula Dip, lançado em 2009, breve estará com uma nova edição (a quinta) nas livrarias. Abaixo, Abolerados Blues ou Para Sempre Teu:



Meu dia em Sampa começa sempre na Avenida Rebouças, saindo da vila escondida onde habito para batalhar ônibus ou táxi (quando há grana, claro). Não é muito agradável. Tem barulho demais, monóxido de carbono demais, tem um astral de tensão que me faz chegar no trabalho como se tivesse um mármore na nuca. Atrasado, correndo, pelas manhãs, maldigo muito a vida e a cidade, assobiando “deu pra ti, baixo-astral/ vou pra Porto Alegre, tchau/ quando ando assim meio down/ vou pra Porto e bah trilegal”. Mas não vou pra Porto, a não ser para pegar um colo rápido, vezenquandemente. É só um inofensivo consolo escapista. Nem deu pra Sampa, ainda. Vou ficando por aqui, que Oxalá e Tupã me alumiem.



A noite costuma aliviar, principalmente quando chove e tem aqueles luminosos todos refletidos nas poças d’água da Consolação. Ou uns crepúsculos, uns laranjas, uns vermelhos intensos pras bandas do Ibirapuera. Uma chuva fininha, daquelas que dá vontade de ficar o dia todo em casa tomando chás, ouvindo Erik Satie e lendo Proust, bem tia. Nessas horas, Sampa revela seus venenos escondidos, suas seduções tão secretas e tão sutis que você mal percebe até que ponto está envolvido. Aí você grita chega! e sai correndo pro Rio de Janeiro. Que nada. Um dia, dois, três no máximo, aquela exuberância toda começa a gastar e o de dentro da gente vai ficando meio sem paradeiro no meio da dispersão, dos baixos leblons a sóis ipanemas da vida. Haja Ponte Aérea.

Deve ser lugar-comum, mas Sampa é definitivamente um caso de amor mal resolvido, sabe como? Você já amaldiçoou mil vezes a vez em que a conheceu, você já deu na cara dela, ela já deu na tua cara (vezenquando ficam feias marcas, roxuras, inchaços, cicatrizes), você já bateu forte a porta de casa jurando vingança e nunca mais voltar. Perfídia, injúria: abolerados blues. Mas voltou sempre. E teve também aquelas noites com vinho branco, luz de velas, depois lençóis de cetim, suspiros, ah aquela tarde no Ibirapuera quando, olhando as carpas coloridas, de repente tudo ficou mágico! E os planos, tantos planos em comum, tantos encontros inesperados, tantas mãos se tocando mornas, fazendo tudo parecer um grande e único corpo, com um só coração batendo sístole-diástole, todo sangue e paixão. Como sobreviver à ausência disso?

Depois, tem pessoas. Só aqui existiria, por exemplo, Augusto de Campos. Ou Rita Lee. Ou Lygia Fagundes Telles. Ou Telmo Martino. Ou Cida Moreira. Ou J.C. Violla. Ou Bruna Lombardi. Ou José Márcio Penido. Ou se começo a enumerar, não paro. Então mesmo naqueles sábados à noite, quando a última possibilidade é discar 130 para ouvir uma voz humana, você sabe que em algum ponto da babylon city deve haver uma pessoa bonita, senão fazendo algo bonito pelo menos sendo, bonitamente, ela mesma. Ajuda? Pode ser. Ainda que ultimamente a cidade ande mais pro escândalo da Ro-Ro do que pra saúde de Lee Jones. Ou sou eu quem anda assim? Porque também não sei se sei mais separar o que é de dentro e o que é de fora de mim, o que me faz pensar – com ou sem zen-budismos, pouco importa – se a cidade não seria eu o tempo todo, ou vice e versa, tanto faz. Também tenho essas zonas lestes, esses jardins, moocas e morumbis esquizoidemente divididos sobre a pele asfaltada.

E é então que a paisagem vista através da janela se transforma subitamente num espelho. No primeiro olhar, você rejeita, vidro vagabundo, espelho deformante como aqueles de parque de diversões. Depois, aos pouquinhos, você começa a encarar e vai aceitando. Não é simpático esse arranha-céu de vidro ali no olho esquerdo? E o que me diz da praça larga sobre a boca? Da quaresmeira toda florida entre os cabelos? Aquele tietê na testa cheira um pouco mal, é verdade, e os shppingcenters no nariz incomodam bastante. Mas tanto gás neon cintila em tuas pupulas desbotadas, baby, que você de repente fica tonto e gira e gira todo vivo ao som de mil buzinas, sem saber nunca se de desespero ou de alegria.

Diz que até o ano 2000 abre uma fenda embaixo de Sampa e engole tudo. Deus, preciso dar um jeito de acabar com este caso! Devolva logo minhas cartas e minhas fotografias, diaba. Apesar de tudo, para sempre teu

                                                Caio Fernando de Abreu

                           Revista Lira Paulistana, começo dos anos 1980

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Prefácio à Esta Valsa é Minha

Está de volta às livrarias Esta Valsa é Minha, o romance autobiográfico de Zelda Fitzgerald. A caprichada edição da Companhia das Letras fez a fineza de incluir o prefácio que Caio F. escreveu em 1986, quando o livro saiu por aqui. Está na capa, bem destacado: “prefácio original de caio fernando abreu”. Ele iria adorar. A partir da próxima linha, tudo é do Caio. 


Sempre imagino assim: um dia, um daqueles dias longos, chapados e doloridos da clínica psiquiátrica, Zelda sentou e escreveu, como se fosse a voz de outra pessoa, uma frase assim: “Essas garotas pensam que podem fazer qualquer coisa e ficar impunes”. Porque provavelmente era isso que diziam todos em volta dela. Ou só pensavam, nem é preciso dizer. Estava escrito nos olhos e no comportamento dos médicos, das enfermeiras, dos poucos amigos que a visitavam, e quem sabe até no rosto do marido Francis Scott, obrigado agora a escrever e vender ficção como se fossem salsichas para poder sustentá-la na clínica. Linda, jovem, talentosa, com um marido e uma filha lindos – e louca. Pode?

Podia. Tanto que ela estava ali. Depois de escrita aquela frase – imagino sempre –, o resto veio naturalmente: em apenas seis semanas, ela terminou Esta Valsa é Minha. Escrito, como se pode perceber por seu volume e pelo pouquissimo tempo, de um jato só. Zelda escrevia para se justificar, para se compreender, para se salvar. Para orientar a si própria dentro daquele poço onde tinha caído e que, até hoje, por falta de outra palavra mais adequada, chamamos de “loucura”. Nesse sentido, conheço apenas um outro livro assimm autoterapêutico: The Bell Jar (A Redoma de Vidro), o único romance escrito pela poeta Sylvia Plath, pouco antes de suicidar-se, aos trinta e um anos. Ela não conseguiu salvar-se através da literatura. Zelda também não: a loucura voltaria em ondas, com pequenos intervalos, até o incêndio no hospital psiquiátrico que a matou acidentalmente, em 1947, sete anos depois da morte de Scott.

A autobiografia é nítida em Esta Valsa é Minha. De certa forma, parece a versão pessoal de Zelda a tudo que Scott contaria em Suave é a Noite, onde ela própria aparece com o nome de Nicole. Aqui, ela se chama Alabama, uma garota ousada do sul dos Estados Unidos que, em plenos anos 20, emerge de sua vida provinciana para casar-se com o artista David Knight: “David Knight e srta. Alabama Ninguém” – ele grava com a ponta de uma faca na madeira da porta, pouco depois de se conhecerem. E a vida, a seguir, por trás dos prazeres, viagens e bebedeiras monumentais, parece ter sido sempre a luta de Alabama para deixar de ser a “srta. Ninguém”. Ou a luta de Zelda para deixar de ser a sombra, embora fascinante, do escritor mais mimado e talentoso de seu tempo.

Capa da 1ª edição
Alabama/Zelda tem uma filha (Bonnie, no romance; Scottie, na vida real), um caso com um aviador francês (Jacques, no romance; Edouard Josanne, na vida real). À procura da própria face, apaixona-se pela dança: faz aulas alucinadamente, como se fosse possível tornar-se uma grande bailarina. Zelda desistiu: Alabama, não. Persegue seu sonho até a Itália, e é aqui que a loucura aparece sobre a forma de metáfora: Alabama quase precisa amputar um pé, de tanto dançar. O pé salva-se, mas ela nunca mais pode voltar a dançar. Para Alabama, a dança está perdida. Para Zelda, a sanidade mental. O único jeito de prosseguir, então, é tentar compreender o que se passou. Como diz Alabama, no final: “Junto tudo num grande monte que rotulo de “o passado” em depois de esvaziar dessa maneira esse profundo reservatório que foi um dia meu ser, estou pronta para continuar”.

Esta Valsa é Minha é principalmente isto: a tentativa, apesar das mutilações, de continuar a vida. Com seus cortes bruscos, seus diálogos derramados e técnica às vezes desconjuntada, mas encharcado de emoção e entrega, o livro flui – para usar a imagem da própria Zelda – “como a corrente clara e fria de um riacho de trutas”. Depois dele, é possível compreender melhor aquela velha história de Zelda chamando os bombeiros, trancada num quarto de hotel em Paris. Quando eles arrombaram a porta, perguntando onde era o fogo, ela bateu no próprio peito e disse: “Aqui”. E é então, também que se pode compreender aqueles versos de Ana Cristina Cesar: “Chamem os bombeiros, gritou Zelda./ Alegria! Algoz inesperado”. Não, essas garotas não podiam mesmo ficar impunes – dizem todos. E veja só: Sylvia Plath, Ana Cristina Cesar, Zelda Fitzgerald e Alabama Knight – para ficarmos so nessas quatro – não ficaram. Mas deixaram versos, histórias. E lendas. Que talvez não existissem, se elas – bravas garotas – não tivessem ousado ir muito além do mediocramente permitido.


Aqui, uma resenha de Pedaços do Paraíso, coletânea de contos do casal Zelda/ Scott http://caiofcaio.blogspot.com.br/2013/03/desesperados.html