terça-feira, 20 de dezembro de 2011

À beira do mar aberto



Estou muito feliz com À Beira do Mar Aberto. Por várias razões. Uma delas: a direção de Gilberto Gawvronski. Vítima durante anos de leituras, interpretações e versões equivocadas de meus textos para teatro, só fui me reconciliar com esse processo depois do trabalho de Gilberto (e o magnífico Ricardo Blat) sobre a minha Uma História de Borboletas. Desde então, sinto nele uma espécie de alter-ego teatral: o que ele faz no palco com meus textos – de – livros é exatamente o mesmo que, se fosse diretor, eu faria. Não se trata nem de gostar, é mais fundo ainda. Identidade, cumplicidade, empatia, irmandade. Outra razão é Natália Lage, cujo trabalho aprendi a admirar através da TV, e que vai pintando como uma das grandes atrizes de sua geração. Mas o que mais me encanta nisso tudo é a visão sobre meu texto. Não teens modernos, arrogantes, padronizados e mimados pela mídia burra, mas pessoas – Natália e toda a sua turma atentas ao tempo, esse orixá que os muito moços, por sua própria condição de moços, ainda não conhece. Sinto lisongeado pelo carinho que eles dedicaram às minhas histórias, pela luz que jogaram sobre elas, frequentemente tão sombrias.


 Por isso mesmo – pelo amor, fé e luz – tenho absoluta certeza que tudo vai dar certo. Por “dar certo” compreendo passar coisas boas, úteis ou belas, ou que alguma forma ajudem outras pessoas. Jovens ou não, que todos temos sempre entre zero e cem anos, isso depende da circunstância, não da cronologia, você sabe.

E há esse sopro de novo, única coisa capaz de revigorar o planeta cansado, o tempo cansado, os homens cansados. Que sopre forte como aquele vento inglês que chega do norte no começo da primavera, para afugentar os maus espíritos e as trevas do inferno. Lá, as pessoas escancaram todas as janelas. Deixam soprar sem medo. Foi pensando nisso que eu disse “sim” a Gilberto, a Natália e a todos os outros parados, atentos à beira deste mar aberto aos nossos pés.

          Programa da peça À Beira do Mar Aberto - Dezembro de 1994



                                          Frases incluídas no programa da peça:

Havia uma outra coisa atrás e além de nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados quando a gente descobre alguma coisa para observar.

...sempre se precisa ir além de qualquer palavra ou de qualquer gesto.

Tremi quando cheguei a perceber o equívoco, pois era como uma declaração de amor velada e, de certa forma, criava entre nós um compromisso extremamente sério.
O que nunca pensei é que pudesse ser assim tão vazia uma casa sem um anjo.

O aplauso seria insustentável para eles: a confirmação de sua inadequação é compreendida e aceita e admirada, e portanto pelo avesso, igual ao direito incompreendido, rejeitado, desprezado. Os Dragões não querem ser aceitos.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Feliz em conhecê-la, Natália Lage



Chama-se Natália, essa garota. Como heroína de romance russo ou uma tia-avó que nem conheci, famosa pela solidão (morreu solteirona), independência (vivia num hotel), aristocracia (odiava gentalha) e bom-gosto (costureira requintadíssima) e, curiosa, como a própria filha que não tive e sempre pensei chamar de Clara, Luz ou, justamente, Natália.

Tem 16 anos. Feitas as contas poderia ser minha neta, posto que sou 30 anos mais velho. Supondo que eu tivesse tido um filho aos 15, e esse filho tivesse tido um filho também aos 15 – esse último filho ou filha, neto ou neta, poderia ser Natália. Por escolha, não tive nenhum. Os dois possíveis, em comum acordo com as mães, foram abortados. Coisa de que me arrependo até hoje, ainda que não soubesse o que fazer a esta altura do safári com um rapaz ou moça de 19 anos e outro ou outra de 13.

Penso muito nesses filhos que não deixamos que vivessem. Rezo por eles, peço-lhes sempre um perdão, desesperançado, amargo, desconfiado de que o crime cometido será para sempre imperdoável. Mas como Deus, embora aja, arranja jeitos tortuosos de compensar, volta e meia cruzo com alguém que poderia ser um daqueles filhos.

Natália é desses. Pele branca de porcelana, cabelos lisos quase louros, silhueta barroca, parece uma inglesinha do século passado. Não é difícil imaginá-la envolta em rendas, com chapéu e luvas, um livro ou bordado nas mãos. Fala pouco, quase nada. Mas olha muito, o fundo. Séria, não fica jogando carinho fora (é de Escorpião), mas de vez em quando pega na sua mão ou te dá um abraço apertado sem avisar. Súbito e verdadeiro, o gesto de Natália nunca é social, estudado ou sedutor: toca em você respirando suave, sem nada pedir, sem carências. Como quem diz qualquer coisa tipo “que bom navegamos juntos”.

Até dez dias atrás eu só conhecia Natália da TV: ela foi a filha ao mesmo tempo de Vera Fischer e de Silvia Pfeiffer (e de Mário Gomes) numa telenovela cujo nome não lembro, depois a hiponga Adrenalina de Tropicaliente. Por amigos, certo dia soube que Natália gostava dos meus livros. Mas ela é tão jovem, pensei, e esses teens (argh!) não lêem nada, pensei assim com preconceito burro.



Fim do ano passado me procurou Marta Lage, mãe de Natália, queria produzir um espetáculo teatral com meus contos. Natália, imaginem, não tinha coragem de falar comigo. Pura intuuição do bem, autorizei na hora.

Programa da peça
Juntaram-se ao elenco Candé Horácio (19), Suzana Pires (18), Henrique Farias (20) e Maurício Branco (25), todos eles filhos-não-tidos. Gilberto Gawronski começou a dirigí-los. Surgiu o título de um dos contos – À Beira do Mar Aberto, a idéia justa desse mar imenso da vida aos pés dos muito jovens, tão jovens que mal começaram a navegar. Terá sereia nesse mar?  E ilha e tubarão, terá? Piratas, tesouros, naufrágios, calmarias, tempestades, recifes, corais, escorbutos, banzo e nácar? Oh, Deus, tende piedade dos moços: só navegando em tuas águas pra descobrir tanto horror e maravilha.


Então vim ao Rio, e com uma equipe de 17 lindas pessoas fomos a Fortaleza estrear. Conheci Natália. Durante a viagem, enquanto os outros se agitavam excitados, ela leu todo O Marinheiro, de Fernando Pessoa num bar, a vi sair discretamente para caminhar de mãos dadas com um menino mendigo. De vez em quando, numa mesa cheia, baixa a cabeça e escreve, escreve, escreve. É uma atriz. Tão menina, e de vez em quando umas entonações sabidas de balzaquiana, ironias de diva, charme de gatinha. Estranha densidade. Aura, magnetismo: talento.
Voltei, eles ficaram. Vão a Natal, João Pessoa, Salvador, Ilhéus, depois o Sul. Eu trouxe Natália no meu coração assustado, feito flor rara. Desde que a conheci, aqueles filhos que não tive me doem bem menos. Que é da natureza da dor parar de doer, tenho aprendido.

                         OESP - Caderno 2 - Domingo, 5 de fevereiro de 1995

*P.S: O nome da novela que Caio F. não lembra o nome é Perigosas Peruas
                 Em breve aqui, o texto de Caio F. no programa de Á Beira do Mar Aberto