terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Nelson Rodrigues: O sol sobre o pântano

É bem curiosa essa "geral nos astros" que presidiram o nascimento de Nelson Rodrigues. O texto representa um lado nem tão conhecido de Caio F.: o astrólogo. E para quem quiser mais sobre Caio F. e os astros , Amanda Costa escreveu o livro 360 Graus - Inventário Astrológico Sobre Caio Fernando Abreu.


                 Tarado, devasso, cínico, pornográfico. E sobretudo, genial. Eterno como um                             clássico grego, Nelson Rodrigues e sua obra pairam como anjos malditos 
                     sobre o teatro brasileiro. Para o leitor de A-Z, CAIO FERNANDO ABREU 
              dá uma geral nos astros que presidiram o nascimento do nosso maior dramaturgo.

Ele dizia: “Meus dramas são como a luz cruel do sol caindo sobre um pântano”. E são. Imagine as sombras úmidas de um terreno sombrio, uma terra encharcada onde vermes se retorcem e répteis se enroscam nos troncos de raízes escuras, exposto feito nervos, feridas. Imagine o ar vicioso, espesso, desse terreno onde ninguém pisa. Sinta esse cheiro insuportável de matéria ainda viva, mas em constante processo de decomposição. Relegada para sempre às sombras, esta paisagem pode até ter certa beleza. A beleza maldita do lado oculto, do lado contaminado de todas as coisas – aquele, onde autores como Jean Genet ou Tennessee Williams foram buscar suas histórias. Mas iluminada pela luz do sol – a luz da saúde, da vitalidade – ela se revela em todo o seu horror. O pântano é a alma humana, seus desejos mais fundos. A luz do sol, a palavra de Nelson Rodrigues, que foi capaz de dar forma a essas sombras que, sem ele, permaneceriam para sempre no escuro.

Darlene Glória, a Geni de Toda Nudez Será Castigada
Os pântanos de Nelson já fascinaram muita gente, já passaram por muitas interpretações e visões. Das mais inspiradas, como as de Antunes Filho, principalmente em seu último espetáculo, Paraíso Zona Norte, com duas peças de Nelson (A Falecida e Os Sete Gatinhos), às mais grossas – Como a versão cinematográfica de Brás Chediak para Bonitinha, Mas Ordinária. Mas o cinema também soube acertar a mão com ele: foi de sua obra que Arnaldo Jabor retirou pelo menos duas obras-primas – O Casamento, de um de seus romances, e Toda Nudez Será Castigada, talvez sua peça teatral mais conhecida. Quem esquecerá a voz rouca de Darlene Glória como a prostituta Geni, ofegando numa fita cassete: “Herculano, aqui quem te fala é uma morta!”? O falecido Leon Hirschman realizou uma bela versão, no cinema, de A Falecida; Nelson Pereira dos Santos foi capaz de encarar O Boca de Ouro, lá pelo começo dos anos 60, e até Bruno Barreto, muito coerentemente seduzido pela “breguice” de Nelson (não esquecer que Bruno fez o rodrigueano Romance da Empregada). Sábato Magaldi dedicou-lhe um belo livro, e Luiz Arthur Nunes, prêmio Moliére de melhor autor em 1989, debruçou-se sobre Nelson para escrever sua tese de mestrado para a universidade de Nova York. E não é o Neville de Almeida que está refilmando O Boca de Ouro, depois de ter feito uma versão escandalosa – o preferido de Gramado retirou-se furioso do cinema durante a exibição no festival, há alguns anos – de Os Sete Gatinhos?

Como nas pixações dos muros sobre Elis Regina ou John Lennon, Nelson Rodrigues vive. Estranhamente. Porque, pela lógica, deveria estar superado um autor que teve seu primeiro momento em 28 de dezembro de 1943, com a estreia de Vestido de Noiva dirigida por Ziembinski, no Rio de Janeiro, e que escreveu a maior parte de sua obra durante os anos 50 e 60. Muita água rolou do Oiapoque ao Chuí: o Brasil se industrializou, veio 64, surgiram e sumiram os hippies; os punks chegaram, com os dentes arreganhados, a devastação ecológica e o vírus da Aids. O pântano da obra de Nelson Rodrigues sobreviveu a tudo. Talvez – ou certamente – porque nele estão concentradas as forças mais incontroláveis, e permanentes, do inconsciente humano. Atávicas, arquetípicas. Além de qualquer circunstância histórica.

Nesse sentido, Nelson Rodrigues deixou no teatro brasileiro aquele mesmo tipo de marca que Guimarães Rosa e Clarice Lispector deixaram na literatura. Pode-se falar em antes e depois deles. Pode-se, não: deve-se. E assim como é difícil lembrar o nome de um escritor contemporâneo do porte de Rosa ou Clarice, mais difícil é lembrar um dramaturgo como ele. Apesar da geração de 68, Antonio Bivar, Isabel Câmara, Zé Vicente, Leilah Assunção, ou dos mais recentes (e excelentíssimos) Naum Alves de Souza, Maria Adelaide Amaral, Mário Prata, Nelson paira. Eterno como um clássico grego.

MUITO VIRGEM
Como leitor apaixonado, principalmente por seus diálogos teatrais e sua pontuação psicológica, sincopada, sempre me perguntei porque essa força, essa magia. Sem instrumental teórico para analisá-lo, mas com uma boa dose de paixão, alguma intuição e – suponho – um bom conhecimento astrológico, me ocorreu esta ousadia: como seria o mapa astral de Nelson Rodrigues? Descobri algumas coisas bastante interessantes que, sem a pretensão de revelar algo de extraordinário, imagino que podem contribuir para alargar o conhecimento desse homem fascinante.

Nelson Rodrigues, filho do jornalista Mário Rodrigues, nasceu em Recife, Pernambuco, em 23 de agosto de 1912. Não se conhece, e dificilmente se conhecerá, sua hora de nascimento. O que torna impossível um cálculo exato do mapa e impede a localização do signo Ascendente. Pela paixão, e pela impiedade, seria Escorpião? Ou Aquário, pela carga de transgressão e originalidade que jogou em seu trabalho? Difícil saber. De qualquer forma, apenas com a data de nascimento foi possível descobrir algumas curiosidades.

Silene e as irmãs: Os Sete Gatinhos
Num primeiro momento, o que mais chama a atenção nesse esboço do mapa de Nelson é a concentração de planetas em Virgem – signo da literatura, do espírito crítico às vezes tão exagerado que pode passar por crueldade ou frieza. Em Virgem, no grau zero, Nelson tinha o Sol, a 12 graus Vênus e a 23, Marte. Sexto signo do zodíaco, Virgem forma um eixo carmático com Peixes, o décimo-segundo. Esse eixo Virgem-Peixes proporciona aos que o têm muito forte no mapa um talento especial para contemplar – e para compreender – os grandes sofrimentos de toda a humanidade. Crítico – como são os virginianos – e impiedosos, com três planetas ali. Nelson tinha também (e isso é bastante típico de Virgem) uma preocupação quase maníaca com a saúde (os virginianos são grandes hipocondríacos), a limpeza, a pura. Não o conheci pessoalmente, e é difícil dizer como isso aparecia em seu cotidiano. Mas essa preocupação é óbvia em sua obra. Por exemplo, em Os Sete Gatinhos, todas as irmãs se prostituem para assegurar a integridade e a pureza de Silene. Que acaba por revelar-se, também uma pecadora.

UM TRISTE
Fernanda Montenegro, a Zulmira de A Falecida
Vênus em Virgem, no mapa de Nelson, e na conjunção de Marte, permitia-lhe uma perfeita integração entre seus lados feminino e masculino, entre animas e animus. Mas toda a afetividade e capacidade para o prazer, representada por Vênus, e todo o impulso para a ação (inclusive o erótico), representado por Marte, estão em Virgem, signo frio, contido, obcecado pela castidade. Vênus em queda em Virgem, junto a Marte, assinalam os grandes moralistas e, paradoxalemnte, tambén os grandes sensuais. Ao mesmo tempo, Vênus forma uma quadratura – ângulo tenso de 90 graus – entre Vênus e Júpiter, que estava em Sagitário no dia do nascimento de Nelson, portanto dignificado, pois é o próprio regente de Sagitário. Júpiter em Sagitário dava-lhe uma fortíssima intuição do que era ou não justo, e também – outra vez – talento literário. Mas a quadratura com Vênus também o tornava um exagerado. Exagerado na crítica (Vênus em Virgem), exagerado na impiedade (Júpiter em Sagitário) – sem esquecer também que Sagitário é o signo do humor, e Júpiter nessa posição geralmente dá um requintadíssimos senso de humor. Nelson, sem dúvida, o possuia. Humor negro (a quadratura de Vênus), sarcástico (a quadratura com o ferino Virgem). Além disso, Júpiter em Sagitário formava uma oposição – ângulo tenso de cerca de 180 graus – entre Jùpiter, o expansivo, e Saturno (a 3 graus de Gêmeos), a consolidação, as raízes. Em suas peças, é muito claro o conflito entre o mundo reduzido, fechado, sufocado de (Saturno) e os grandes sonhos (Júpiter). A Zulmira de A Falecida, para redimir uma vida mesquinha (Saturno) trama um enterro glorioso, de matar de inveja os vizinhos (Júpiter).

“Eu sou um triste”, afirmava Nelson Rodrigues. E era verdade. Em seu mapa, o Saturno em Gêmeos forma uma quadratura muito próxima de seu sol em Virgem. Essa posição traz sempre uma sensação íntima de fracasso, inibição (Saturno) para expressar os sentimentos mais vitais (o Sol) e uma visão geralmente sombria da vida. Talvez nesse aspecto – que é também um aspecto literário: Saturno está em Gêmeos, o Sol em Virgem, ambos signos regidos por Mercúrio, planeta da palavra, da comunicação, do dom de expressão verbal – encontre-se, nitidamente, o conflito entre o Sol e o pântano a que o próprio Nelson se referia para definir a sua própria obra. Seu Sol em Virgem, criticamente, iluminava os pantanais de Saturno em Gêmeos.

Mas há também, além dos desafios e conflitos, aspectos fluentes e reveladores nesse mapa. Uma conjunção muito próxima entre o Sol e Mercúrio (a 28 graus de Leão) dava a Nelson uma extraordinária inteligência. Seu sol em Virgem, a capacidade crítica e analítica; seu Mercúrio em Leão, signo do Sol, a capacidade de iluminar com a palavra tudo aquilo sobre o que falava ou escrevia. E não foi outra coisa que ele fez em toda a sua obra, jogando luz sobre os porões. Não devemos esquecer também que Leão é o signo da realeza: com Mercúrio em Leão, a palavra de Nelson Rodrigues era soberana.

PERDÃO ENCABULADO
Há pelo menos mais três aspectos muito reveladores nesse mapa: dois sêxtis – ângulos fluentes de cerca de 60 graus – entre Plutão, o planeta das lamas profundas do inconsciente, do magma vulcânico da mente – e Mercúrio, e Plutão e Sol. Com a palavra de Mercúrio, e com a luz do Sol, Nelson era capaz de formular e iluminar todos os porões do inconsciente humano. Um outro aspecto no mínimo curioso é o sêxtil quase exato entre Netuno, planeta da iluminação, da inspiração e da espiritualidade, em Leão, com Marte em Virgem. A astróloga Isabel Hickey chamou os possuidores desse aspecto de “idealistas práticos”, e a Astrologia tradicionalmente reconhece nele os grandes imaginativos, capazes de filtrar toda a violência que sejam capazes de imaginar através da criação. Claro, não? Nelson nunca praticou todas as taras, incestos e loucuras que povoam sua obra: ele as escreveu.

Cleyde Yaconis em Toda Nudez: A primeira Geni
Finalizando: no momento em que nasceu Nelson Rodrigues, a Lua passava por Capricórnio. Isto é, a Lua, planeta (ou luminar) da emoção, regente de Câncer, estava em Capricórnio, seu signo oposto. Portanto, enfraquecida. O sentimentalismo não se mostrava em Nelson – ou em sua obra. Ao invés de doce e mansa, como seria em Câncer, sua Lua era dura e prudente, em Capricórnio. Mas o que poderia passar como frieza, na verdade era um profundo encabulamento de mostrar os próprios sentimentos. Ou alguém duvidaria que, mesmo com seus finais trágicos, Nelson no fundo ama e perdoa a Zulmira de A Falecida, a Silene anjo-caído de Os Sete Gatinhos ou a infeliz suicida Geni, em Toda Nudez?

Uma profunda piedade pelo ser humano. Nisso, quem sabe, pode ser resumida a obra de Nelson Rodrigues. Uma piedade crítica (tantos planetas em Virgem), que pune ao invés de acariciar (a Lua em Capricórnio), mas verdadeira. Cruel? Não. Ele dizia também: “Sou uma alma da belle époque. Não gosto da minha época, não tenho afinidade com ela. A meu ver, estamos assistindo ao fracasso do ser humano. Isso não quer dizer que mais adiante ele não se levante, mas no momento o ser humano está de quatro.”


Imaginem se, em 1989, ele ainda estivesse vivo... 

                                                   Revista A-Z, novembro de 1989

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Água limpa

Caio F. escrevendo sobre escritores que ele adorava. Agora é Adélia Prado.  Em posts anteriores, você vai encontrar resenhas dele sobre livros de Gabriel Garcia Marquez, Patricia Highsmith, Virginia Woolf, Julio Cortázar, Zelda e Scott Fitzgerald, Simone Beauvoir, Carlos Castaneda.e Lya Luft. Boa Leitura!



Quando lançou seu primeiro livro, Bagagem, em 1975 (para muitos ano-marco daquele misterioso e fugaz boom da literatura brasileira), a mineira Adélia Prado já avisava: “Não sou Cornélia, mãe dos Gracos: sou Adélia, mulher do povo”. No livro seguinte, O Coração Disparado (1977) – e neste também –, ela continuava inteiramente fiel à sua primeira imagem. Os louros depositados sobre seu trabalho, incensado pelas coberturas do sul-maravilhas, não modificaram sua visão de mundo, onde continua não havendo lugar para veludos nem brocados.

A linguagem de Adélia é feita de chitas, couro cru e barro – esse barro dos sertões mineiros, já manipulado literariamente por Guimarães Rosa (de quem toma uma citação para abrir seu livro) e Carlos Drummond de Andrade (a quem se refere na última frase). Mas que seja tosca ou vulgar, isso nunca. Adélia se explica assim: “Gosto de ir até no fundo da cisterna e revirar o lodo, tirar ele com a mão, me emporcalhar bastante, só pra depois ver a água minando clarinha de novo”. E é dessa água limpa que existe atrás do barro que são feitos os textos desse livro.

FLUIR POÉTICO – Ao contrário dos dois primeiros, em Solte os Cachorros ela organizou os textos em forma de prosa. Uma prosa ritmada que se às vezes é quase ficção – como na segunda parte, Sem Enfeite Nenhum –, mais frequentemente é puro fluir poético. Que pode lembrar o Mário Quintana do Caderno H ou certas anotações de Clarice Lispector, aquele Fundo de Gaveta, de A Legião Estrangeira. Não é à toa que Affonso Romano de Sant’Anna considera Adélia “a Clarice Lispector de nossa poesia”. Em ambas, com efeito, a linguagem já veio pronta, individual, inconfundível, comprometida muito mais com a veracidade do que está sendo do que está sendo dito do que com obscuras e vazias (ou vadias?) ordenações estéticas. O que pode parecer discutível para quem acha que poesia é coisa de sala de estar, e não de cozinha, tanque ou pátio.

A impressão que a gente tem é que, ao invés de instalar-se numa aristocrática escrivaninha para “caçar” a poesia (como ela diz), Adélia ronda pela casa de caderno em punho, observando “o ciscadinho do pardal em cima do muro”, “a horta de couve e outros pequenos luxos”, remexendo nos porquês de “cada cicatriz de minha alma circuncidada”, lembrando “a bela mancha horrorosa de quando eu tinha dez anos e saí apavorada: mãe, mãe, será o tomatinho azedo que eu comi demais?”

SUTIÃ GRENÁ – Invadem o livro as velhas obsessões de Adélia: os cachorros com fome no quintal, a paixão por Castro Alves (“Onde está Castro Alves que ia fundar comigo uma dinastia e morreu antes, de gula e pressa?”), as beatas de Divinópolis, cidade mineira onde ela vive, a presença (incômoda, para uns) constante de São Francisco de Assis e Deus. Mas de dona-de-casa católica Adélia se transforma, e é “de novo uma mulher com sutiã grená, polindo os dentes sem pressa e desenhando a boca em coração”. É então que o erotismo explode. Isso acontece na terceira parte do livro, Afresco. Vêm as declarações de amor para Américo (“...por você faço doce de leite, corto em pequenos losangos..”), Expedito, Antônio, Francisco ou José (“Teu paletó de veludo cobre teu braço peludo”).

Em todos os delírios, místicos ou carnais, sempre o mesmo gosto de feijão ou couve-flor. E vida crua, sem disfarces. Doce e violenta, sagrada e cotidiana, Adélia Prado vai construindo uma obra importante por si mesma e pela maneira como retrata um Brasil quase extinto. Se fala bobagens? Ela sabe: “A poesia existe ou é falácia, pruridos, psicologismos? Se assim for e eu descobrir, me epitafiem: desgraçada, fora da graça, bandida”. Lendo-a, a sensação é de que a poesia existe,

                                                   Veja, 23 de Maio de 1979

domingo, 22 de setembro de 2013

Bocejo do bruxo

Caio F. escrevendo sobre escritores que ele adorava. Agora é o mexicano Carlos Castaneda. Em posts anteriores, você vai encontrar resenhas dele sobre livros de Gabriel Garcia Marquez, Patricia Highsmith, Virginia Woolf, Julio Cortázar, Zelda e Scott Fitzgerald, Simone Beauvoir e Lya Luft. Boa Leitura!

                                    Bocejo do Bruxo

Há quase dez anos, terminado o sonho hippie, a voz do antropólogo Carlos Castaneda foi como uma massagem revitalizante nas cabeças fatigadas por drogas, à beira da incerteza dos anos 70. Os ensinamentos do velho índio yaqui Don Juan pareciam acenar com a possibilidade de uma outra viagem, menos feérica talvez que as lisérgicas, mas igualmente estimulante na maneira como tentava interpretar os diversos níveis da realidade, nas páginas de A Erva do Diabo.

Guru transitório de uma geração demasiado volúvel (ou apenas desesperada?) na forma como troca rápida e sofregamente de ídolos, nos livros posteriores Castaneda não cumpriu as expectativas. Os claros ensinamentos de Don Juan, curiosamente impregnados da simplicidade complexa do zen-budismo, complicaram-se ao infinito.


Como filósofo, ou no mínimo porta-voz do filósofo Don Juan, Castaneda tornou-se decepcionante. E, como contador de histórias, incorreu num pecado mortal: a chatice indisfarçável.

Infelizmente, O Presente da Águia não foge à regra. Declarando-se muito distante do seu ponto de origem como homem de padrão ocidental ou mesmo como antropólogo, Castaneda faz questão de esclarecer que “este trabalho não é uma ficção”. Não sendo ficção, nem antropologia, nem filosofia, torna-se difícil e monótono acompanhar as confusas andanças do autor em companhia de outros nove aprendizes de feiticeiro. Os iniciados, quem sabe, talvez encontrem algum prazer, mas quem estiver em busca de qualquer coisa aplicável ao mísero cotidiano dificilmente escapará a um melancólico sentimento de frustração. Ou a um sonoro bocejo de puro tédio.
                                         
                                     Veja, 21 de Outubro de 1981


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Cenas na Beira de um abismo


                                                        Na manhã do Rio, crescia
                                                        o tumulto. Era o povo ferido
                                                        exigindo seus direitos

Exterior Dia Rio de Janeiro. Onze horas da manhã de terça-feira. 30 de junho de 1’987. Manhã de céu alucinadamente carioca. Azul, Azul. Névoa transparente sobre a baía, o mar e os morros, que vai se diluindo aos poucos. A névoa vira nuvem, a nuvem vira azul. Ar tão limpo que quase dói nos pulmões paulistanos. Na janela do carro, pelo aterro, uma velha letra do Caetano volta como trilha sonora: “Olhos abertos em verde sobre o espaço do aterro, sobre o espaço, sobre o mar, o mar vai longe do Flamengo o céu vai longe e suspenso”.

Interior Dia Quase meio-dia. Biblioteca Nacional, Cinelândia. Cheiro gostoso de livro, paz. Estudantes, professoras. Tudo quieto, organizado. Estou debruçado com Lucia Villares sobre microfilmes de jornais do século passado. Dezesseis de julho de 1889, o dia em que tentaram matar Dom Pedro II. Um ruído – buzinas, gritos –, vindo de fora, entra pelas janelas abertas, misturado ao azul, e começa a crescer. Comento “Eita Brasil biblioteca precisa de silêncio e toda essa zona lá fora...” Algumas pessoas começam a levantar das mesas, espiam pelas janelas. Deixo de lado os microfilmes, resolvo também dar a minha espiadinha. Me debruço numa janela. E vejo.

Exterior Dia Cinelândia, Avenida Rio Branco. Teatro Municipal. Cerca de dez pessoas estão paradas em frente a um ônibus. Gritam coisas tipo “Abaixo o aumento!”. O ônibus não pode seguir em frente. Os ônibus e carros que estão atrás, também não. O engarrafamento aumento. Lembro de ter lido nos jornais que o preço das passagens de ônibus foi aumentado. É que pensei assim – ué, não estava tudo congelado? O tumulto cresce.

Começa a juntar mais povo. Povo – povo: trabalhadores do Brasil – eu, você, nós. Estão furiosos. De longe, pode-se ler no rosto deles que estão cansados, com fome, sem dinheiro. O grupo duplica, quadriplica.

Interior Dia No grande salão da Biblioteca, não há ninguém nas mesas. Todos na janela olham o povo, que aumenta e grita e aumenta e grita mais. Impossível concentrar-se. O barulho de coisa viva, tensa, prestes a explodir, impede qualquer concentração.

Exterior Dia O povo que estava dentro dos ônibus engarrafados desceu para a rua, juntou-se ao outro povo. Agora sacodem violentamente os ônibus. Chegam alguns carros de polícia. Sirenes uivam. O povo joga pedras e vaia. Saia-justa a polícia tira o time. Ou finge que tira pela janela de um carro, o policial joga no ar algo parecido com um foguete de São João. Quando o foguete bate no asfalto, ouve-se um ruído igual ao de um tiro. Fumaça, gente com as mãos nos olhos, gás lacrimogêneo. Da janela, dá quase para ouvir, por trás dos gritos, o coração das pessoas batendo forte. Inclusive o meu. E o coração do povo, mais forte ainda. Exausto, humilhado, atrevido, corajoso.

Interior Dia As moças da Biblioteca resolvem fechar o prédio. Estão apavoradas. As pessoas se entreolham: medo. Com as janelas fechadas, entre os livros, o rugido do povo que chega lá de fora fica ainda mais assustador. Um funcionários nos leva pelos corredores até uma saída lateral. Saída discreta pelos fundos.

Exterior Dia Zona na rua. Praça de guerra. Gente caminha apressada. Polícia chegando. Bancos e lojas fecham. Convido Lúcia: “vamos dar o fora já daqui?”. Vamos para o Largo do Machado. Marrocos perde. O povo brasileiro nunca esteve tão pobre, tão feio, tão triste. E com tanto ódio, com toda a razão. Congela e corta num mendigo.

Interior Noite São Paulo, três dias depois. Meu quarto. Não consigo dormir. Penso no que vi, penso no Brasil. Abro o caderno Ideias do JB. Uma pequena entrevista do Mario Quintana me alivia a alma: “O Brasil não pode cair no abismo porque ele é maior do que o abismo”. Amém, velho, bom e sábio tio Mario. Deus te ouça

                              OESP – Caderno 2, 8 de julho de 1987

E aqui, Paisagem Útil, a canção do Caetano que Caio F. cita lá no começo


segunda-feira, 29 de julho de 2013

Livro das sobras


Um horror: Pedro, o Grande, mandou decapitar o amante de sua mulher, colocou a cabeça numa jarra com álcool e obrigou-a a conservar o macabro troféu no quarto de dormir. Uma maravilha: o corpo humano é formado por cerca de 60 bilhões de células, cada uma delas com 10.000 vezes mais moléculas que o número de estrelas da via-láctea.

Com 3.000 informações desse tipo, o escritor de ficção científica Isaac Asimov recheia as alentadas e deliciosas páginas deste Livro dos Fatos. Abandonando as histórias imaginárias para seguir uma observação de Ivan Pavlov (“Conheça, compare, colete os fatos”), ele e mais dezesseis colaboradores selecionaram dezenas de milhares de fatos curiosos, classificando-os em mais de setenta assuntos diferentes, de História, Matemática, Literatura, Astronomia e Física, Política, Teatro. Assim, em Desumanidades do Homem, pode-se recolher um dado amargo: nos dois últimos séculos tem sido exterminada a média de uma espécie animal por ano.
O enterro de Mozart

Informativo, mas também divertido, é um livro sob medida para apreciadores daquele tipo de seção Você Sabia Que?, de almanaques ou jornais provincianos. Ou para curiosos em geral (e quem não é?), capazes de interessar-se tanto por inutilidades como o número de arrebites da torre Eiffel (2,5 milhões), como por melancolias sobre o enterro de Mozart: apenas uma pessoa acompanhou o caixão, jogado na vala comum. Alguém se importa com o costume do povo tinguiano, das Filipinas, de beijar encostando os lábios na face da outra pessoa, inspirando rapidamente?

A carta de Marx
Mais saborosas que os dados meramente estatísticos, são certas revelações sobre excentricidades no comportamento de monstros sagrados da cultura ocidental. Uma delas: o austero dr. Sigmund Freud viajava sempre acompanhado, pois era inteiramente incapaz de conseguir ler o horário dos trens. Outras, mais chocantes: D. H. Lawrence, autor do escandaloso O Amante de Lady Chaterley, tinha a irrefreável mania de subir em amoreiras, completamente nu, enquanto Mata Hari encomendou um vestido especial para o dia de seu fuzilamento. Entre as demências, como o lema de Henry Ford, em 1921 – “a vaca deve ser eliminada” –, disposto a implantar nos Estados Unidos exclusivamente leite sintético, e a estranheza de uma carta de Marx (Karl, não Groucho) a Engels (“Não confio em nenhum russo. Sempre que um russo consegue insinuar-se, abrem-se as portas do inferno”). Asimov vai semeando informações talvez dispensáveis mas nem por isso menos gostosas. O resultado final é uma exuberante colagem de surpresas.

Rimbaud: caixeiro viajante
Às vezes, ele perde a originalidade ao incluir fatos excessivamente conhecidos – a surdez de Beethoven, ou a ruptura de Rimbaud com a vida literária, aos 19 anos, para ser caixeiro viajante. Mas logo recupera-se, ao contar que a mulher que mais vezes saiu na capa da revista Time (dez vezes) foi... a Virgem Maria. A inesperada decepção das relativamente poucas informações sobre o universo (apenas quatro páginas) é compensada, por exemplo, pela abundância de tópicos sobre Medicina. O preço de tudo isso é um tanto salgado, mas os curiosos certamente darão um jeito. Depois, poderão deliciar-se lendo esses fatos numa repousante cadeira de balanço – que, a propósito, foi inventada por Benjamin Franklin...


                        Veja, 22 de julho, 1981 (Caio F. tinha 32 anos)

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Pra mim, pra você também: que delícia!


Meus amigos darks vão detestar: nada mais clean que Chico e Caetano. Ninguém agride ninguém, ninguém cospe em ninguém, ninguém bate em ninguém. Ninguém fala palavrão. Quer dizer, fala-se muito merda, verdade. Mas com aquele espírito da coisa que o Coriolano não pegou: gíria teatral para desejar boa-sorte-acé-tudo-de-bom-sucesso-felicidade – esses lances altíssimo alto astral. Darkmente fora de moda.

Confesso que temi: seria uma fusão daquela bagunça esquerdizóide de O Fino da Bossa com a pétrea algidez do Globo de Ouro? Com sorte, pitadas de Divino, Maravilhoso e, muito azar, aqueles climas Brian de Palma de festival. Ledo e nagle engano: tudo simplezinho, coisa de comadre mesmo. De saída, cantam Cotidiano e Você Não Entende Nada. Picadinhas maliciosas, meneios de ombros, ondular de quadris. Surpresa: Chico, todo de branco, mudou muito. Está mais soltinho que Caetano, gente!

Luz linda. Palco limpinho, reflexos vezenquando verdes, vezenquando azuis ao fundo. Corta para a plateia – mais seleta? Impossível – caras rápidas. Todas as enfermeiras: Elizeth Cardoso e Paulo Ricardo do RPM, Beth Carvalho e Nelsinho Motta, Scarlet Moon e Guilherme Araújo. Não necessariamente lado a lado, lógico. Caetano canta Milagre do Povo, aquela da minissérie Tenda dos Milagres: mamãe Oxum encosta – ora yê yê ô –, e tornará a encostar antes da entrada naturalmente triunfal de Bethânia. Até lá, paciência, é preciso sobreviver a Luis Caldas, aquele moço do Fricote. Sem querer, juro, lembro das nigrinhas que Odavlas Petti falou e Bivar imortalizou... Se Elza Soares é a nossa Tina Turner, Luis Caldas sem dúvida é o nosso Prince! Com a vantagem de usar brincos muito, mas muito maiores mesmo.

Chega o melhor: Rita Lee e I Like You Very Much, sucesso de Carmem Miranda, vestida de Alice no País das Maravilhas, mascando chicletes, lacinho na cabeça e tudo. Você não vai acreditar, mas ela está a cara do Patricio Bisso. Melhor que nunca. Mas Oxum torna a possuir Caetano. Ele saúda Mãe Menininha, o que significa: Bethânia vem aí. Pulseira, pulseira, pulseiras. E pulseiras. Faz tudo que tem direito: joga a cabeça para trás, levanta o braço esquerdo com o microfone, junto à boca, enquanto lança no ar o braço direito, pesado de... pulseiras. Quem tem menos de 35 anos vai querer dar tiro. Então pinta o número forte. Rita volta, de calças, e com Bethânia, felinamente jogadas ao chão, fazem um número de sapateado implícito. A plateia ergue-se em ímpeto incontido.

Vou ficando cada vez mais feliz e mais fútil, até o grand-finale. Todos juntos, cantando Merda, a plenos pulmões. A última imagem que guardo é a cara linda de Sônia Braga na plateia, deliciada, fazendo coro: “Merda para você, desejo merda / merda para você também / Diga merda e tudo bem / Merda toda noite, sempre, amém”. Pra mim, pra você também. Pena que você não vai poder ver. Mas deixa estar, Jesuzinho castiga. Ou tarda, mas não falha. Próxima sexta, tem Part II. Se aquelas najas censórias deixarem...


                          OESP, Caderno 2, sexta-feira, 25 de abril de 1986

E no vídeo abaixo... "Então pinta o número forte. Rita volta, de calças, e com Bethânia, felinamente jogadas ao chão, fazem um número de sapateado implícito. A plateia ergue-se em ímpeto incontido"


segunda-feira, 27 de maio de 2013

Poesia Mórbida

Caio F. escrevendo sobre escritores que ele adorava. Agora é Lya Luft, que foi amiga dele. Em posts anteriores, você vai encontrar Gabriel, Gárcía Márquez, Patricia Highsmith, Virginia Woolf, Julio Cortázar, Zelda e Scott Fitzgerald e Simone de Beauvoir. Abaixo,uma resenha do Caio sobre A Asa Esquerda do Anjo, o segundo livro de Lya Luft. Boa leitura!


O sucesso num livro de estreia é sempre uma faca de dois gumes, na medida em que exagera expectativas que nem sempre o autor é capaz de cumprir. Não foi esse o caso da gaúcha Lya Luft. Cronista e poeta bissexta, tradutora respeitada, ela estreou ano passado com a ótima novela As Parceiras.

Em A Asa Esquerda do Anjo, Lya Luft viaja novamente pelo espaço que lhe é familiar: o universo feminino invadido por temores e preconceitos esterilizantes. No meio decadente de tios alcoólatras e tias loucas, cheio de vagas emoções incestuosas, definem-se duas figuras amadas por Gisela: a mãe e a prima Anemarie. Obcecada pelo pecado e pela morte, a personagem central de Lya escolhe deliberadamente a virgindade e a solidão. A autora não tem parentesco em nossa literatura: suas histórias, de uma poesia mórbida, desvendam um submundo emocional em que poucos se atreveram a penetrar.
                        
                                      Veja, 3 de Junho, 1981

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Belíssima e dolorosa secura



                                                        A Hora da Estrela
                                                 é como Clarice Lispector,
                                                      inteligente e sensível

Era tudo mentira: a infilmável (e para muita gente, ilegível também) Clarice Lispector era filmável, sim. E que belo filme, capaz de ganhar 12 prêmios no Festival de Brasília do ano passado, outros em Berlim e outros em Paris. Tudo isso para uma história onde pouco ou nada acontece, como pouco ou nada acontece na vida de sua personagem, a nordestina Macabéa, transplantada para a cidade grande.

Por trás dos letreiros de apresentação, ouvem-se os sinais e as informações “culturais” da Rádio Relógio, que Macabéa ouve ininterruptamente. Depois, ela bate à máquina no escritório. Tecla por tecla, um dedo só. O ritmo monocórdico, mas girando em profundidade, como um parafuso, da prosa de Clarice Lispector, transparece nas imagens. Decidida, Suzana Amaral envereda por uma narrativa lenta, intimista, quase muda. Como Clarice, na sua inteligência, talento e sensibilidade, fazendo o esforço de tentar compreender uma personagem desinteligente, sem talento algum e grossa sensibilidade. O resultado é pleno de compreensão humana: aquela compreensão que, às vezes, acima das ideologias, os mais bem-dotados intelectual, estética ou/e economicamente conseguem ter dessa extensa legião de deserdados que forma o povo brasileiro.

E Macabéa é a cara do povo brasileiro, no seu sem-gracismo, na falta de futuro, no passado tragicamente vago e no presente quase inexistente. O curioso é que, acusada de aristocrática e elitista, em A Hora da Estrela Clarice Lispector foi capaz de traçar um dos mais pungentes retratos do Brasil que conheço. Fiel à ideia de que cinema se faz com imagens, Suzana Amaral teve a sabedoria de retirar do texto de Clarice tudo que ele tem de metalinguagem, de autoinvestigação. E o filme é principalmente imagem: belíssimas imagens na dolorosa secura fotograda por Edgar Moura.

Talvez a diretora perca um pouco a mão no final, ao relacionar a estrela de que falava Clarice, à estrela do carro que atropela Macabéa. E na lírica corrida em câmera-lenta. Pouco importa: há muitas leituras possíveis de Clarice. A de Suzana Amaral foi inspirada. Tão inspirada que encontrou Marcélia Cartaxo para fazer Macabéa, numa atuação de tal forma identificada que é mais que uma atuação: é uma vivência. Profunda e perigosa a ponto de fazer Marcélia correr o risco de permanecer para sempre como a moça que não sabia sequer passear. Quem gosta de bons atores, vai se deliciar com José Dumonte (Olímpio), Tamara Taxman (a biscatona Glória) e Fernanda Montenegro (inesquecível como a cartomante). E quem sabe olhar com olhos diferentes a multidão feia que cruza diariamente o Viaduto do Chá. Porque A Hora da Estrela acontece toda hora, ali, na avenida São João.
            
                         OESP, Caderno 2, quarta-feira, 23 de abril de 1986


Em 1984, Maria Bethânia fez A Hora da Estrela, show baseado no livro de Clarice, inclusive com trechos de falas dos personagens. No vídeo abaixo, ela fala do espetáculo para Roberto D'Àvila. Trechos de cenas de músicas, inclusive A Hora da Estrela de Cinema, que Caetano Veloso compôs especialmente para o show. A canção está na metade (7:00) e no cenário tem uma foto imensa de Clarice Lispector.



Aqui, o  trailer do filme A Hora da Estrela


Aqui, A Hora da Estrela - Filme Completo


sexta-feira, 19 de abril de 2013

Soltando as frangas



O escritor e jornalista gaúcho Caio Fernando Abreu acaba de lançar seu mais novo livro, As Frangas (Editora Globo, 48 páginas), sua primeira incursão à literatura infantil, com delicadas e coloridíssimas ilustrações de Rui de Oliveira. O livrinho revela uma faceta desconhecida do consagrado autor de Morangos Mofados e Os Dragões Não Conhecem o Paraíso: sua obsessão por esses pequenos e ciscadores animais penosos – uma das boas lembranças da infância passada no interior do Rio Grande do Sul. Obsessão compartilhada com a cultuada amiga Clarice Lispector, uma referência constante.
Aos 40 anos e sem filhos, Caio – radicado em São Paulo – se diz um otimista, diferente da imagem do escritor que cria personagens em situações limites, de angústias e conflitos. Quem duvida que leia As Frangas. Lá, Caio conta causos de suas galinhas de estimação, num estilo coloquial, engraçado e cheio de poesia. Como sempre. Ele fala dessa sua aventura no universo infantil, de galinheiro e de coisas de adulto.

O que você acha da literatura infantil feita hoje, no Brasil?
Na verdade, conheço pouco. Tenho como parâmetro de literatura infantil o Monteiro Lobato, depois Clarice Lispector, a quem dedico o livro. Dos autores mais recentes conheço e gosto dos trabalhos de Ruth Rocha e Ana Maria Machado. Acho que a literatura é boa quando propõe uma deseducação, ou seja, quando ela não se confunde com a literatura didática ou dá lições de boas maneiras, mas sim liberta as crianças de preconceitos e coloca a vida como uma viagem interior ampla.

Por que um livro para crianças e qual o motivo da escolha das galinhas?
Não foi uma decisão ou uma vontade minha. Escrevi para mim mesmo. Há anos, comecei a ganhar galinhas de presente – de cerâmica, de madeira e de louça – e juntei-as sobre a geladeira. E veio a vontade de escrever histórias, que acabei engavetando. Há algum tempo atrás, a editora Nova Fronteira pediu algo sobre literatura infanto-juvenil e me lembrei de As Frangas, mas o projeto acabou não acontecendo. Saiu finalmente este ano, pela editora Globo. Acho a franga um bicho muito curioso, estranho como um elefante. E Clarice gostava muito de galinhas. Ela escreveu muito sobre galinhas – contos e um livro, A Vida Íntima de Laura. O adulto é um ser muito diverso para a criança. Tento colocar nas frangas defeitos e qualidades de uma pessoa. Nada de maniqueísmo. No fundo a mensagem – detesto esta palavra – do livro é simples: gente pode ser uma coisa muito gostosa.


Os críticos consideram sua literatura pessimista, triste e em As Frangas você mostra um lado poético, cheio de vida e esperança. Como você analisa isto?
No fundo sou um otimista e as pessoas que classificam minha literatura como negra não entendem que estou querendo mostrar só um dos lados da vida. Acho que as coisas podem ser simples e boas. Meu caminho como escritor é procurar isso: a limpeza e a simplicidade.

Você vê alguma semelhança estilística ou temática na literatura dos escritores da sua geração?

Sim. Inevitavelmente uma geração que viveu a pós-adolescência em 64, as mudanças da sociedade brasileira e do mundo, a construção de Brasília e a transição de um Brasil rural para um Brasil mais moderno existem algumas semelhanças. Elas aparecem na nossa literatura. Sinto uma identificação com o João Gilberto Noll – um grande amigo de faculdade – e com o Sergio Sant’Anna. Como eles, me proponho definir e retratar uma face deste país tão fragmentado e dividido.


Você é um premiado autor teatral, mas há muito tempo não escreve nenhuma peça. Você desistiu do teatro?

A última montagem de uma peça minha foi A Maldição do Vale Negro, no ano passado, como direção de Luis Artur Nunes. Inclusive ela tem duas indicações, uma para o Mambembe e outra para o prêmio Sharp. Mas não tenho mais ligação com o teatro, me envolvi muito com o cinema. Fui o roteirista do filme romance, do Sergio Bianchi, e agora trabalho no roteiro de Onde Andará Dulce Veiga?, do Guilherme de Almeida Prado. Infelizmente, o cinema no Brasil é uma das artes mais carentes. Meu projeto continua na cabeça e na máquina de escrever.


Pretende continuar com a literatura infantil?

Caso a resposta do mercado editorial seja favorável, pretendo lançar uma continuação de As Frangas. Já tenho uma na cabeça e vai se chamar As Frangas, parte II – A Missão. A missão é de resgate da Otília, a franga mais vaidosa e egoísta, que por um equívoco da editora não saiu o seu nome na contracapa.


                       Por Roni Filgueiras. Jornal do Brasil, Sábado, 29 de abril de 1989

terça-feira, 9 de abril de 2013

Ninguém canta como Olivia


                                      E ela não canta como ninguém. 
                                      Melodia Sentimental, um disco 
                                      que provoca arrepios de emoção

Você que tem bom gosto, está cansado de vulgaridade, atordoado pelo barulho, desgastado pela grosseria nossa de cada dia – pare um pouquinho. Tenho boas notícias, amigo, amiga. Passe numa loja de discos, compre Melodia Sentimental (Continental), um disco com a foto em preto e branco de uma moça linda na capa. Ela chama-se Olivia Byington, ela é muito especial. Vá para casa, desligue o telefone, não atenda a campainha, sente-se na sua poltrona preferida, sirva-se de uma bebida, acenda um cigarro (se não fumar nem beber, não é preciso: a voz dela é suficiente). Ponha o disco a tocar. E escute. Só isso. Relaxe, ouça.

Ninguém canta como Olivia Byington. Ela não canta como ninguém. No país talvez mais rico em cantoras no mundo (de Nana Caymmi a Vange Leonel, de Clementina de Jesus a Cida Moreyra, de Gal Costa a Eliete Negreiros, de Maria Bethânia a Vânia Bastos, de Nara Leão a Marina – com todos os degradées e as omissões injustas), essa menina Byington consegue a proeza de ser absolutamente ela: essa menina Olivia. De voz educadíssima, passando por um repertório de 11 músicas, tão aberto que consegue incluir do clássico Melodia Sentimental (de Villa-Lobos, letra de Dora Vasconcelos) aos vanguardistas arriguianas Carlos Sandroni/ Lu Medeiros (Secretária Eletrônica). Sem o menor solavanco. A voz cristal pura de Olivia passeia por Manuel Bandeira, Thiago de Mello (musicados por Edgar Duvivier), Fernando Pessoa, Vinicius, Geraldo Carneiro, Cacaso, Cartola, Gismonti, costurando essas disparidades com classe, delicadeza, autoridade e magia. Principalmente magia.

É música de câmara – como diz Mario de Aratanha no release. Dessas de ouvir para dentro, sozinho (a dois, no máximo), sem nenhuma interrupção capaz de quebrar o clima de encantamento criado por Olivia. Que grava desde 1978, com o surpreendente Corra o Risco, passou por um LP em Cuba (Identidad, produzido por Silvio Rodriguez), desenvolveu um trabalho com Paulo Moura, Clara Sverner, Turíbio Santos (Encontro, da Kuarup, em 84). Mas, com este Melodia Sentimental, Olivia chega à maturidade. E à humildade: ela mesma reconhece que este é como se fosse seu primeiro disco.

Não é. Seu talento incomum já teve momentos anteriores de brilho (basta lembrar Anjo Vadio, de 1978). Mas foi entre erros, pesquisas e procuras (e estudo) que ela conquistou o direito de regravar O Mundo é Um Moinho (de Cartola, com um arranjo apenas de sax de Duvivier) que torna opacas todas as gravações anteriores. Ou de chegar ao Villa-Lobos que dá título ao disco com uma pureza que dá arrepios de beleza. Voz de pássaro, brisa soprando em cortinas de seda, borboleta pousada em biscuit, renda, diamante lapidado. Acorda, urbano atormentada: vem ouvir Olivia que canta bela e branca no meio da noite escura deste país.

                       OESP – Caderno 2, 4 de junho de 1987


sexta-feira, 5 de abril de 2013

Um livro plenamente habitável

Há um conto de Clarice Lispector, não lembro o nome, em que depois de mil complicações uma menina consegue para ler Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. E lá pelas tantas, deslumbrada com o livro, ela diz: “Era um livro para viver dentro dele”. São raros os livros assim que você possa morar um pouco dentro, como uma outra vida paralela. Conheço poucos. Alguns são obras-primas, outros não, porque um livro-para-viver-dentro-dele não é necessariamente um clássico. John Fante, por exemplo, é supermemorável. Um livro assim tem qualidades meio imperceptíveis, um jeito de puxar você para dentro dele e misturar na sua própria vida. Tenho uma amiga que está morando, há meses, dentro da série Duna, de Frank Herbert. Talvez esses livros ofereçam, pura e simplesmente, aquilo que o velho Roland Barthes chamava de o prazer do texto.


Sempre achei Garcia Márquez uma delícia, antes do Nobel, desde que morei meses dentro de Cem Anos de Solidão. Anos depois, pirei muito com Crônica de Uma Morte Anunciada – li, reli, tresli e até hoje acho que talvez seja seu melhor livro. É simplesmente perfeito, só que não é um-livro-para-se-morar. Já O Amor Nos Tempos do Cólera é plenamente habitável: cheio de cheiros (já começa com um, o de amêndoas amargas, que lembra “amores contrariados”), de cores, de formas. É folhetinesco no melhor sentido: você torce, se envolve, se comove. Um certo toque folhetinesco talvez seja característica dos livros memoráveis (O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, por exemplo, ou Jane Eyre, de Charlotte Bronte): humaniza e alivia as experimentações geladas. Reconforta. Como uma chá.

Pode ser que O Amor não esteja à altura dos dois outros que citei. Mas um-livro-de-se-morar-dentro também tem essa característica: a gente não se importa nem um pouco com ele ser ou não grandioso. Mas no final de cada dia desumanizado, achei um presente poder rebater a dose diária de cinismo e atordoamento com o fiel amor de Florentino Ariza por Fermina Daza. Como quando criança mergulhava nas Mil e Uma Noites, ou naqueles Monteiros Lobatos de que Clarice falava. Para que pedir mais? Quero ser cada vez mais simples. Mais burro até. Só para sentir mais vezes esse gostinho raro: o prazer. Do texto e da vida.

                                         OESP, Caderno 2 – Domingo, 2 de novembro de 1986