quinta-feira, 15 de março de 2012

Processo de Criação - Parte final

Caio F. fotografado por Bob Wolfenson
                      
                               Terceira e última parte da entrevista  do Caio Fernando de Abreu 
                               publicada no livro Processo de Criação, de Darlene Dalto
                               (Editora Marco Zero, 1993). 



Fale mais sobre Morangos Mofados.
Morangos vendeu muito bem, teve críticas boas, ganhou muito espaço. Mas aí aconteceram duas coisas: o Luis Schwarcz, que trabalhava na Brasiliense, saiu, montou a Companhia das Letras e publicou o meu livro Os Dragões Não Conhecem o Paraíso. E pela primeira vez me deu um bom adiantamento, quer dizer, o Luis profissionalizou a coisa no país, ele me pagou para escrever Dulce Veiga e também me paga mensalmente por esse novo livro em que estou trabalhando e assim ficou mais fácil. Ao mesmo tempo, assinei um contrato com uma agente literária chamada Ray-Gude Mertin, uma senhora alemã, que mora perto de Frankfurt. Ela começou a vender os meus textos no exterior, estou em várias antologias. Dragões ela vendeu para a Inglaterra e França e Dulce Veiga para a França, Itália, Alemanha e Holanda. Eu vivo com o mínimo, não tenho ambições materiais.


Agora você é dono do seu tempo, como é que as idéias surgem?
Vou ao cinema quase todos os dias. Cinema é super “inspirador”. Por exemplo, Dulce Veiga. Você conhece um filme do Bruno Barreto chamado A Estrela Sobe, adaptado do romance de Marques Rabelo?

Sim, com a Betty Faria. 
Nesse filme a Odete Lara faz uma cantora chamada Dulce Veiga. Eu me apropriei daquela personagem e criei uma outra história. Agora para o meu livro novo, me propus uma coisa nova também. Nos Dragões tem um conto chamado Sapatinhos Vermelhos, que é uma reescritura da história infantil do Andersen. Eu peguei 12 histórias do Andersen e resolvi fazer versões para adultos.


Já tem título?

Chama-se Malditas Fadas.



Eu gosto muito dos seus títulos. Como você os escolhe?
Não sei, eles nascem. E eu ando com tanto medo de escrever.

Por quê?

Por causa dessa desorganização, não parei de viajar nos últimos anos. Mas isso é uma coisa transitória.



É uma coisa sazonal?

Não sei. É que ficam várias coisas cruzadas que eu acho que são esterilizantes. Eu sou super informado, leio vários jornais, vejo os noticiários de TV, sou meio viciado nisso. E se você para para contemplar o planeta e o país nesse momento, isso dá enquanto ficcionista uma sensação de inutilidade enorme. Você fica pensando: “Meu Deus, o que é que eu posso dizer sobre esse momento econômico, ecológico, humano?”. E isso é um pensamento estéril, não me mobiliza para escrever. Ando meio embaraçado com isso. Mas é uma preocupação que eu acho que é preciso deixar de lado de alguma forma porque ela é produtiva.



O seu estado de humor claramente permeia a sua obra?
Como estudei um pouco de teatro, escrevo também seguindo o método Stanislavski, eu incorporo a personagem. Se a personagem é um depressivo ou suicida eu vou ficar um pouco assim durante todo o tempo em que estiver lidando com aquela personagem. Problemas matérias também interferem, você ter que pagar o aluguel, contas. Acho que o tempo da criação deve ser sempre um tempo de esquecimento. Como uma realidade paralela sobre a material à qual você possa se entregar sem a preocupação de “Meu Deus tenho que arrumar sei lá quanto até amanhã para pagar não sei o quê”. Isso é esterilizante. O momento da criação é como se fosse um mezanino da realidade. (risos).

Anos 60, 70. Você chegou a lidar com drogas com o objetivo de experimentar para criar? Você falou que era muito curioso?
Quando saí do sitio da Hilda Hilst, morei no Rio de Janeiro um tempo, trabalhei na Manchete, foi quando escrevi O Ovo Apunhalado. Eu morava em Santa Tereza com uma porção de gente e muitas coisas do Ovo Apunhalado escrevi com maconha, tomei ácido, anfetamina. A gente fazia muito coquetel de droga. A respeito de drogas, o Antonio Bivar, grande escritor e dramaturgo, falou uma vez, em uma entrevista, para não se tomar a droga como um fim em si, para ficar muito louco, mas para trazer à tona uma coisa que estava meio escondida na sua cabeça.

Relacione alguns exemplos da sua obra sob efeito de alguma droga.
No Ovo Apunhalado tem um conto chamado Eles, que é uma história meio ficção científica que eu não consigo... Geralmente eu lembro do dia, do lugar onde escrevi e essa história não lembro de onde veio. Depois fiquei dois anos fora, um pouco em Estocolmo, em Londres e aí com um bando de gente tomando muita droga.

Você chegou a tomar drogas sozinho, pensando em criar?
Eu tomava a droga com uma turma. Ia para casa sozinho e escrevia. Era uma coisa sempre solitária. Uma época em Londres eu posava para Belas Artes, escultura, pintura, e levava os meus caderninhos e nos intervalos, de 40 em 40 minutos, ficava escrevendo.

Você escrevia drogado? E depois que o efeito passava, a história dava uma reviravolta? Como era?Aconteceu de escrever coisas que eu achava ótimas e depois, quando relia de cara limpa, via que era uma banalidade. Ou escrevia dez laudas meio louco e no dia seguinte pegava umas quatro ou cinco frases aproveitáveis. Às vezes era uma escrita automática que deixava vir à tona uma pequena porção que era interessante. Hoje sou a pessoa mais careta do mundo. E detesto drogas.


Você usa computador?Não, direto à máquina. Estou louco por um computador, é uma coisa que preciso desesperadamente. Estive me informando de preços e preciso que meus livros vendam muito na Europa.


Eu gostaria que você falasse sobre a relação que existe, se é que existe, entre a sua obra e a sua opção sexual.
Claro. Eu nunca pensei sobre isso, mas acho que a sexualidade é básica, ela está em tudo o que você faz. Não sei dizer... Deve vir misturado, sim, mas não sei dizer de que maneira. Ultimamente, com toda essa história de Aids, o que eu tenho escrito não tem sexo. Bom, a minha vida pessoal também não... É uma coisa muito estranha. A última coisa que escrevi é uma versão de A Pequena Sereia, do Andersen, a sereia se apaixona por um príncipe que ela vê do outro lado da água. Na minha história é uma mulher sem nome que tem um sonho. Ela está debruçada no ombro de um homem, dormindo junto com ele, sem ver direito o rosto porque está muito próximo. Ela acorda completamente apaixonada por esse homem, passam-se os anos e ela continua apaixonada por essa figura que encontrou no sonho. Então eu penso muito que talvez a gente esteja num tempo em que o vírus da Aids deixou isso muito claro. Quer dizer, a procura da total satisfação sexual é um pouco como a procura de Deus, como a procura do conhecimento absoluto. É uma coisa que na sua condição humana você não vai conseguir alcançar. Eu realizei, exercitei todas as fantasias sexuais que tinha. Absolutamente todas. Não tenho nenhuma carência nessa área, nenhuma frustração. Frustrações amorosas, afetivas sim. Sexuais não. Acho que a idade traz isso, você vai chegando num vazio, menos ansioso. Tem o quê por trás disso? E aí não tem nada, tem a satisfação do corpo, só. Fica faltando Deus, quando você toma um porre, quando come demais, qualquer coisa, fica faltando. Que é da nossa condição, a carência. Nós nascemos, vamos morrer, habitamos uma poeirinha no infinito e isso dá uma sede enorme de alguma coisa que vem depois, de alguma coisa maior, que a gente chama de Deus, chama de amor, chama de orgasmo, chama de mil coisas.

Dor e prazer na criação, como isso se dá com você?
Olha, as notícias são persecutórias. Você fica com uma história, com uma imagem na cabeça durante muito tempo. Eu fico anos, às vezes. E essa é uma fase angustiante porque anota uma frase aqui outra ali, sente que a coisa não está pronta. E isso dói. Dói muito sentar a máquina e dizer: “É hoje que eu vou dar forma a esse texto”. Aí você foge, vai ao cinema, ao teatro, vai jantar com alguém e não assume. Até o momento em que tudo se conjuga para que você tenha sobre controle aquela coisa amorfa. Você começa a escrever e as coisas se ligam, os canais se ligam com o invisível e aí vem o prazer de dar forma ao informe. Aí é maravilhoso.

A que você credita esse momento, digamos, mágico?

Acho que o inconsciente está muito envolvido nisso, levou um tempo para que essas informações fossem armazenadas, filtradas e formassem um todo. Mas é um mistério. Eu prefiro pensar que é basicamente um mistério. Não se deve mexer muito nisso senão perde o encanto.



E essa mágica independe do momento que você estiver passando?
Independe. O seu eu individual fica completamente de lado a ponte de você não ter fome, sono, coisas assim. Talvez seja uma parte de sua mente que venha à tona, que fica mais forte, mais nítida.


Você costuma reescrever a sua obra?

Na faculdade eu tinha escrito um romance chamado Limite Branco, a Carmen da Silva tinha me pedido os originais para ver se publicaria no Rio. Esse romance eu reescrevi recentemente, vai sair pela Siciliano.

Como foi reescrever um romance mais de 20 anos depois?

Foi a viagem mais estranha. Esse livro foi escrito em 67, publicado em 70, teve só uma edição. Não modifiquei a técnica dele, tem uma boa estrutura, suponho, mas trabalhei na linguagem. Teve uma hora em que eu não queria terminar o trabalho, levei quase um ano arrastando. Ele era muito inocente, muito ingênuo, e me dava uma sensação um pouco dolorosa de ter perdido muito daquela inocência dos 18 anos, o que é inevitável.

Foi mais difícil terminar do que recomeçar a escrever?
Sem dúvida. Eu escrevia à tarde porque à noite em geral eu fazia uma coisa que faço até hoje, eu procurava locações para o livro. (risos) Como em cinema. Uma personagem anda por uma rua, antes eu fazia aquele trajeto, procurava as casas onde esses personagens deviam morar.

Isso deve facilitar muito na hora de escrever, não?
Fica muito real. É o método do cinema.


Quanto da realidade você permite na sua criação?
Vou dar um exemplo: a primeira história de Os Dragões Não Conhecem o Paraíso se chama Linda, Uma História Horrível. (risos) É o diálogo de um homem de mais ou menos 40 anos com a mãe dele. Ele volta para o interior, a mãe é viúva, o pai morreu há alguns anos. Ela tem uma cachorra sarnenta, velha, meio cega chamada Linda. É um diálogo dos dois, e o leitor percebe que esse homem está com Aids e voltou para morrer na casa da mãe. Isso é uma conclusão que o leitor tira. Pois essa história nasceu de uma fantasia que eu fazia com o meu psicanalista. Eu dizia: “Ai, meu Deus, se eu tiver Aids vou ter que voltar para a casa do meu pai, da minha mãe, não vou poder trabalhar mais...”. Era uma fantasia mórbida, obsessiva, bem obsessiva. E a forma que encontrei de me livrar foi transformando-a em história, em ficção. Quer dizer, esse homem não sou eu, aquela cidade no interior é uma cidade fictícia, aquela mãe não é a minha mãe, mas eu “ficcionalizei” uma obsessão minha que era muito negativa. Muitas vezes uma história nasce disso, de você pegar uma obsessão sua que é perigosa e criar uma ficção. Escrever é sempre um exorcismo, um auto-exorcismo. Por isso nunca gostei da psicanálise mais tradicional. Fui me encontrar mais nos junguianos, nos sonhos, nos símbolos, na astrologia, no I-Ching, no budismo Zen.

Você está com 43. A proximidade dos 50...
Me excita. Eu gosto tanto de velhos. Um dos meus melhores amigos atualmente é o meu pai, que ontem fez 71 anose é super saudável. Acho que as pessoas mais velhas têm uma visão cronológica da vida mais desapaixonada, mais sábia. O Bivar tem 10 anos a mais do que eu e é admirável a maneira como ele lida com a vida, a maneira com que foi se despojando para criar, como dividiu a sua vida, morando atualmente 15 dias em Sâo Paulo e 15 dias em Ribeirão Preto. Acho uma maravilha. Se você for se libertando das suas ansiedades, dos seus desejos, vai poder contemplar o mundo dos humanos com mais isenção, com mais amor. Isso é bom. Você ter um olho mais amplo e mais generoso sobre a realidade, sobre o mundo chamado “real”, que é pura ilusão.


terça-feira, 6 de março de 2012

Processo de Criação - Parte 2




                     Segunda parte da entrevista  do Caio Fernando de Abreu publicada no livro 
                     Processo de Criação, de Darlene Dalto (Editora Marco Zero, 1993). 



Você sempre deu nome às suas personagens?
Não, as minhas personagens não tinham nome. No Onde Andará Dulce Veiga?, o narrador não tem nome. Todo mundo tem nome mas ele não. Em geral a personagem nasce com um nome, mas quando você força esse não é o nome da personagem. Soa falso.


Por que Teresa?
Teresa, porque na minha memória eram sete irmãs, todas com T: Teresa, Tânia, Tônia, tinha uma brincadeira assim.



É comum você criar uma história a partir do real?
De uma frase, de uma imagem, de um verso qualquer. Existem escritores, que chamo de escritores-imã, que são aqueles que me dão vontade de escrever. Por exemplo, eu leio Adélia Prado e me dá uma vontade maluca de escrever. Lúcio Cardoso, um escritor brasileiro muito esquecido, também me dava muita vontade de escrever. Ele traduzia os grandes romancistas ingleses dos anos 30, 40, a literatura dele tem muito clima do romance inglês. O Tempo e o Vento, do Érico Veríssimo também me dá uma vontade danada de escrever.



Eu gostaria que você falasse sobre o período da faculdade em relação ao seu processo de criação.
Foi onde conheci os meus primeiros pares ou cúmplices, foi quando descobri que havia pessoas no mundo tão bizarros como eu. (risos).



Você e seus amigos chegaram a criar juntos?
Não, escrever não. Escrever é muito solitário. Uma amiga chamada Magliani me estimulava muito a desenhar, na época fiz umas colagens e tal. Mas logo conheci um pessoal que fazia teatro. Eram pessoas mais parecidas comigo. E são pessoas que deram muito certo, por exemplo, o Luiz Roberto Damasceno, que trabalha como Gerald Thomas, o Arthur Nunes, diretor de teatro que está no Rio, com ele escrevi algumas coisas para teatro, a Elke Maravilha era Elke Bell, ela estudava na faculdade de filosofia.



Você admitia interferências no seu trabalho?
Dessas pessoas sim.



Chegava a escrever em função do que eles diziam?
Às vezes sim. Eu tinha uma ótima crítica, Cecília Niesemblat, que agora trabalha com grupos de periferia em Porto Alegre. Ela lia e criticava duramente. E Madalena Wagner, que mora há anos na Alemanha, me orientou muito.



Quando você veio para Sâo Paulo?
A revista Veja ainda não existia na época. Eles fizeram um concurso no Brasil inteiro, em 1968, procurando 100 pessoas para virem para São Paulo fazer um curso de jornalismo durante três meses e depois trabalharem na Veja. Quando me dei conta eu estava em São Paulo com 19 anos, morando na ACM (Associação Cristã de Moços), ali na Nestor Pestana e fazendo esse curso de jornalismo. Foi muito doido porque eu tinha vivido no interior até os 16, fiquei três anos em Porto Alegre, interrompi a faculdade e vim para São Paulo.



E como foi trocar, pelo menos em parte, a ficção pela realidade?
Aí começou aquele conflito, que eu acho que você conhece bem: ter que ficar em uma redação todo dia. O jornalismo era mais rígido, o texto jornalístico tinha normas, técnicas e eu comecei a ficar muito angustiado porque ao mesmo tempo em que aprendi algumas coisas em relação à clareza, síntese, por outro lado tinha que fazer um esforço para ser realista e objetivo, achava que me limitiva.



Quanto tempo você agüentou?
68 foi um ano muito agitado, como você sabe. Aluguei um apartamentinho na Rego Freitas. Eu era muito curioso, estava muito atento a tudo, tinha uma reunião política qualquer, vai ter qualquer coisa, eu estava lá. Um dia, não fui trabalhar, estava mal e liguei para a Abril. O meu editor falou, “Olha, não venha porque o Dops esteve aqui à sua procura”. Eu fugi, fechei o apartamento e fui para o sítio da Hilda Hilst, uma escritora extraordinária, e fiquei lá durante um ano. Aí foi maravilhoso porque a Hilda tinha uma biblioteca enorme, eu lia as coisas dela, ela lia os meus textos, escrevi muito, aprendi muito com ela. Peguei contos esboçados, não terminados e organizei o que acabou sendo o meu primeiro livro chamado Inventário do Irremediável. Desde então, até uns dois ou três anos atrás, a minha vida teve a seguinte estrutura: eu trabalhava um ano, um ano e meio em uma revista, um jornal, pedia para ser demitido, pegava o fundo de garantia e ficava um ano, dois só escrevendo. Durante as épocas em que eu tinha um trabalho fixo, dificilmente conseguia terminar um texto literário.



Em que momento você definiu...
Acho que em toda minha vida nunca fiz nenhuma opção. Deixo as coisas meio que irem me levando e as decisões acontecem por si. As coisas foram se juntando. Em uma época trabalhei na editora Abril e quando me dei conta estava no departamento de fascículos, escrevendo receitas de cozinha e ganhando muito bem. Foi horrível. Meu Deus! Isso foi em 80, antes de Morangos Mofados. Aí sim foi uma decisão mesmo. Teve um dia que olhei minha cara no espelho e disse, “Eu não suporto fazer isso, não admito”. Pedi demissão e fui trabalhar na Leia Livros, que era da Brasiliense.


                                              PS: Logo logo a terceira (e última)  parte da entrevista

quinta-feira, 1 de março de 2012

Processo de Criação - Parte 1




A entrevista abaixo do Caio Fernando de Abreu foi publicada no livro 
 Processo de Criação, de Darlene Dalto (Editora Marco Zero, 1993). 
E a autora apresenta Caio F. Assim:

“Caio é o mais bem acabado estereótipo de escritor que já encontrei. Escreve com luz baixa, máquina de escrever, uma bebida, cigarros.. Cena de filme noir. Fui encontrá-lo em junho de 92. Comecei a gostar do seu trabalho quando ele publicou Morangos Mofados, depois Onde Andará Dulce Veiga? Eu o conheci no Caderno 2 de O Estado de São Paulo, trabalhamos lá. Caio não suportava ficar seis, sete horas direto na redação. Tinha mais o que fazer.”


Quando você percebeu que podia criar? 
É uma coisa muito antiga. Minha mãe, minhas tias dizem que desde os três, quatro anos, em vez de me contarem histórias, eu é que contava histórias para elas.


Que tipo de história?
Não lembro direito, mas sempre tinha muita viagem no meio. Minha mãe era professora, aprendi a ler muito cedo e já saí direto escrevendo histórias, desenhando. Meu pai gostava muito de ler, tinha uma biblioteca enorme e eu também lia de tudo, alguns livros escondidos, como Um Lugar ao Sol e Caminhos Cruzados, do Érico Veríssimo. A Carne, do Julio Ribeiro, O Cortiço, do Aluizio de Azevedo. Eu lia no quarto, depois que todo mundo ia dormir, deixava o livro aberto debaixo do colchão. Acho que era uma coisa meio consentida.


As histórias que você contava tinham a ver com os livros que lia?
Às vezes sim, eram histórias muito angustiadas. Aos 11 anos escrevi um romance, a história de uma mãe solteira, que se passava nas montanhas escarpas dos Pirineus. (risos). Eu tinha paixão pela França.


Você não brincava com os seus irmãos?
Nós somos cinco irmãos, sou o mais velho. Mas tive uma infância e, principalmente, uma adolescência muito solitárias. Nunca fui muito criança, era uma pessoa mais contemplativa, interiorizada. Achava tudo muito tolo, aliás, acho até hoje. (risos). Com seis, sete anos já tinha angústias metafísicas. Às vezes eu ficava em um campo que tinha do lado de casa rodando com os braços abertos até ficar completamente tonto e cair no chão. E enquanto eu rodava, ficava repetindo: “Eu sou eu, mas quem sou eu? Eu sou eu, mas quem sou eu?”. Quando caía, olhava para o céu, que estava rodando também, e dizia: “Eu sou eu mas o céu é muito maior”. As minhas carências eram metafísicas. Eu tinha uma profunda necessidade de Deus.


Quando você decidiu ser escritor?
Eu sempre dizia que queria ser escritor. Era muito sereno isso dentro de mim.

Você guardava o que escrevia?
Esse romance de que falei tenho guardado aí em uma pasta, chama-se A Maldição do Saint Marie.

Você também escrevia poesias?
Sempre. É um vício secreto. Pouquíssimas pessoas viram. Ela não é boa, não.

Fale do clima mais propício para você escrever naquela época?
À noite no meu quarto, às vezes durante as aulas chatas, matemática, física, química. Eu desenhava muito também.


Você continua preferindo escrever à noite?
Eu gosto muito de luz baixa, sempre naquela mesa ali, na qual trabalho, em geral, de madrugada. Gosto de sentar para escrever nove, 10 da noite e aí pode ir até cinco, seis da manhã.


Tem música, fumaça?
Tem muito cigarro, conhaque. Acho que é uma grande mistura para escrever. Dizem que Castro Alves bebia muito conhaque. Mas escrever exige muito que você esteja com a cabeça limpa. Depois quando já conseguiu segurar o texto, aí sim dá para beber uma coisinha. O bom é café e cigarro, direto. Eu gosto muito de música e tem certos textos que têm um clima musical, de blues, um clima de chorinho. Aí é bom colocar antes de escrever. Para escrever, silêncio. Aliás, eu sou apaixonado pelo silêncio.




Você escolhe a música de acordo com a cena, não com seu estado de humor?Isso. 

Exemplos.
Em Onde Andará Dulce Veiga? tem um momento que um repórter vai fazer uma entrevista com uma cantora de rock e quando ele sai do quarto onde a entrevistou ela coloca um rock. Eu não sabia direito que rock era aquele. Aí, me veio de repente – era Walk on the Wild Side, do Lou Reed, que era também um toque que ela estava dando porque o repórter era muito careta. Escrevi esse capítulo ouvindo e ouvindo de novo Lou Reed porque eu queria cronometrar a caminhada do personagem. Era um sobradinho na Freguesia do Ó, ele ia descendo as escadas ouvindo um ou outro verso da música.

Você escreve direto, sem interrupções?
Ultimamente estou com um problema de escritor, problema de coluna. Então tenho que dar umas paradas porque dói muito, eu deito no chão, faço ioga. Às vezes tenho que fazer um esforço para comer alguma coisa porque fico sem fome. Ultimamente tenho medo de escrever. Fico muito excitado, sem apetite, dá náuseas, vertigens, taquicardia.


Quando é que Santiago ficou pequena e você sentiu vontade de cair fora?
Meus pais queriam que eu fizesse medicina ou direito e resolveram que eu devia fazer o colegial em Porto Alegre. Fui e encontrei na escola uma boa biblioteca. Caí de boca nos livros, também escrevi muito lá. Nesse colégio aconteceu uma coisa que determinou a minha vida. Eu costumava ler a revista Claudia, adorava os artigos da Carmen da Silva, que foi a grande precursora do feminismo aqui no Brasil. Aí mandei um conto para a Carmen chamado Príncipe Sapo, a história de uma solteirona, Teresa, que se apaixona por um professor de piano que parecia um sapo. Passou-se um ano sem resposta até que em novembro de 1966 chegou pelo correio um pacote grande, com uma revista Claudia, com o conto publicado e uma carta da Carmen dizendo que ela queria me fazer uma surpresa. Eu tinha 17 anos, foi a primeira vez que publiquei.



Para quem você mostrava suas histórias?
Os meus temas desde muito cedo foram meio pesados, a dificuldade de amar, solidão, incomunicabilidade. Antes desse conto publicado na Claudia, troquei umas cartas com o Érico Veríssimo, ele me estimulava muito. Eu me imaginava um ET, que não tinha nenhuma pessoa parecida no mundo, me sentia muito diferente dos outros, as minhas idéias eram outras, eles queriam carros, jeans, namoradas. Isso só foi mudar quando entrei na faculdade.



Se até então era um processo solitário, como você sabia que o texto estava pronto, acabado?
Eu não sabia, achava que havia algo errado comigo. (risos). Tanto que depois caí na psicanálise e fiquei 13 anos. Quer dizer, acho que há algo “errado” com uma pessoa que cria. É alguém que não está satisfeito com a realidade objetiva como ela se apresenta e precisa recriá-la para poder viver, para suportar o real.


Os artistas são pessoas essencialmente carentes?
Com certeza. Acho que nos atores de teatro isso é mais nítido, são frágeis. Você no fundo escreve, pinta ou dança para ser amado, ser aceito.


Um artista definitivamente não se basta?
Acho que não.

Que estado emocional o impelia a escrever?
De certa forma eu estava sempre escrevendo. A partir dos onze, doze anos, sempre tive diários, tenho pilhas de cadernos até hoje, tinha esse contato diário com a palavra. E de vez em quando me brotavam histórias que não eram divagações pessoais, eram ficção mesmo. Essa história da solidão, acho que em momentos em que isso pesava mais eu escrevia com mais intensidade.


E quando você estava contente?
Não. Acho que a alegria é estéril no sentido de que se basta.

                                   PS: Logo logo a segunda parte da entrevista