sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O caleidoscópio Caetano Veloso

7 agosto: aniversário de Caetano Veloso. Caio F. adorava Caetano Veloso. O texto abaixo foi escrito por ele em agosto de 1989, quando Caetano foi o homenageado do Prêmio Shell para a música brasileira. E ficou regristrado na contracapa de um disco, uma coletânea com 13 de suas canções, lançada então. Ei-lo:

Qualquer antologia da obra de Caetano Veloso guarda uma facilidade apenas aparente. Fácil, sim, pela qualidade impecável de seu trabalho. Mas dificílimo por sua vastidão. Porque há muitos Caetanos. Desde o vanguardista decidido a atuar radicalmente sobre os destinos da música popular brasileira, com Alegria, Alegria, em 1967, até o cantor cada vez mais refinado - capaz de dar nova vida à música de outros compositores, de Noel Rosa a Djavan, de Carlos Gardel a David Byrne, de Humberto Teixeira a Cazuza.

Dentro dos muitos Caetanos, na verdade talvez exista somente um. E esse é vasto o suficiente para, na sua visão de mundo, abarcar tanto os estados amorosos mais íntimos e encantados (ou desesperados) quanto a alma de uma cidade, de um país ou do próprio planeta. Saindo de si, ele contempla a sua pequenez e a pequenez do humano perdido num planetinha azul a girar num infinito incompreensível, em Terra, ou mergulhando em si, confessa-se inevitável e nobremente piegas em Muito Romântico.

E ao contrário do que todos pensam, Caetano não é baiano. De Bahia, é certo guardou a ligação com a África, origem de tudo, seus deuses vigorosos e ritmos primitivos - fundamentais em sua música. Mas na vastidão que abriga em seu corpo exíguo, ampliou-se para, alegoricamente, definir um país inteiro na sucessão de imagens pop-místicas de Tropicália, para cantar a alma das cidades brasileira (Sampa, Aracaju) ou não (London London ou a Barcelona que inspirou Vaca Profana). Por estar atento às almas - das cidades, dos países, das pessoas, das coletividades - adquiriu (ou sempre teve?) o estranho poder de concentrar às vezes num só verso, todos os mistérios da condição humana. No ato simples de beber um refresco de caju, ele sabe localizar aquela questão que, em todos os tempos, sempre foi a mais fundamental do homem: "Existirmos a que será que se destina?"

Nem a esta, nem a outras perguntas Caetano tem respostas. Elas não cabem no universo dos poetas, dos filósofos, dos antropólogos, dos cientistas sociais, dos psicanalistas ou de todos aqueles que, feito os monges, praticam o ofício de contemplar com amor. Esse olhar - saudoso, furioso, melancólico ou visionário, mas sempre e basicamente amoroso - percorre toda a obra de Caetano. Como aquela linha que reúne os retalhos coloridos e díspares de um patchwork. Ou o triângulo de espelhos que reflete e geometriza contas e pedacinhos de papel nas mandalas de um caleidoscópio.

Esse caleidoscópio-Caetano, você pode girá-lo nas mãos para encontrar subitamente samba e rock. Dalva de Oliveira e Bob Marley, frevo e fado, Amália Rodrigues e John Lennon, bolero e reggae, Elvis Presley e Vicente Celestino. Por ser uma fronteira, aquela que com uma guitarra elétrica dividiu a música brasileira em antes e depois dele, Caetano não tem fronteiras. Depois dele e além dele, mas principalmente dentro dele, foram liberados a todos os riscos e prazeres de provar qualquer dos frutos do Jardim do Éden das maravilhas (e horrores) contemporâneos.


Sobre todos os horrores dos "homens que mataram Pixote" ou "da força da grana que ergue e destrói coisas belas", paira o olhar terno, compreensivo de Caetano. Voltado para a identificação do nobre e do belo que deva existir no humano. Caetano não rejeita a flecha negra do ciúme ou de outra emoção "menos digna" que possa habitar os corações. Canta o escuro e o claro, o puro e o contaminado, o ouro e a lama: são outras palavras, essas, as que provocam a jóia escondida no fundo das mentes abissais das criaturas.

Talvez um dia, num futuro muito remoto, quando algum pesquisador maluco resolver reconstituir com exatidão o perfil de uma época e da sensibilidade humana dentro dessa época, a obra de Caetano possa servir de mapa. Mapa que, apesar de seus dez mil caminhos, concentra-se clara, definida, nesse fato ao mesmo tempo simples e complicado: Caetano Veloso é muitos. Tantos, quanto nós todos somos. Conhecê-lo, do lugar pequeno onde nasceu até o confronto com as ideologias corruptas e manipuladoras, será sempre conhecer um palmo a mais das nossas tantas faces e dessa História - trágica e mágica - que nos cerca.

                                 Caio Fernando Abreu

                                  SP/RJ, agosto de 1989

 

 

 

 


terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Nos amávamos tanto




                              Nos amávamos tanto
                        Luiz Antônio Martinez Corrêa, Cacaso, Henfil: 
                           para onde foram aqueles sonhos dourados?

Entre minhas muitas obsessões, existe um poema. Curtinho, absolutamente simples, chama-se Idade Madura e tem apenas estes quatro versos: "Meu coração anda inquieto e sufocado/ Como na infância, nas noites de tempestade./ É risonho o meu futuro? Minha solidão é indescritível". Seu autor: Cacaso. Final do ano passado, aparentemente por razão nenhuma, como acontece com as obsessões grandes ou pequenas, poéticas ou não, o poema voltou com toda força. Eu passava os dias a recitá-lo, debruçado sobre o microcomputador do astrólogo Pedro Tornaghi, no Rio de Janeiro, conscientemente me recusando a ler jornais, ver televisão ou entrar em contato com qualquer meio de comunicação capaz de tornar mais presente esta coisa difícil - o mundo real. Até que não aguentei, arrumei um rádio.

A primeira notícia que o rádio trouxe foi: o diretor teatral Luiz Antônio Martinez Corrêa (era ótimo, dele vi Theatro Musical Brasileiro 1914-1945, talvez o melhor espetáculo em cartaz no Rio), 37 anos, tinha sido assassinado com 80 facadas. Desliguei o rádio. E só saí de casa no dia 30 de dezembro para uma manifestação na praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Além da missa de sétimo dia em memória de Luiz Antônio, artistas, intelectuais e nem artistas nem intelectuais, mas apenas pessoas preocupadas com a justiça, pediam providências à polícia contra o assassinato, entre 1984 e 1987, de cerca de 300 homossexuais no país. Sob o sol de quase quarenta graus, muita gente chorava.

O mais irônico era lembrar, naquela pracinha de Ipanema, de 15 ou 20 anos atrás, como aquele espaço tomado por centenas de pessoas (algumas delas estavam lá) coloridas e cheias de vida, acreditando nos novos tempos de paz e amor. Cabeça baixa, a gente lembrava. E nem Chico e Caetano cantando, nem Fernanda Montenegro recitando linduras de Adélia Prado, nem a dignidade de Marieta Severo, nem mesmo o sol, o céu azul de verão, nem mesmo a enorme ciranda da multidão cantando de mãos dadas Aquarela do Brasil ou a chuva de papel picado dos edifícios na Visconde de Pirajá eram capazes de esconder que o horror está solto na cidade do Rio de Janeiro e no Brasil. Aos gritos ou em silêncio, pediam-se providências para todos esses crimes com características semelhantes (cordas, facadas e asfixia) demais para serem mera coincidência.

Voltei para o microcomputador de Pedro disposto a manter o mundo real à distância, pelo menos até terminar nosso trabalho. E consegui. Caminhar de tardezinha na praia, ao mesmo tempo em que trazia de volta aqueles versos assustados de Cacaso, trazia também os de Adélia, que Fernanda Montengro disse na praça: "A Vida é tão bonita/ basta um beijo/ e o universo se recompõe/ uma necessidade cósmica nos protege". Pois - eu repetia olhando o horizonte do mar - o Senhor não há de abandonar quem, nestes tempos, ainda ousar o beijo e quiser beber dessa beleza da vida. A necessidade é cósmica/ e nos protege. Mas, entre as iluminações de fé, voltavam também, obsessivos, aqueles quatro versos de Cacaso e seu clima de desamparo. E, agora, o que vai acontecer?

Dia de voltar, no aeroporto, comprei uma revista. Lá estava: dias antes, Cacaso tinha morrido de um enfarte fulminante, e eu nem sabia. Então retomar São Paulo, dura sampa estranhamente deserta, as chuvas de verão, certos dias como estar dentro de um oco cheio de espinhos, depois a morte de Henfil, com todo o horror voltando à tona. No caderno Idéias do Jornal do Brasil, no último sábado, numa matéria chamada Nós Que Nos Amávamos Tanto, Wilson Coutinho, Zuenir Ventura e Tárik de Souza fazem um balanço melancólico da geração que viveu aqueles anos dourados de 68. E agora tenta seguir em frente, entre Aids, assassinatos, suicídios, mortes precoces, secas desilusões e escassas esperanças.

Não sei dizer nada cegamente luminoso para encerrar. Perdoe eu não voltar como quem traz um sorriso nos lábios e flores e frutas nas mãos. Mas imagino que você sinta algo semelhantes àquele susto manso do poema do Cacaso e acho que sempre nos podemos olhar nos olhos ao perguntar: "É risonho o nosso futuro?" Então, mesmo sem convicção nem certeza, responder que sim, que sim, que sim. Porque não há de ser inútil, mente.
                  
                            Caderno 2, OESP, 13 de janeiro de 1988