segunda-feira, 27 de junho de 2011

Conhecendo o Paraíso - 1ª parte


GAY POWER
Eu acho muito discutível essa coisa de luta gay. Todo mundo é parcialmente bissexual. Quando a gente começa a gritar aos quatro ventos as diferenças, você corre o risco de reforçar a discriminação. Se deve lutar, sim, por todos os direitos: de negros, de judeus, de classes menos favorecidas economicamente.  Não acho a luta gay mais importante do que a luta por melhor salários dos garis da Prefeitura, por exemplo. A política disso no Brasil é ambígua e complexa porque o Brasil é ambíguo e complexo sexualmente. A sexualidade aqui é totalmente indefinida.
Então, vamos discutir, vamos trazer isso à tona, mas com cuidado, para não cair naquilo do festival de filmes lésbicos em Paris que era proibido para homens. Também não gosto dessa história de cultura voltada para gays. É capitalista, uma coisa meio Xuxa, tipo vamos vender a botinha, a camisetinha, a calcinha e vender, vender, vender. Não se tem de compartimentalizar as coisas. Fiquei, ano passado, cerca de dois meses em Amsterdam e o prefeito de lá quer transformar a cidade na capital gay da Europa. Então é assim, um paraíso gay, muito agradável e tal, tem a discoteca dos sado-masos, dos gordinhos, dos negros, o bar das bichas magras, das lésbicas que se travestem de homens, das lésbicas que usam salto alto. Eu não gosto disso. Cai no folclore e na separação. São mini-guetos dentro de médios-guetos dentro de macro-guetos. Nós devemos caminhar é para a união de tudo. Se não, é muito esquizofrênico. Um livro escrito por um autor gay, editado por uma editora gay, distribuído por um distribuidor gay vai ser lido apenas por gays. Eu acho maravilhosamente útil um filme como Priscilla ou Filadélfia que pode não ser um grande filme, mas humaniza as pessoas e o subtexto é: olha, somos todos iguais! Cada ser humano é um universo com suas variações. Sou partidário da teoria do caos. Não vamos tentar ordenar e disciplinar o mistério. E a condição humana é basicamente o mistério.

HOMOSSEXUALIDADE
Eu nunca me senti homossexual, até porque eu não era exclusivamente homossexual. Tive muitas namoradas e tal. Mas isso é uma coisa que nunca me preocupou. Nunca me senti diminuído, nunca me senti agredido, nunca tive necessidade nem vontade de empunhar bandeira nenhuma. Claro que, quando há alguma discriminação, eu grito e acho justo gritar. Mas jamais encaminharia meus livros ou meu trabalho para uma coisa assim tão dirigida. Eu estava revisando um conto curtinho de Morangos Mofados que se chama Além do Ponto. É sobre um sujeito sem nome, caminhando na chuva, com uma garrafa de conhaque embaixo do braço à procura de um outro sujeito abstrato que está esperando por ele em algum lugar. E ele chega na casa do outro, começa a bater e a porta não abre. Essa história, na época em que o livro foi lançado, foi lida como uma história homossexual. Não é. Ela é a procura de Deus. O homem atrás da porta é como Godot, de Samuel Beckett. Foi uma leitura muito chinfrim. E o Brasil está muito assim, está muito Barbie. É uma ansiedade pelo plástico e uma avidez pela intimidade alheia! Eu tenho horror dessas revistas que entrevistam peruas e perus. Há um esvaziamento interior muito grande nas pessoas, elas estão ávidas tanto para ouvir quanto para falar sobre isso. A mim, nada que é humano me espanta e justamente por nada ser espantoso e vergonhoso a gente pode falar a respeito, mas a palavra chave é dignidade. Eu li muita fábula quando era criança, muito Esopo e La Fontaine – ética é bom e a gente gosta.

AIDS
Hoje tenho grande urgência de viver. Cazuza, Derek Jarman, Bill T. Jones. Todos trabalharam loucamente. Não há tempo para perder com gente chata, coisas chatas, ficar em fila de supermercado. Não posso perder tempo. Ainda nem li A Divina Comédia! E isso é muito saudável, se souber jogar com isso dentro da cabeça. O vírus não significa uma condenação à morte. Tenho amigos que estão com ele há 11 anos. Vide Betinho, que é maravilhoso, movido à vida e fé muito mais que AZT. A gente precisa falar muito sobre o vírus precisa dessacralizá-lo. Ele é uma coisa idiota. Precisa falar com ele de frente. Eu vi pessoas, aqui no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, que chegam do interior, mal, magrinhas, fracas, de ônibus, porque na cidade delas ninguém pode saber que estão doentes. Não ter vergonha nenhuma nisso. Que que é isso? A Condição humana é muito inocente.
                           Rev. Sui Generis. Nº 1. Janeiro 1995
PS: Logo logo a segunda parte da entrevista

terça-feira, 14 de junho de 2011

À nossa mais completa tradução


Partir é bom, voltar é melhor. Partir é de avião, mesmo não sendo. Você louco pra ver pelas costas o que fica: mulher, amigo, trabalho, cidade, picuinha cotidiana. Voltar é de trem, mesmo não sendo também. E você louco pra ver crescer devagar, na curva do monte, a cara desse pão nosso de cada dia. Pela frente. Voltar é de frente, partir de costas. Ficar eu não sei. Talvez de perfil, assim um tanto egípcio?      
Mesmo de avião, voltei de trem. Cinco anos longe deste Caderno 2, 10 meses fora de sampa. Até que posso, mas não quero viver sem. Voltando ressabiado, reticente e escaldado, dei de cara com Ela – de quem Caetano uma vez disse, e tudo que ele diz eu fico atento, ser a nossa mais perfeita tradução. Bracejando no mar de adrenalina da Paulista, comprei o disco de Rita Lee. E meu velho sangue roqueiro de dinossauro pop tornou a ferver. A velha senhora indigna, dessa geração que descobriu um poço de desejos debaixo do travesseiro no Reino das Águas Claras, continua com seu humor diabolicamente inteligente. Wow!
Não posso viver sem Sampa, não posso viver sem Rita. Nem sequer, najas queridas e já a postos, nos conhecemos direito.  Fora do palco-platéia só nos vimos uma vez, na casa de Vânia Toledo, logo depois que eu a defendera aqui mesmo de certo, digamos, Notório Jovem Crítico de Maus Bofes.  Ele a acusara de estar na “menopausa (sic!) criativa”. Estavas, perguntaram? Rita já rolou (e eu? E eu?) por todo o tobogã do baixo-astral tupiniquim – um dia deusa, noutro cadela – e sempre foi melhor que tudo que disseram, inclusive os elogios.
Rita e São Paulo. Pauleira, barulheira, gritaria: high-speed. E sem que ninguém espere, um interior bossa-nova, de luz baixa e som mansinho. Oh paulistanos de nervos repuxados como a cara das atrizes que se recusam a envelhecer, ouçam Rita Lee. Ela nos ensina o jeito de lidar com esta cidade onde você às vezes vegeta, às vezes é canibal. Audaciosa, perniciosa, tinhosa e hórrorosa como a Drag Queen de Antônio Bivar; necessitada de mais tempo, dinheiro e amor para matar o dragão; erótica e violentamente zen na sabedoria que só pterodáctilos feito ela (e eu? e eu?) estão cansados de saber que “nada tem fim, as coisas só se transformam”, mãe de família filósofa desbundada sobrevivente mutante: preciso de Rita como preciso desta cidade. Espelhos, paradisíaco inferno, refletindo meu avesso.
Tenho razões, ora, se não. Sozinho feito uma Laika, já ouvo Rita no walk-man, 17 abaixo de zero, neve batendo na cara, entre os junkies de Camden Town. Já ouvi Rita num TGV a mil por hora – eu ia ser feliz, não tinha tempo a perder. Já ouvi Rita de porre, fazendo amor, picando cenoura, pedindo carona, de saia-justa, deprê e piradão. Todas as vezes, me senti até o resto dos cabelos que me restam me restam metido nesta “coisa” paulistana: metrópole Gremlim distendendo seus tentáculos de neón e cólera em direção ao Terceiro Milênio. Identidade, Rita nos dá.
Me arrepio quando a ouço receber a Brigitte Bardot  anos 60, quando o Brasil era chique, cantando Maria Ninguém. Me arrepio mais quando a ouço berrar feito doida homenageando Todas as Mulheres do Mundo. E ainda mais quando cita Lonita Renaux (Denise Barroso) – aquela que, segundo Telmo Martino, interceptava todos os drinques. Nos tempos da Gang 90. Todos morreram, menos nós. Pós-absurdetes, sobreviventes, Bebetes Indartes da esquina, segurai bem alto nosso nobre facho (já) histórico.
Quando penso que voltei e que isso é bom, eu penso em Rita Lee. Quero cantar São Paulo, quero cantar nosso tempo.  Mais fundo e mais simples, quero cantar e mais nada. Cinquentões adolescentes ganhando no braço do baixo-astral do Brasil, se nossa “menopausa” (sic!) criativa” for assim, welcome seja! Para sempre teu, eternamente F.
                              OESP – Caderno 2 – Domingo, 22 de agosto de 1993

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Por aquelas escadas subiu feito uma diva



Foi mesmo amor à primeira vista. Naquela manhã de 1982, pelas escadas que levavam à “Nau dos Insensatos” – como Caio Graco batizara a redação do Leia Livros, um mezanino da antiga editora Brasiliense na General Jardim, plena Boca do Lixo em São Paulo – por aquelas escadas de madeira subiu Ana C. feito uma diva. Linda, loura, pescoço de Audrey Hepburn mas “certo ar de Mia Farrow”, como ela mesma se autoretratou em um poema, um único brinco indiano na orelha esquerda. Nervosa, irônica, crispada, inteligentíssima. Atenta demais, quem sabe?

Talvez tenha sido amor correspondido também,  pois através do correio imediatamente começamos a nos escrever. Os meus livros, os dela, editados artesanalmente por Heloisa Buarque de Hollanda, traduções, artigos para o velho e bom Leia, contos, poemas. Ana C. em sampa em fim-de-semana fin-de-siécle, com Reinaldo Moraes e Maria Emilia Bender íamos a restaurantes japoneses (ela adorava saquê), ao Spazio Pirandello, Frevinho, o antigo Longchamps do grande balcão anos 50 e falávamos, falávamos sem parar.

As cartas ficaram insuficientes, vieram os interurbanos – ela usando a Rede Globo, no Rio, onde trabalhava; eu a Brasiliense, em São Paulo. À noite, quando começou a longa crise, outros telefonemas em desespero; ‘Me sinto emparedada”, repetia sempre. Um pouco por ela, mudei para o Rio, para o Hotel Santa Teresa, no alto do morro. A crise continuava. Certa vez, no apartamento de nossa amiga astróloga Graça Medeiros, segurei-a na janela à beira do salto. Quase bati nela. Noutra, segurei-a tentando jogar-se em frente aos automóveis da Gávea. Ela quase me bateu. Não, nunca fomos amantes: nossas praias eram outras, se é que me entendem. Durante quase um ano, ela forjou suicídios cotidianos ao mesmo tempo sinceros e fraudulentos.
A última vez que a vi foi numa noite de setembro, quando eu completava 35 anos. Graça conseguiu levá-la até o alto de Santa Teresa e, por mais de duas horas, Ana C. não disse nada. Lerda, concentrada, apenas tocava, um por um todos os objetos do meu quarto. E me olhava. Profunda, atentíssima, remota. Parecia uma despedida. Pouco depois tentou o suicídio pra valer e foi internada numa clínica inacessível, para onde liguei tentando falar com ela e a psicanalista recusou-se, dizendo que “os amigos eram os principais culpados”. Seríamos? Mas logo nós, que a amávamos tanto, seríamos assim uns love killers?
Em outubro vim a Porto Alegre lançar o meu Triângulo das Águas, muito influenciado por ela. Ao entardecer de um começo de novembro, nossa amiga Maria Clara Jorge ligou do Rio dizendo exatamente: “Caio F. , a Ana C. conseguiu.” Surpresa nenhuma, há um ano ela jogava aquele xadrez bergmaníaco com a morte. Sabia que era cedo demais; sabia que viraria mito; sabia que mais que uma atitude existencial, era uma atitude literária. Mas ousou. Senti dor e raiva por ela nos ter abandonado tão brutalmente no meio do caminho, deixando aquela sensação de que poderíamos ter feito alguma coisa. Tão arrogantes: quem tem, afinal, o poder de salvar o outro de seus próprios abismos?
Não fomos felizes para sempre. Nem infelizes. Já a perdoei, já me perdoei. Fica esta dor de saber que toda a literatura brasileira perdeu o prenúncio de sua maior voz poética contemporânea. Nossa Sylvia Plath, nossa Zelda Fitzgerald. Fugaz como elas, doida, bela, chique, insuportável-irresistível. Ficou ainda um buraco, um vácuo, solavanco na continuidade. Cartas, poemas. Vestígios, souvenirs.  Palavras, nossa asa e arma. Às vezes mortífera, sabes?
                                                OESP – Cultura – Sábado, 29 de julho de 1995


quinta-feira, 2 de junho de 2011

Tentativa de sitiar uma esquisitice



Ando esquisito. Não exatamente mal, mas preguiçoso, dispersivo, desatento. Ou atento a coisas tão remotas que é como se não estivesse completamente aqui. Nem lá, na coisa remota. Na caixa do supermercado, de repente revejo nítida aquela esquina do restaurante japonês em Pernety, Paris. Ao atravessar uma rua aqui do Menino Deus, onde moro, a luz do crepúsculo me transporta para a beira do fiorde de Skjeberg, no sul da Noruega. E também não são só flashes assim chiques, estrangeiros, não. Outro dia na sacada aqui de casa, voltou de repente cedo entardecer na fronteira com a Argentina: 360 graus de pampa, o sol se pondo atrás do Uruguai e a Lua Cheia subindo exatamente a 180 graus opostos. E não só lugares. Caras também, e vozes, e pessoas ausentes ou distantes de repente se introduzem no presente e no próximo. Não são apenas lembranças, que isso é comum de ter, é mais inquietante que isso: são invasões no real do imaginário e da memória.
Vou ao cinema. Prêt-à-Porter, de Robert Altman, me faz rever por dentro um filme francês sofisticadíssimo do fim dos anos 60: Qui êtes-vous, Polly Magoo? Não só o filme, mas também o cinema onde o vi, e que já não existe mais, e a própria tarde de novembro em que foi visto, depois de uma prova na faculdade. Amateur, de Hal Hartley, e seus personagens zumbis desmemoriados me levam de volta a uma noite gelada de inverno em Kentish Town, Londres, saindo de um restaurante paquistanês. Uma moça chorava desesperadamente sentada no degrau. Perguntei se precisava de ajuda, ela contou: acabara de encontrar o namorado com outra na cama. Mas não queria ajuda nem nada, só queria ficar ali chorando sozinha no degrau gelado. Fui embora.
Será grave isso que tenho, ao ver outras coisas dentro da coisa presente? Não no sentido clínico ou físico, suponho, que não exige internação nem tratamento. Mas num outro sentido um tanto abstrato, talvez seja gravíssimo. É normal ver o que não é mais no que está sendo? “Normal” não é a palavra, eu sei, “normal” estabelece um critério tão inabalável de sanidade que chega a ser facista. Tento de outro jeito, então: será que é bom, isso?



Percebem como é vago? Tenho que dizer isso porque não sei como se chama. O que agrava as coisas, pois sempre é muito mais fácil lidar com algo batizado, classificado e supostamente compreendido. Será o inverno chegando? Aqui no Sul temos inverno brabo e este final de maio deixa no ar uma espécie de calafrio de antecipação: quer-se de repente estar no Caribe ou na Bahia para não ter que atravessar as geadas e os gelos de junho e julho para chegar despedaçado em agosto e, a partir de setembro, tentar reunir os cacos outra vez. Talvez porque há quatro anos viajando sem parar, vivendo dois invernos seguidos, e nenhum verão, ou o contrário, meu organismo tenha perdido o ritmo natural?

Será o Zaire? Será a greve dos petroleiros? Será o excesso de remédios? Será porque terminei livro, e isso sempre deixa a gente assim, esvaziado, espantado? Durmo e não sonho, faz tempo. Cartas e telefonemas, que quase não atendo, deixo para responder depois. Então esqueço. Começo a ouvir Mozart, me dá vontade de ouvir Satie. Vou ao Satie, mas acho que quero mesmo é Chopin. Abro Jorge de Lima pensando em Drummond, quero João Cabral, mas no segundo verso estou pensando em T.S. Elliot. De madrugada, acordo súbito e suado, julgando ouvir as sirenes da polícia daquele inverno infernal em Brixton. Há qualquer coisa ausente? Há outra coisa que ronda querendo tornar-se presente? O terror interno foge de todas as maneiras do real e do agora para não encarar-se, será? Não sei, ando esquisito. Ando mesmo muito esquisito e, bem sei, ninguém pode ajudar.

        OESP – Caderno 2 – Domingo, 28 de maio de 1995