sábado, 15 de setembro de 2018

Caio F. no Roda Viva

Caio F. no Roda Viva com Raquel de Queiroz

Houve dois momentos marcantes de Caio Fernando Abreu no programa Roda Viva.  O primeiro e polêmico foi como entrevistador da escritora Raquel de Queiroz https://www.youtube.com/watch?v=q0NHxLbaN5w. Quatro anos depois, em 1994, depois de ter revelado ser HIV positivo, ele voltou ao programa, agora como entrevistado (Não encontrei a entrevista no Youtube). Caio comentou esses dois momentos, em entrevista à Maristela Barrios, publicada no primeiro número da revista Sui Generis, em janeiro de 1995. http://caiofcaio.blogspot.com/search?q=conhecendo+o+para%C3%ADso 


 "Numa emissora de TV, há quatro anos, tive um entrevero no ar com a Raquel de Queirós, aquela latifundiária improdutiva e extremamente reacionária – num programa semanal em que eu era sempre um dos convidados  Depois disso, nunca mais me chamaram para nada, a não ser há algumas semanas. E era o mesmo entrevistador, a quem eu lembrei o fato e que, durante uma hora, não me olhou nos olhos. Mas uma das coisas boas do vírus é que fica assim... um grande caguei. Não tenho nada a perder, a única coisa que posso perder é a vida. Então, quero mais é dizer o que penso, o que realmente sinto, coisas que são verdadeiras pra mim e que podem ser úteis aos outros. Porque eu acho que sou uma pessoa legal, como costuma dizer a Gal Costa. Eu vivi uma porção de coisas, posso dizer coisas boas e más também. Como falava Mae West, ‘quando sou boa, sou ótima, mas quando sou má, sou melhor ainda’."


quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Angela e Cauby: para roubar uma lágrima furtiva



Para marcar o dia em que seria o dia dos 70 anos de Caio F, uma postagem especial. Esta belezura de texto não está em Pequenas Epifanias e nem em A Vida Gritando nos Cantos, os livros que reúnem as crônicas que ele escreveu no Caderno 2 do Estadão. Esta saiu no formato matéria sobre um show de Angela Maria e Cauby Peixoto. Pra falar dos dois cantores, Caio convoca uma protagonista: tia Vilma, que embalou sua infância com canções. O resultado é uma maravilha e o "lágrima furtiva" não está no título por acaso. Uma pequena epifania essa crônica/matéria.

             Angela e Cauby: para roubar uma lágrima furtiva

Tenho uma tia chamada Vilma. A Vilminha, como a chamam até hoje as freguesas de costura, ou Pavima para nós, seus 500 sobrinhos. Solteirona, romântica, alucinada, tia Vilma amava no ar. Nunca se soube de um namorado seu. Tia Vilma lia fotonovelas, e cantava. Ah, como cantava, derramando vezenquando uma lágrima furtiva. Me ninava nas noites frias com seu repertório heavy: Dalva de Oliveira, Nora Ney, Linda Batista. Ao invés de Bicho Papão, dê-lhe Risque; e tome Vingança, ao invés de Boi da Cara Preta. Com dois, três anos, eu dormia no colo virginal Pavima, ouvindo Ninguém me Ama. Com cinco ou seis, cantava com ela obras completas de Lupicínio Rodrigues. Essas coisas marcam fundo, vocês sabem. Podem marcar pra sempre, gravemente até: fazem a fortuna dos psicanalistas quando a gente fica taludinho...


Sandro Moretti: galã de fotonovela
E Angela e Cauby, Pavima cantava. De Angela, muito Cinderela. Cauby, puro descorno, ela adorava. Lembro de uma porta interna de guarda-roupa - lembro mais do mosqueteiro suspenso, de filó branco, sobre a colcha de renda (quarto de moça), da janela aberta sobre o pátio cheio de begônias - e daquela porta interna do guarda-roupa com fotos de Cauby e Sandro Moretti. Cauby de bigodinho, orelhas meio de abano. Fino, sóbrio. Usasse faca, tia Vilma puxaria a dela, bem afiada, se alguém ousasse chamar Cauby de "maricão". E como chamavam!

Tivesse eu Pavima por perto - e não lá nos ermos de Itaqui - hoje à noite a levaria para assistir Cauby e Angela em "As Vozes". Talvez, suprema subversão, conseguisse fazê-la beber pelo menos uma vodka. Não, não me atrevo a imaginar tanto. Um singelo copo de vinho, branco naturalmente - quem sabe? Eu ficaria de porre total, lógico, e falaríamos de todo esse tempo que se foi, e dos que morreram, e dos que se descaminharam, dos que a vida feriu fundo, e dos que sofreram duramente por amor (ou falta de). Com Angela e Cauby ao fundo, talvez a velha - muito velha - e boa - boa no sentido vasto da generosidade - Pavima revelasse enfim seu grande segredo indizível. Que deve haver um, fatal. Sobre uma história que não houve. Homem casado, talvez? Um cunhado, um oficial do exército, um estudante pobre? Que vil sedutor, meu Deus?

Ao som das vozes de Cauby e Angela, eu e Pavima. Eu ficaria pensando qualquer coisa meio longa e complicada, como esta, assim: amar de paixão tresloucada ou detestar com as mais recônditas fibras do self, achar breguésimo ou tão brega, mas tão brega que (como o princípio zen do yin e do yang) chega a ficar requintadamente chique, qualquer dessas atitudes, intelectuais ou emocionais, em relação a Cauby e Angela não têm nada a ver.Se eu pudesse ver, do outro lado da mesa, os olhos muito cansados e quase azuis de tia Vilma por trás dos óculos de lentes grossas, teria ainda mais certeza que Cauby e Angela pairam infinitamente acima dos nossos pobres e preconceituosos padrões críticos.

Mas claro que, se eu quiser, posso colocar imediatamente o disco dos Inocentes e acabar com este clima. Mas é este clima que não acabam, como não acabam Angela e Cauby, as vozes que só por soarem, independente do que dizem, trazem de volta o passado de um país inteiro. Fico remexendo à toa em fotos e recortes antigos. Anoto os nomes dos oito irmãos da operária Abelim Maria da Cunha (Angela): Abdmar, Abiezer, Ablair, Abiail, Abladina, Abdiel, Abmael e Abedil. Parece uma oração. Encontro um elogio de Louis Armstrong, outro de Elis, à voz de Sapoti (e aquele agudo?). Vou mais fundo até encontar - juro - o registro de uma dança da inteiramente dark de Cauby, em 1952. Detalhes não posso dar. Mas é forte. Aliás, com suas antenas mutantes, o Supla pegou esse lado do Cauby. E Elis, quando gravou com ele o infernal Bolero de Satã: "Agora me assalta a aflição de chorar louco e só de manhã".

Tia Vilma/Pavima/Vilminha teria hoje talvez uma das melhores noites de sua vida em sépia. Ficaríamos numa mesa ao fundo, cúmplices. Tenho certeza que ela cantaria junto Vida de Bailarina, bem baixinho. E fingindo limpar os óculos, enxugaria muito dissimuladamente - mas não tanto que eu não percebesse - outra daquelas furtivas lágrimas

                  O Estado de S. Paulo - Caderno 2 - Sexta-feira, 6 de junho de 1986

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

'Adeus, Brasil Cruel'





Essa entrevista foi há 28 anos. Caio F., 42 anos recém completos, acabara de lançar "Onde andará Dulce Veiga?", quando conversou com Geneton Moraes Neto (1956-2016). Saiu em O Globo, edição de 30 de setembro de 1990, quase seis anos antes da morte do escritor. É das melhores entrevistas dele, que vivia desencanto com o País e funciona como uma mini biografia.

                                                 'Adeus, Brasil Cruel'

Quando lançou "Morangos Mofados", em 1982, você dizia aos que lhe cobravam um romance: "Quando alguém se dispuser a me dar uma mesada que me livre da obrigação de trabalhar oito horas por dia, compareço com um romance". A esperada mesada chegou para que você pudesse escrever "Onde andará Dulce Veiga?"?
Meu editor, Luis Schwarcz, me pagou durante um ano enquanto eu escrevia "Onde andará Dulce Veiga?", U$ 350 por mês, no câmbio oficial. É pouquíssimo, dava cerca de Cr$ 20, 25 mil. Eu complementava com o que eu chamo de biscates culturais. Mas renunciei a tudo, porque o que me interessa é a literatura. Se eu não tinha dinheiro para jantar fora, fazia arroz integral com ovo frito. Andava a pé, pegava ônibus. Cortaram a luz. Cortaram o telefone. Mas eu precisava escrever. Isso aconteceu comigo, no plano pessoal. Quanto à literatura brasileira - de uma forma abrangente -, concordo com Hilda Hilst, a maior poetisa brasileira viva, quando diz que hoje, no Brasil, escritor vale menos que um gato morto. Não há respeito. Não há divulgação. Não há amor pelo autor brasileiro. Nós estamos todos profundamente solitários, desencantados, separados. Então eu me senti abençoado por ter conseguido escrever o romance.

Você lamentava, há poucos anos, que o escritor brasileiro fosse "um escritor de fim de semana". A situação piorou nos últimos tempos?
Piorou, e por isso estou indo embora do País. Vou lançar livros na Europa no fim do ano e ficar na Espanha, em Ibiza. Amo profundamente o Brasil. O meu livro é desesperadamente brasileiro. Preciso ficar longe dessa paixão, para que ela não me destrua. Eu serei um exilado literário.

Você espera encontrar na Europa, como escritor, o que não encontrou no Brasil?
Não, não e não. Vou ser, na Europa, um paquistanês. Não tenho ilusão. Já morei em Londres e Estocolmo. Eu era profundamente rejeitado e chamado de negro, índio, chicano. Mas vou: é como o Paulo Coelho aconselha: de sete em sete anos, jogue a vida para o alto e saia à procura de outra, porque teu destino pode estar à tua espera num boteco em Atenas. Se você não for, não vai encontrar. Sou um rolling stone. Isso pode ajudar a minha literatura e meu profundo amor pelo Brasil - cada vez mais enlouquecido, o meu amor por este País cruel.

Dentro da literatura, a que santos e demônios você recorre?
Santos ou demônios, minha relação é sempre com a luz. "Onde andará Dulce Veiga?" se encerra com uma oração de Clarice Lispector: "Ah, força do que existe/ Ajudai-me!/ Vós que chamam de o Deus". Fui preso em Londres, numa livraria, roubando a biografia de Virginia Woolf, escrita por Quentin Bell. Fiquei três dias na prisão. Só fui ler a biografia há poucos anos. Quando fui preso, fiquei sem o livro. Mas, desde então, ela me protege - Virginia.




Você descreveu há pouco a precaridade que enfrentou durante o período em que escreveu "Onde andará Dulce Veiga?". Mas esta precariedade palpável na vida real não transparece no texto. Críticos já notaram que você escreve com elegância. Você escreve com raiva, também?
Sou, no fundo, uma senhora inglesa. Muitas pérolas. Muito tailleur. Muita seda. Mas sou cafajeste, também. Num dos capítulos, antes de tomar um táxi, o personagem cruza na rua com dois anões, um corcunda, três cegos, quatro mancos, um homem-tronco, outro maneta, um enrolado em trapos como um leproso, uma negra sangrando, um velho de muletas, duas gêmeas mongolóides e tantos mendigos que não consegue contar. Aquela cena, no livro, é a raiva da realidade brasileira, é ódio do Terceiro Mundo. Tenho ódio, repulsa, desprezo, repugnância, pelo que fizeram com o Rio de Janeiro. Como é que nós, brasileiros, a nossa geração, os jornalistas, os intelectuais, permitimos que o País virasse essa bagunça?

Você também é jornalista. Fazer jornalismo é ruim para a saúde mental e física de um escritor?
É. Para o escritor - um ficcionista que se alimenta de sonho, ilusão e fantasia - é melhor ser jardineiro ou sapateiro do que se submeter ao vão comércio da palavra. Trabalhei na Editora Abril. Passei pela revista "Nova". Por mês, escrevia cinco matérias sobre sexo anal, sexo oral... Quando me dei conta, tinha ido parar na Divisão de Fascículos, onde estava escrevendo receita de cozinha. Juro! Tive uma indignação total. Pedi demissão. Disse: "Se eu continuar, amanhã de manhã vou me olhar no espelho e cuspir na minha cara!". Fiquei duro. Mas saí. Não admiti. Nélida Piñon é que diz: se você é escritor no Brasil, todo dia ouve alguém bater na porta para aconselhá-lo de maneira convincente a desistir. É preciso agarrar a literatura pelos cabelos, como Clarice Lispector fez, numa luta diária.

Você uma vez listou, entre os personagens que o fascinam, "as prostitutas, os negros, os homossexuais, os bêbados, os loucos, os suicidas, os exilados, os mendigos, os endemoniados". A arte que se alimenta da maldição é menor e mais viva?
É mais viva porque vive "perto do coração selvagem da vida", como diria James Joyce. Sou feliz. Sou a pessoa mais careta do mundo. Minha vida é toda ordenada. Tenho minha loucura sob controle. Mas os outsiders me interessam.

Você diz que José Saramago é "chatíssimo" porque não tem nada a ver com o que acontece na vida real...
De vez em quando, a gente fala coisas meio bobas que são distorcidas. Mas é verdade mesmo.

Você, então, prefere a literatura que possa fazer o leitor enxergar o que existe em torno de si?
Prefiro a literatura que ajude a alma do leitor a se questionar, a crescer e a evoluir. Prefiro a literatura que abale o leitor de alguma forma. Por exemplo, fiquei abalado quando li "O diário de Edith", de Patricia Highsmith. É a história de uma mulher que tem uma vida absolutamente banal, mas descreve, num diário, uma vida fictícia maravilhosa. Um livro assim perturba minhas reflexões sobre mim mesmo, sobre a sanidade, sobre a loucura, e sobre os limites da relação com o real. Prefiro este tipo de literatura - que é viva porque abala e não entra por um ouvido e sai pelo outro.

Cazuza, de quem você foi amigo, acaba de virar nome de praça em São Paulo e também no Rio, no Arpoador. A rebeldia deve virar monumento?
Quando quiseram transformá-lo num busto de bronze, Mario Quintana disse: "Cuidado! Um engano de bronze pode ser um engano eterno!". O que Cazuza deixou de melhor ficou nos discos e na bravura com que enfrentou a vida. Se virar nome de praça, tudo bem. Ser esquecido ou não ser esquecido, tanto faz. A posteridade é um tédio.